Os Prazeres De Roderich escrita por kaori-senpai


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal~
Olhem, eu me inspirei no filme "Penelope", mas não se trata de uma paródia, é a versão PruAus com características próprias, logo tem elementos originais e elementos que peguei do filme.
Recomendo verem o filme para fazerem uma relação com os personagens.
Boa leitura~



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Eu nasci sob circunstâncias especiais. Claro que ser o primeiro homem nascido na família em gerações já era algo inusitado, pelo fato de só gerarmos mulheres, durante muito tempo minha família teve que procurar noivos dispostos a aceitar o sobrenome Edelstein. Com um menino, isso poderia finalmente ser mudado e logicamente todos vibraram com os meus primeiros traços de masculinidade ainda dentro do útero. Mas minha história não se passa em um cenário majestoso, brigas por heranças ou conflitos conjugais.

Isso porque eu não era como os garotos que brincavam na frente da minha casa. Mas isso não começou quando nasci, minha história deve ser iniciada alguns séculos atrás, quando os Edelstein chegaram na Áustria. O nome do principal personagem é Hansel, meu tatara(tatara)-avô por parte de mãe, um jovem sonhador e completamente apaixonado por Isabel, uma bela criada de sua mansão. A jovem não demorou a apresentar sinais de vida em sua barriga e Hansel, como o perfeito cavalheiro que era, estava completamente disposto a assumir suas responsabilidades como homem, se não fosse, é claro, a pressão de sua família para que ele se unisse a uma mulher mais apropriada. O trágico final dessa história se deu quando, inconsolável por perder seu amor, Isabel atirou-se da ponte com a criança que carregava em seu ventre. Só não esperavam que a mãe da criada, amaldiçoasse o próximo homem que nascesse do ventre de uma mulher daquela família. “A maldição só será desfeita quando um dos seus, aceitá-lo até que a morte os separe”.

Bom ou ruim, durante várias gerações, apenas mulheres nasceram a partir daí e então, numa trágica brincadeira do destino, eu fui o primeiro primogênito de minha família. Logo que os médicos me viram, constataram uma anomalia rara: uma protuberante narina de porco. Minha mãe, sempre valorizando as aparências, desabou quando  disseram que a remoção do focinho causaria minha morte. Mas isso nunca foi problema para mim, aprendi a me virar muito bem sozinho, brincava sozinho, estudava sozinho e nunca sofri por causa disso, claro que minha adorável mãe ter simulado minha morte foi de fundamental importância para cultivar minha solidão. Durante os intermináveis dias trancado dentro de casa, aprendi tudo que um cavalheiro precisa saber, piano, valsa, esgrima, línguas, ciências... E cozinhar foi uma ótima terapia para o estresse de lidar com a minha mãe.

No meu aniversário de 19 anos, contrataram uma relações públicas para encontrar a tão esperada senhorita que me livraria da maldição. Mas para isso chegar a acontecer, elas teriam que me ver sem sair correndo,o que era relativamente difícil. Eu tinha uma sala especial para ter a chance de conhecer as candidatas, eu as via através de um espelho, mas elas não eram capazes de fazer o mesmo. Poderíamos passar meses nos conhecendo, porém, no instante em que eu me revelava, a reação era imediata. Depois elas eram obrigadas a assinar um termo as proibindo de falar qualquer coisa. Tenho que admitir que não me importava muito com casamento, tinha meu piano e a presença de terceiros nunca me fez falta. No entanto, aquele dia chegou.

Um rapaz que não parecia ser mais que um garoto de recados insistiu que só sairia de nosso portão se falasse com alguém chamado Roderich que habitava aquela casa. Meus pais não estavam com muita paciência para fazê-lo mudar de ideia, então simplesmente o mandaram para a sala de entrevistas e de uma hora para outra, me vi obrigado a falar com um completo desconhecido de cabelos platinados.

– O que deseja, senhor?

– Olá, voz misteriosa! O incrível eu veio no lugar da pobre senhorita que foi intimada a estar aqui nesta tarde!

– Fico triste pela ausência de Monika. Agora que já deu seu recado, pode ir embora.

– Não tão rápido! Eu vim no lugar dela, então estou disposto a tratar do seu assunto com ela! Agradeça-me! Kesesese!

– Creio que não será possível.

– Não existe algo impossível para mim! Eu sou incrível!

– Então está mesmo determinado a se tornar minha futura esposa?

Foi divertido ver a reação daquele estranho, por mais desconfortável que aquela situação pudesse parecer, aquela conversa sem sentido era interessante, ou melhor… me distraia. Imaginei que depois daquilo ele fosse pedir desculpas e se retirar, mas estava enganado.

– V-você pretendia fazer da minha irmãzinha sua esposa hoje?!

– N-não! Você entendeu errado, seu tolo! E como assim Monika é sua irmã?!

– Sim, nós somos irmãos e vim cumprir o meu dever de irmão mais velho zelando pela pureza dela! Mas não pensei que você fosse um pervertido, Rod!

– Não, não e não! Nunca faria nada a sua irmã e não me chame assim, senhor Beilschmidt, não temos esse tipo de intimidade.

– Que pena, eu gostei de “Rod”. Ainda bem que você não é dessas coisas, aristocrata, me deixa tranquilo.

– Agora pode me dizer o real motivo da falta de sua irmã?

– Estava tão na cara assim? – Eu afirmei com a cabeça me sentindo um pouco idiota ao recordar que não podia ser visto. – Ela está namorando um italiano novo aqui na cidade. Não fique chateado.

Era natural que ele achasse que eu ficaria desconsolado por perder um futura noiva, mas como me irritar com uma dama que está lutando pelo seu amor? Eu podia no mínimo invejá-la pela coragem.

– Obrigado pela preocupação, já pode ir, senhor Beilschmidt.

– Me chama de Gilbert, ou Gil, o incrível eu não gosta de formalidades!

– Prefiro continuar lhe chamando de senhor Beilschmidt.

– Bah! Você não é nada incrível, Rod! Mas me diga, o que você faz para se divertir por aqui?


Não consegui ficar imparcial com aquela pergunta. Estava costumado a fazê-las, afinal, as senhoritas que me visitavam sempre estavam acuadas e envergonhadas, exceto por uma ou duas rebeldes que eram obrigadas a comparecer. Nunca tinham me perguntado sobre minha vida. Muito menos sobre como me divertia. Depois de algumas reflexões notei que estava me precipitando, pois todas as visitas que tinha recebido até então eram de futuras noivas, nunca recebi um rapaz com quem pudesse conversar de igual para igual. Para dois jovens que acabaram de se conhecer, aquela pergunta deveria ser tão natural e leviana quanto respirar. Ele queria saber como eu me divertia, provavelmente para divertir-se comigo como dois amigos fariam. O único porem que me impedia de responder a pergunta de Gilbert, é que meus passatempos certamente não seriam atrativos para um rapaz livre e dinâmico como ele parecia ser.

Mas eu não poderia mentir e me arriscar a sofrer as consequências. Dizer que assistia futebol e jogava vídeo-games era muito perigoso, pois estaria me colocando em uma situação onde seria obrigado a praticar tais coisas e fingir que elas me agradam. E particularmente, não havia uma variedade de coisas que eu poderia fazer trancado naquela casa. Era melhor dizer a verdade e aceitar um pouco de gozação e uma mudança rápida de assunto, eu iria aguentar.

– Eu toco piano e cozinho.

– Você sabe cozinhar?

– Sim, é um excelente passatempo, devo admitir, pois...

– E você sabe fazer Linzertorte?

– Sim, foi engraçado quando fui…

– Vamos nos casar!

– C-cale-se, seu tolo!

Eu não nego que fiquei lisonjeado pelos elogios às minhas habilidades culinárias, foi a primeira vez que ouvi críticas positivas a respeito desse assunto. Conversar com Gilbert foi agradável e mesmo que só tenhamos falado a cerca de nossas experiências culinárias, foi um diálogo produtivo o suficiente para dele se originar um segundo. Antes de tudo, a segunda visita de Gilbert à minha casa, foi por insistência e infantilidade dele, que alegou não poder continuar a viver se não provasse algo preparado por mim. Eu não repudiei totalmente a ideia porque eram raras as vezes que eu podia cozinhar sabendo que alguém iria apreciar minhas receitas. Geralmente só nossa relações públicas comia os pratos e ela evitava fazê-lo por preocupação com o peso.

Dois dias após o primeiro encontro, ele voltou e eu pude cumprir meu prometido. Mesmo que me agrade ter alguém que aprecie minha comida, não consegui ignorar a ferocidade com que Gilbert a devorava. Como um filho mais velho de uma família tão nobre quanto a minha, ele deveria saber portar-se como tal. A falta de modos dele foi tamanha que tirou meu apetite quando eu estava determinado a comer uma fatia inteira de minha Mozarttorte.

– Senhor Beilschmidt, poderia comer de boca fechada e usar os talheres apropriados para cada prato, por favor?

– Ah, Rod, não precisamos fazer cerimônia! Só tem eu e você aqui!

De fato ele estava com a razão. As visitas das garotas eram sempre vistas de outra sala pela minha mãe, a qual vibrava a cada pergunta certa, mas esse cuidado não era necessário quando era Gilbert ali. Com certeza minha mãe estava vendo o jornal com uma xícara de seu chá favorito, alheia a tudo que pudesse estar acontecendo naquela sala. No entanto, não era a preocupação com a aparência que me incomodava, era simplesmente o fato de um rapaz de boa família ser incapaz de diferenciar os talheres para cada sobremesa.

– Não me importo com cerimônias, mas eu consigo ver até seu estômago pela sua boca.

– Aristocrata, deixe-me comer sem ouvir reclamações! Parece até minha mãe!

– Acho que deveria ouvir mais sua mãe.

Ele deu outra mordida violenta na minha pobre torta e olhou para o espelho com seus olhos vermelhos. Eu nunca tinha visto alguém com aquela cor, claro que estava me baseando no que via na televisão, talvez meus vizinhos possuíssem um vermelho semelhante nos olhos. Eu também tenho uma cor peculiar nos olhos, violeta é uma cor extremamente rara, talvez não tão rara quanto o vermelho. Mas não foi a cor que me perturbou, foi o olhar. Ele parecia me analisar tão severamente que cobri o nariz com a mão, imaginando que o espelho não estivesse cumprindo com sua função de me esconder.

– Você fala como um velho, Rod. Quantos anos você tem?

– Vinte e um.

– Sério?! Então sou mais velho que você! Tenho 25!

– É normal para as pessoas competirem com a idade?

– Sim, muito normal. Na verdade há uma hierarquia social que diz que devemos sempre obedecer aos mais velhos. Então você deve fazer o que o incrível eu manda, jovem mestre!

– Não sou tão alheio à vida quanto você pensa, senhor Beilschmidt.

Ele riu novamente e prosseguimos nossa conversa. Em poucas visitas, eu já sabia boa parte da vida de Gilbert. Ele tinha 25 anos e trabalhava como diretor-júnior da empresa de seu pai, seus melhores amigos no mundo inteiro eram Antonio e Francis e ele amava animais tanto quanto amava sua irmã mais nova. Aliás, para ele, não existia nada mais puro no mundo que Monika e sempre falava com convicção que sua irmã deveria ser a garota mais bonita da cidade. Eu não tinha como discordar da beleza dela, mas o lembrei de que enquanto conversávamos, ela estava com o italiano, claro que ele não gostou do que insinuei e tive que contê-lo antes que quebrasse o vidro. Duas características de sua personalidade eram que ele era extremamente explosivo e narcisista. Uma vez admitiu que estava chegando ao ponto de apaixonar-se por mim, pois sempre me via como seu reflexo e para ele, era desumano não se apaixonar por alguém tão bonito.

Sobre mim não havia muito o que saber, comentei da maldição e de como me livraria dela, das minhas músicas favoritas, dos livros que gostava e da minha aversão por cachorros. Para cada coisa que ele descobria sobre mim, comentava o quanto eu tinha hobbys femininos e perfeitos para uma esposa. Disse também da minha paixão por romances e que já havia lido quase todos da nossa biblioteca particular, já ele admitiu preferir algo mais heroico, onde pudesse se ver no lugar do personagem. Minha maior ambição era livrar-me da maldição e torna-me um pianista de sucesso, a dele era adotar uma criança. Nós éramos tão extremos que muitas vezes não concordávamos em nada, mas mesmo assim ele continuava vindo a cada dois dias, sempre no mesmo horário.

As visitas de Gilbert eram muito mais divertidas e prazerosas do que as das senhoritas que eventualmente apareciam, eu supus que isso acontecesse porque nós éramos homens e poderíamos conversas sem tantas precações. Estava conversando com uma delas naquela tarde, uma bela mulher de modos finos e delicados. Aquela era a terceira vez que nós conversávamos, mas eu pouco sabia sobre ela, suas palavras não saiam das festas e de suas relações superficiais com membros da alta sociedade. É desnecessário dizer o quanto ela era fútil e me desagradava imensamente gastar meu tempo e minhas boas maneiras com ela.

– Senhor Roderich, quando poderei vê-lo? – Disse ela quando se estabeleceu um silêncio desconfortável entre nós. Eu sabia que ela não queria de fato ver-me, aquela era uma frase que costumava ouvir muito quando elas não tinham mais nada a dizer.

– É de seu interesse?

– Evidente que sim.

No mesmo instante abri a porta oculta na parede e a jovem saiu correndo quando me viu, como já era esperado. Gilbert teve a sorte de chegar no momento exato em que fechei a porta. Eu não queria que ele me visse ainda, não porque tinha receio de que fosse embora como as garotas, apenas achava que não era a hora. Quando me cansasse de sua companhia, me revelaria, mas no momento, queria conversar com ele.

– O que eu perdi, jovem mestre?

– Nada de importante, apenas estava me livrando de um “incomodo”.

– Eu adoraria ter seus “incômodos”, aristocrata. Kesesese!

– Então vá atrás dele, nada te prende aqui!

– Kesesese! Não precisa ter ciúmes, Rod! O incrível eu não irá abandoná-lo!

– Cale-se! Não tenho ciúmes de você!

Ficamos calados e acompanhei Gilbert com os olhos até ele sentar no sofá e pôr as mãos na cabeça, parecendo angustiado com alguma coisa. Eu desejava saber o que o afligia, mas tinha vergonha em demonstrar interesse em seus problemas, além, é claro, do medo de não saber lidar com a resposta. Tinha que ser inteligente e pensar em algo que pudesse satisfazer minha curiosidade e não me deixar refém de uma série de brincadeiras desconfortáveis.

– Está passando mal? – Era a pergunta perfeita. Estava cometendo um pequeno engano proposital, não era como perguntar de sua intimidade, mas também não demonstrava total descaso com seu desconforto.

– Você costuma entrevistar quantas garotas por dia?

– Bem… Eu converso apenas com uma durante um mês. Por que a pergunta?

– Por nada. – Ele fez uma expressão emburrada e olhou para o lado. – Estou cansado porque não dormi direito.

– Pode dormir agora.

– Só se eu puder colocar a cabeça no seu colo, jovem mestre!

– De forma alguma!

– Então ao menos toque alguma coisa no piano!

Olhei para eu piano engolindo em seco. Gilbert nunca tinha demonstrado interesse em me ouvir tocar e eu encarei aquilo com desconfiança, pois imaginei que nem todos os rapazes de nossa idade tivessem interesse pela música clássica. Que composição seria de seu agrado? Talvez as músicas de Ravel o agradassem, julgando pela sua personalidade, mas eu sempre errava o tempo das notas. Sendo assim, tocar Chopin deveria ser a melhor opção já que era minha especialidade, no entanto, a medida que me aproximava do piano, a composição “Outono” de Vivald ficava mais nítida em minha mente. Mas por que ela? Talvez fosse óbvio demais tocar uma música tão popular, mas não podia perder mais tempo, eu não queria que Gilbert pensasse que estava preocupado com ele. Evidente que não! Apenas queria tocar algo belo, nada alem disso!

– E então, jovem mestre? Está emocionado por ter o privilégio de tocar para o incrível eu?

– Cale-se! Estou me concentrando, então faça o favor de ficar quieto!

Posicionei meus dedos e dei início à música de Vivald, desligando-me brevemente do mundo para entrar na composição. Quando terminei, olhei para Gilbert e não pude ignorar a expressão angelical que ele tinha ao dormir, me atrevo a dizer que era extremamente adorável. Quando noticiei pensamentos tão frívolos, iniciei outra música, dessa vez, de Bethoven, já que sua família era alemã. Não ouve mudanças no seu rosto e encarei aquilo como algo positivo. Assim que terminei pela segunda vez, me distrai zelando pelo sono de Gilbert, em certo momento, em puro delírio, estiquei o braço para alcançar seu rosto.

Minha mãe não me permitia sequer andar pelo jardim e foram raras as vezes que pude tocar outras pessoas. Movido a curiosidade e um impulso insano, abri a porta oculta pela segunda vez no dia e me aproximei temeroso do loiro aparentemente adormecido com a intenção de acariciar-lhe a bochecha. Ele era quente, sua pele muito macia e seus cabelos extremamente lisos, apenas um pouco rebeldes. Sentei-me no sofá e levantei a cabeça dele para colocá-la em meu colo, como me foi solicitado antes. Passei uma coleção de minutos a alisar seus cabelos e a fitar seu semblante tão calmo, por algum tempo esqueci o mundo que havia maldição, posições sociais, casamento… Estava notando detalhes em Gilbert que pelo espelho me passaram despercebidos, como uma fina cicatriz embaixo do olho e outra mais profunda no canto da boca, provavelmente lembranças de travessuras de quando era mais novo.

A tranquilidade que eu sentia era tão grande que acabei adormecendo brevemente. Ao acordar, corri para meu quarto assustado com o que tinha feito. Eu me expus de uma forma extremamente perigosa para alguém que nem tinha minha completa confiança. O que estava pensando afinal?! Meu único consolo era que Gilbert continuava ali, então ele não tinha tido a infeliz experiência de ver meu nariz, ou se ele viu, julgou ser um sonho e eu não seria capaz de corrigi-lo.

– Por que parou de tocar, Rod?

Tremi com aquela pergunta. Ele estava acordado, não dormiu um único segundo e tinha me visto. Virei de imediato e vi Gilbert coçando o olho cheio de preguiça. Respirei fundo e constatei que eu tinha o acordado ao fechar a porta com certa violência, era óbvio que tinha sido aquilo e quase ri de mim mesmo por ter imaginado outra situação.

– Você já tinha dormido, não havia necessidade de continuar a tocar.

– Claro que havia! O incrível eu só acordou por falta de música! – Ele deu de costas e foi em direção a porta, antes de sair, virou e me disse: - Da próxima vez toque um pouco de Liszt, jovem mestre. E seu tempo no começo de “Outono” estava muito rápido.

Só dissolvi a informação quando ouvi o barulho da porta batendo, mas ainda não conseguia falar nada. Em parte, estava indignado por receber críticas ao meu piano e também estava me perguntando se Gilbert possuía algum conhecimento nessa área. Provavelmente ele deveria saber tocar alguma coisa, mas saber o tempo de uma composição e anunciar um erro com tanta certeza levava um pouco mais de prática e interesse no piano. Sempre havia a possibilidade que ele estivesse falando levianamente a frase que ouviu repetidas vezes quando estava aprendendo, o que me deixava ainda mais curioso a cerca de sua competência no piano.

Já era a terceira semana que suas visitas vinham acontecendo, e durante todo esse tempo, nunca senti que o conhecia menos do que imaginava, até aquele momento. E isso me irritou muito, tanto que não consegui dormir até bolar um jeito de descobrir o quanto ele estava autorizado a criticar meu piano. Quando ele chegasse, pediria uma música. Meu único medo era estar conversando com um Mozart da atualidade e ser completamente trucidado pela sua técnica, mas era um risco que tinha que correr.

Dois dias depois ele voltou alheio a todo meu plano e gritou que já havia chegado, como era comum em todas as suas visitas. Claramente ele percebeu um piano no meio da sala e estranhou sua presença, foi cômico ver a sua voz morrer ao ver o piano.

– O que é isso, Rod?

– É um piano, senhor Beilschmidt.

– Não? Você jura?! Meus olhos me enganaram, pois jurei ter visto um violino!

– Não se exalte, por favor. Queria apenas ouvi-lo tocar, já que mostrou ter entendimento em música clássica semana passada. O senhor se importa?

– É claro que não, aristocrata! O incrível eu nunca se intimidaria com um mero piano! Qual música deseja ouvir? – Ele estava desconfortável, podia até notar pela sua voz que preferia estar fazendo qualquer coisa a tocar para mim. Mas não voltaria com meu plano, estava mais do que determinado a ouvir sua música.

– Deixo a escolha por sua conta.

Ele sentou no piano e eu estava começando a ficar apreensivo pela espera, mas quando ele começou, a música não me golpeou com sua intensidade, para ser franco, mal a reconheci nos primeiros minutos.

– Por que está tocando a música tema de Zelda?

– Porque é uma música clássica! Kesesese! O que estava esperando, jovem mestre?

– Não! Toque algo mais apropriado!

– Não estou te ouvido, Rod! Terá que vir até aqui!

Eu estava transbordando de raiva e só piorava quando via o rosto de Gilbert feliz com a afronta que estava fazendo a mim. Eu pedia para ele parar de tocar, mas ele só respondia que não estava ouvindo, me deixando sem opções. Sai sem medo algum de vê-lo correr pelos corredores, afinal, estava com raiva, seria até bom que ele sumisse de minha frente o mais rápido possível. Segurei seu braço com força o suficiente para impedi-lo de continuar sem ser agressivo.

– Por favor, senhor Beilschmidt, pare de tocar.

– R-rod?! – Ele estava realmente surpreso, mas eu também estava, pois naquele momento ele deveria sair como todos os outros já tinham feito. – Você veio mesmo?!

– Evidente. Você não pararia de tocar essa música se eu não intervisse.

– Kesesese! Você até parece um aristocrata, jovem mestre! Até seu sangue deve ser azul!

– N-não fale bobagens! Você tem uma origem tão nobre quanto a minha! Não tem direito algum de falar!

– Eu nunca chegarei aos seus pés, Rod! Kesesese!

Ficamos um tempo calados. Ele estava agindo normalmente, por isso era tão difícil de aceitar. Como alguém reagiria com naturalidade ao ver-me?! Talvez ele estivesse acostumado com coisas do tipo, mas eu não entendia como aquilo era possível.

– Senhor Beilschmidt, você não se sente desconfortável com… Minha aparência?

– Por que me sentiria, Rod? Eu não imaginava que você fosse tão bonito, a única coisa que não combina com você é o nariz e eu sinceramente não me importo com ele.

– Eu me importo. E muito.

– Bah! Você está claramente ignorando o quanto sua vida é boa! Vem cá, Rod, seu nariz te atrapalha na hora de lavar o rosto?

– O que?! Claro que não, seu tolo!

– Então não tem problema algum!

- Você tem noção do que está dizendo? Eu não posso levar uma vida normal com essa aparência. Eu pretendo ser um pianista e não gostaria de ver a plateia correndo durante a minha apresentação.

- Se essas pessoas não gostam de você como você é, não merecem te ouvir tocar! Você deveria esquecer essa coisa de maldição, então os outros também esqueceriam.

- E como quer que eu "esqueça"? Ele está no meio do meu rosto, se sua visão está tão comprometida, procure um oculista, senhor Beilschmidt.

- Eu não acho que ser um pianista é algo tão majestoso. Eu preferiria viver trancado a trabalhar com pessoas que não me aceitam.

Como ele poderia ser tão insensível?! Ele esqueceu que tinha passado a vida toda trancado dentro de casa, sem conhecer ninguém e ter a chance de ser uma criança normal? Aquela vida era digna para alguém? Eu anos treinando, estudando, praticando para me tornar um homem digno de ser respeitado e ele menosprezava todo meu esforço? Ele queria que eu desistisse de me livrar da maldição e trabalhar num circo dos horrores?! Isso só podia vir de uma pessoa narcisista como ele.

– Você tem noção de como foi crescer com isso?! Eu duvido muito que você saiba! O sonho da minha vida é ser normal para viver pela primeira vez desde que nasci! Enquanto você bebia com seus amigos, eu praticava piano até meus dedos sangrarem, então não venha me dizer que meu nariz não é um problema!

– Eu não disse isso! Só estou dizendo que eu não vejo problema algum nele! Eu entendo suas ambições, mas acho que há coisas mais importantes na vida como por exemplo, as pessoas que gostam de você!

– Eu posso ver quem gosta de mim de verdade! Sinto muito se meus sonhos te incomodam, senhor Beilschmidt!

– Você não vê por que eles me incomodam?!

– Por que você é imaturo e egoísta?!

Nossa discussão estava realmente exaltada e eu tinha a impressão que Gilbert estava se segurando para não me bater tanto quanto eu, éramos dois homens adultos, podíamos resolver nossas desavenças apenas conversando, mas estava difícil. Alguma coisa em minha última frase deixou Gilbert fora de si ao ponto dele sair enfurecido da sala, deixando-me um pouco culpado. Eu o segui pelos corredores perguntando por que ele estava reagindo daquela forma, mas ele só dizia que era imaturo demais para me responder da forma certa. No fundo, eu não queria insultá-lo, mas fiquei indignado com o descaso que ele tratou meus desejos.

– Gilbert! Por que está fazendo isso?!

– Isso é extremamente cruel, sabia, aristocrata?! Não é sua maldição que te prende nessa casa, é você que coloca essas correntes imaginárias!

– Cale-se! Eu passei a vida toda esperando pelo momento em que seria libertado, o que te incomoda afinal? Não ter mais exclusividade na minha agenda?

– Desde quando eu fui exclusivo? Você recebia um monte de candidatas para noivas mesmo com o incrível eu vindo quase todos os dias!

– É diferente! Você quer se comparar com uma futura noiva?! Eu não posso casar-me com você, seu tolo! Você é meu amigo, Gilbert! E eu gostaria que o único amigo que eu tenho me apoiasse!

– Num futuro que eu não estou?! Eu não quero ser seu amigo, aristocrata, entenda isso!

Ele saiu apressado e eu entrei em casa. Mesmo os muros sendo altos, minha mãe não gostaria de ver-me do lado de fora sem motivo para tal. Não o vi saindo, mas também não queria fazê-lo se fosse para ter mais raiva. Sinceramente, não sabia classificar minhas emoções com precisão, poderia ser uma mistura de tristeza com raiva, mas não tinha muita certeza, pois havia algo novo que eu não conseguia classificar. Estava claro que tinha perdido um bom amigo e para piorar, não entendia porque aquilo tinha acontecido, foi uma briga sem precedentes. De uma hora para outra passamos de um clima amistoso para gritos e aborrecimentos. Ele não queria ser meu amigo? Por que aquilo tão de repende? Tinha que haver uma explicação racional, mas eu só a teria quando ele voltasse.

Passou-se dois dias, três, quatro, uma semana. Ele não retornou e encarei isso como o fim de nossa amizade. Talvez ele estivesse apenas sentindo pena de mim, um rapaz sem amigos e deformado que vive preso dentro de casa. Quando pensava nessa possibilidade, rezava para que o motivo de suas faltas tivesse sido a briga, não aguentaria despertar pena em alguém. Eu odiava, com todas as minhas forças, admitir que queria vê-lo de novo, pedir desculpas, falar que ele sempre seria bem vindo em minha casa, mas nunca poderia fazê-lo se não saísse de onde estava.

Eu só poderia estar louco, mas naquela tarde de outono, desobedeci a ordem suprema de minha mãe. Peguei o cartão de crédito do meu pai, o único que eu sabia a senha, e sai de casa. Simples assim. Sem uma única muda de roupa, sem destino e sem experiência alguma com o mundo exterior. Estava começando a maior aventura da minha vida.


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Notas finais do capítulo

Obrigada se você chegou até aqui o/
Espero que tenha gostado e se possivel, ler um review seu ^-^
~Kissus~