Olhos Estreitos escrita por ericalopes


Capítulo 7
07. Five Fingers (Cinco Dedos)




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Fui acordada com o som do trailer se locomovendo. Meu coração disparou. Parecia estar sempre alerta. Ao lado, Glenn dormia como no dia anterior, boca aberta e cabeça totalmente encostada na janela. Aquela cena se repetiria muitas vezes.  Levantei um pouco da cortina com estrema destreza. O sol estava radiante e as crianças faziam algo no meio de uma roda.

Senti-me suficientemente bem para levantar sozinha. Resolvi não acordar o Glenn. Meu cobertor estava quente graças ao sol. Cobri o branquelo com ele e fui para fora verificar de qual sol se tratava.

Levemente ardente, céu sem nuvens e extremamente azul. Céu de sábado, com toda a certeza.

- Ela acordou! – gritou Georgine.

- Ei, olhem minha garota aí! – gritou Dog de cima de uns dos carros. Logo ele saltou e veio na minha direção.

- Bom dia flor do dia! – cumprimentou com aquele sorriso contagiante.

- Bom dia! – eu respondi gargalhando. Eu temia que Dog pudesse me fazer rir mesmo quando eu me esforçasse para não fazer isso. E eu tinha quase certeza que ele acabaria sendo o único ali a conseguir o fazer  e  que usaria isso contra mim sempre que pudesse ou precisasse.

- Eu tenho uma surpresa pra você – anunciou me deixando curiosa.

- Nós temos! – protestou gritantemente a estranha Lucy.

- Ok, nós temos! – garantiu Dog fingindo estar com medo da garota.

- Mal posso esperar! – disse sem saber ao certo o que responder.

Dog passou os braços por meus ombros e me guiou até o que me parecia uma mesa. Chegando mais perto pude constatar, era uma mesa. Toda quebrada e despedaçada mas ainda assim era uma mesa. Nela, algumas tampas de garrafas de refrigerante com pequenas sementes envolvidas em terra estavam alinhadas perfeitamente. Olhei sem conseguir compreender o que era aquilo ou o que significava. Senti-me deveras envergonhada mas depois de alguns instantes tentando decifrar a surpresa, me senti obrigada a perguntar.

- Pessoal, me desculpem, mas eu não entendi. – disse envermelhando imediatamente.

Dog e as crianças riram, o que ao invés de quebrar o ar de tensão acabou por me deixar ainda mais envergonhada.

Dog se aproximou da mesa e me olhando nos olhos disse.

- Isso, são sementes de flores. As mais lindas que eles encontraram. Me chamaram e pediram para retirar sementes ou ao menos raízes para que você continue fazendo o que ama enquanto viajamos.

Não existiria palavra ou qualquer outra coisa no mundo capaz de expressar o que eu senti naquele momento. Sabe quando seu coração congela? Sua visão embaça e você sorri sem ao menos perceber? Foi mais ou menos assim comigo. Como se uma caminhão de lágrimas estivesse sendo derramado nos meus olhos e um punhado de felicidade entrasse no meu coração sem parar.

- Eu não posso acreditar. – eu estava descrente olhando aquilo que parecia tão simples, mas pra mim era a coisa mais linda que alguém poderia ter feito no mundo.

Ajoelhei-me e tentei abraçar todos de uma vez mas meus braços não alcançavam todas aquelas cinturas. Lucy me deu um abraço rápido e sem muito gosto. Mas suas mãos sujas de terra denunciavam que ela também havia participado da caçada as flores.

Levantei-me e dei um semi pulo sobre o grandão carismático a minha frente.

- Você é o cara! – disse dando-lhe um soco leve e certeiro no peito. – Obrigado por isso!

- E você é a garota! – ele retribuiu o gesto.

- Essa é roxa e essa é rosa! – disse Georgine apontando para as tampinhas.

- Claro que não Georgine! Essa é rosa e essa roxa! – gesticulou Ellena discordando da menina.

- São lindas, são todas lindas! – afirmei com extrema felicidade sem me importar com as cores.

- Como você pode saber se elas nem cresceram ainda? – questionou Lucy.

- Porque eu tenho certeza que vocês escolheram as melhores. – respondi a ela piscando um dos olhos. Ela não deu muito importância e continuou com a mesma expressão. Muito metida essa menina.

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Eu procurava dentro de mim e também ao redor explicações cabíveis para o que eles haviam feito mas não havia nada que pudesse responder. Então eu sentei sobre uma cadeira improvisada sobre uma pedra e investiguei curiosa cada um daqueles brotos. Jasmins, Ortodoxas e Carmelitas roxas, eu pude identificar cada espécie a partir de suas raízes.

Olhava a imaginava como ficariam quando crescessem. Eu teria mais cores para definir os dias dali em diante.

Mas foi inevitável, lembrei-me do jardim e da fazenda. De Jenna, Hendrick, papai e mamãe. Lembrei-me de como Jenna amava as flores vermelhas e de quando roubava as minha sementes. Em algum curto período da vida ela me odiava por todos os elogios que recebia pela minha habilidade com as plantas. Isso logo passou quando Jenna descobriu sua incrível habilidade com a montaria. Ela deve ter ganhado algo em torno de 10 ou 15 rodeios em 16 anos de vida.

- Você sabe como eu matei meu primeiro walker? – questionei Dog.

- Com uma flecha? – ele questionou de volta.

A resposta soou irônica, mas quando olhei para sua cara ela parecia ter saído naturalmente ignorante.

- Sim. Eu estava no campo laçando cavalos com Jenna quando avistei algum idiota pisoteando minhas flores. Jenna me alertou que podia ser algum ladrão então eu atirei. Quando nos aproximamos e vimos o que ele era saímos correndo desesperadas e assustadas. Ele era a coisa mais horrível que eu e ela havíamos visto em toda a vida. Jenna saiu para procurar nosso pai e... – eu pausei ao lembrar da cena. – Ele estava sendo... devorado por um daqueles no chão da varanda. Jenna não conseguia se mover. Meu coração doía de tão forte que batia, eu mal conseguia segurar minha alma nas mãos. Minhas pernas tremiam e eu lutava para me manter em pé. Em algum momento eu considerei a possibilidade daquilo ser uma pegadinha sem graça, mas quando um deles arrancou a cabeça dele eu soube que era real.

Dog tinha um semblante assustado e olhos parados sobre os meus. Estava totalmente rígido, como uma estátua. Reviver aquelas cenas era tão terrivelmente assustador como foi na primeira vez. Lembro de Jenna imóvel, em choque, sem conseguir se mover. Eu chamava seu nome mas ela parecia não ouvir. Eles pareciam distraídos o suficiente com as vísceras dele e não notavam Jenna ali em pé a poucos metros deles.

De repente um grito vindo dos campos de arroz. Era mamãe e Tia Margareth. Quatro deles as perseguiam pelo campo. Jenna se virou rapidamente ao ouvir o grito, mas os dois andantes largaram o resto do corpo no chão e notaram Jenna. Eu atirei em um e o matei e Jenna fugiu do outro que eu peguei logo em seguida.

Tia Margareth era gorda e não aguentava correr. Eles a alcançaram e morderam sua perna, mamãe tentou salva-la e foi pega pelo braço. Atirei em seu peito e ele caiu. Mamãe correu para Jenna e nos trancamos no sótão.

Fechei a janela para que ela não visse sua irmã sendo devorada lá fora. Parecia-mos seguras lá em cima, fizemos uma barricada na porta. A única certeza naquela hora era que mamãe morreria, Jenna embora chorasse incontrolavelmente mantia uma expressão estática e olhos dilatados.

Eu tentava acordar daquilo. Olhava mamãe sangrando e perdendo a consciência e desejava ir com ela a todo instante. Desejava nunca ter nascido ou existido. Me perguntava como Deus podia deixar alguém como minha mãe morrer daquele jeito. Pensava em quantas crianças podiam ter acabado daquela forma ou ainda pior.

Não sei em que momento consegui pregar os olhos. Mas quando eu os abri eu desejei nunca ter aberto, nunca.

- Porque? – perguntou Carl curioso, porém muito receoso da resposta.

Hesitei por um longo instante lembrando a cena. O choro subiu-me os olhos e entupindo a minha garganta com as palavras.

- Minha mãe estava... – eu hesitei mais uma vez com a dor das lembranças.

- Aquele, bicho, estava comendo a minha irmã.

As crianças saíram correndo assustadas e com os olhos transbordando em lágrimas. Dog respirou fundo e olhou para o céu passando as mãos pelo rosto.

- Pare, apenas pare de lembrar e contar essas coisas. – ele suplicou.

Eu lutava para desligar o imenso telão que exibia pausadamente todas aquelas cenas na minha cabeça mas ele parecia não ser possível de desligar. A dor, porém, eu nem tentaria amenizar pois sabia que seria eterna e sempre aguda cada vez que se manifestasse.

- Eu me importei com você, desde o primeiro segundo em que a vi – Dog procurou meus olhos e chegou mais perto do meu rosto a fim de os fita-los no fundo.

- Porque? – eu questionei profundamente confusa. Aquela era a questão mais importante desde que eu havia chegado ao grupo. Porque tanta atenção por alguém que estava a beira da morte? Porque parar e me salvar? Era só uma vida, desconhecida. Como muitas que ainda veríamos dali em diante. E foi isso que eu disse a ele.

- Exatamente por isso. Ainda vamos ver muitas pessoas na mesma situação que você, e você entenderá o que eu senti ao te ver. Você acha que eu não consigo explicar, e eu realmente não posso porque está além do que todas as minhas palavras podem expressar.

Mas quando eu te olhei eu tive a certeza que você sobreviveria. Que você era forte assim como eu. E veja só, eu estava certo.

Enquanto Dog tentava justificar o que sentira quando me encontrou, eu lembrei que ele fora o primeiro a sair quando Petterson disse que não havia mais o que fazer. Por um momento aquela pergunta quase escapou-me pela boca mas eu me contive. Não era certo questionar um ato pensado depois de um ato feito. Ele pensou em ir, mas não foi. E isso era tudo que eu deveria pensar.

- Vê? – disse olhando ao redor.

- São muitos! Mas você só têm 5 dedos garota. – tampou uma das minhas mãos com as suas e espalmou a outra mostrando-me cada um dos meus cinco dedos magros.

- Os verdadeiros cabem aqui! – ele afirmou olhando cada vez mais fundo nos olhos e me assustando. - Eles nunca vão dizer, mas eles nos odeiam. Somos negros e inúteis para eles. Somos o peso do grupo. NÃO CONFIE NELES – disse soletrando cada palavra da frase.

Eu encarava seus olhos prestando atenção em cada sílaba ditada por ele. Dog falava com convicção, dedicando-se totalmente ao meu entendimento. Ele precisava que eu soubesse a verdade e fez isso com êxito total.

- Excluir Daryl não é uma opção, é uma lei. Ele é um porco nazista e você e eu somos corpos cremados na mente dele. Por favor mantenha-se longe dele Lara. – implorou apertando minhas mãos.

- Eu soube da confusão no trailer ontem – ele admitiu com cautela. - Se eu estivesse por perto ele já não estaria mais aqui. – não me assustei com isso. Era uma certeza que eu tinha sempre que olhava para o rosto de Dog toda vez que Daryl estava perto.

Eu balancei a cabeça em sinal positivo para ele. Ele retirou a mão que tampava a minha e lentamente soltou a outra. Novamente ele sussurrou.

- Apenas uma mão. – Dog se levantou e sorriu retirando do parâmetro todo o ar pesado e sério da conversa.

Eu respirei aliviada e senti minhas costas estalarem devido a tensão. Tentei me concentrar novamente nas plantas mas aquelas tampas coloridas transformaram-se num grande e confuso emaranhado de linhas.

Levantei-me e continuei a ser seguida pela voz de Dog dizendo:

“Apenas uma mão”.


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