Olhos Estreitos escrita por ericalopes


Capítulo 3
03. Not Today (Hoje não)




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- Vamos garota, abra os olhos. Vamos, vamos, vamos. Abra! – o trabalho de reconhecer a voz suplicante foi quase que imediato. A sensação de estar perdida no tempo mais uma vez era constante. O som do meu coração a bater agora era relativamente mais alto aos meus ouvidos. Ele havia passado de um recém-nascido a um coração crescido e sonoramente mais maduro.

Eu ainda estava viva. Eu pude afirmar com convicção quando a voz de Dog se misturou as minhas batidas. E foi quando eu tentei esboçar meu primeiro sorriso por ainda ter a alma na terra, que a imensa surpresa veio. Eu ainda estava presa dentro de mim.

- Eu disse Dog. Não há nada que possamos fazer agora. – o Doutor parecia nunca mudar de tom, ou expressar algum sentimento mais particular. O que me deixava com certo rancor.

Dog segurava minhas mãos com uma violência dolorosa. Como se aperta-las fosse capaz de me fazer levantar. Eu podia sentir a dor, que era violenta e quase me quebrava os ossos. Mas eu preferia sentir a dor a não sentir nada.

- Vamos deixa-la aqui? Depois de tudo? É isso? Nós a salvamos e a deixamos aqui para morrer de novo? – ele questionou revoltado.

- Eu disse pra deixa-la ai, agora gastamos tempo e suprimentos. Aplicaram a dose de humanismo de vocês, agora vamos embora por favor? – disse Daryl.

- Se você não calar a droga da sua boca, tenho certeza que o cano da minha arma fará isso por você. – ameaçou o até então piedoso Dog.

Daryl não ficou quieto e avançou para cima de Dog desferindo-lhe um soco que o fez cair sobre o meu corpo. Meus ossos pareciam vidros e quebraram-se em milhões de pequenos pedaços quando seu peso se deitou sobre eles. A dor era insuportável, e não poder grita-la só piorava a situação. Os gritos presos na mente me deixavam num estado de transe total.

- Vamos. – determinou o Doutor. – Eu sinto muito por isso Dog, muito mesmo.

Dog deve ter me olhado uma última vez, mas não se despediu. Foi o primeiro a sair. Acompanhado do Doutor e do infeliz Daryl.

- Vamos Coréia! Vai ter mais milhares dele no caminho até Portland para você admirar. – ele não podia sair sem soltar sua última ironia.

Glenn pareceu nem ter se movido ao ouvir a ironia de Daryl. Aproximou-se dois passos de onde eu estava, puxou o ar por um bom tempo e depois o soltou.

- Se você acordar, nós estaremos em Portland, é só seguir a estrada, sem desvios. Linha reta. Ok?

Glenn involuntariamente deve ter esperado por uma resposta. Que eu balbuciei mas não consegui dizer.

Glenn sacou um rádio transmissor do que pareceu ser uma mochila. Abriu a palma de uma das minhas mãos e o colocou sobre ela.

- Aperte esse botão e fale qualquer coisa se acordar está bem? Qualquer coisa. Um gemido, uma letra, qualquer coisa. Eu prometo que não vou sair do lado do meu. – ele pegou um de meus dedos e me ensinou como fazer para usar o aparelho.

- See ya. – ele se despediu pegando suas coisas do chão e me observando alguns breves segundos.

Mais uma vez, ou, como sempre havia sido, a linha entre a morte e a vida estava fina. Quase transparente. Do tipo de coisa que de tão pequena é preciso semicerrar os olhos para se enxergar.

Você já esteve sozinho depois de uma festa ou um show? Já ouviu o barulho de algo extremamente alto ir cessando gradativamente até não haver mais nada? Então imagine a vida sob esse ponto de vista. Um som alto que vai acabando, acabando, até sumir e só haver silêncio. É terrível. O silêncio é o mais próximo da morte que chegamos sem precisarmos de um acidente ou uma doença. Quando dizem que a morte está a nossa espreita, eu desconfio que ela esteja escondida nele.

A esperança foi me dada e arrancada tão violentamente. Eu estava a salvo por um tempo, e no outro eu não estava mais. Ganhar tudo e perder tudo no mesmo instante, como uma taça que se enche e se esvazia num só gole. Era assim que eu me sentia. Como se alguém ou algo estivesse me forçando a aceitar que eu tinha que morrer. Que eu iria morrer não importasse  quão louca e inesperadas fossem as situações de quase salvamento eu tivesse vivido ou ainda pudesse viver. Eu iria morrer e isso não mudaria. A morte só estava brincando comigo, me fazendo sofrer antes de me levar de vez.

Então pra quê? Resistir, chorar, e me amargar por dentro? Porque não deixa-la brincar e ignora-la? Afinal acabaria, não é? Acabaria uma hora outra. Apenas feche seus olhos e aceite Lara, pode demorar, muito ou pouco, mas ela se cansará da brincadeira e irá acontecer. As luzes da sua semi consciência irão se apagar e você deixará de existir. Apenas espere. Concentre-se nas cores misturadas, nos laranjas dos céus. Alguns vivem, outros morrem, os que vivem sofrem, os que morrem, não existem, não sentem. Qual é a melhor opção?

Ouvi o barulho dos motores ressoarem lá fora. Um a um os carros voltavam a estrada.

Obrigada Doutor, por em seu humanismo medicinal, ter demonstrado compaixão por mim. Obrigado Dog, por ter sido tão fiel a alguém que você sequer conhecia. Obrigado Rick, por ter pensado em mim quando toda a sua atenção deveria ser ao seu grupo. Obrigado Glenn pelas breves conversas entre nós três, digo, eu, você e você. E você Daryl, vá para o inferno.

Respirei fundo. Talvez, se eu tivesse respirado daquela maneira quando eles ainda estavam lá, só talvez eles não tivessem me deixado. A posição era extremamente desconfortável, causava coceiras e pinicões, não era exatamente propícia para morrer.

Tentei me ajustar internamente, mas o corpo não respondia aos comandos. Eu parecia estar acorrentada por milhares de cintas que me deixavam imóvel.

- Ok, se você vai me matar. Me mata logo ok? – eu implorei em pensamento para ela.

Meu coração deu um tranco gelado quando o rádio transmissor xiou ao lado do meu ouvido.

- Até mais. – Glenn se despedira outra vez. Vocês devem saber que pessoas que se despedem mais de uma vez são o tipo mais esperançoso do mundo. E devo confessar que eu odeio pessoas esperançosas. Mas Glenn era uma pessoa que não me irritava, e não era pela situação que eu não o odiava. Ele podia ser o último ser humano na face da terra, se ele fosse esperançoso, ainda assim eu não o odiaria.

Senti uma lágrima lavar um canto da minha face. O ronco do motor do último carro começava a arrancar. A arrancar não somente o automóvel mas também o resto de vida que eu ainda tinha. A dor na alma misturou-se com a dor do meu corpo, e a tarefa de aceitar a morte e espera-la ali naquela cama se tornou mais difícil após o adeus de Glenn. Ele realmente acreditava que eu iria me levantar dali? Ou ele queria se fazer e me fazer acreditar que eu conseguiria? Aquilo era esperança de verdade ou de mentira? Alguém se esforçando para acreditar em algo? Eu e minha mania de tentar desvendar os seres humanos. Mesmo num leito de morte eu ainda conseguia gerar milhões de questões.

Esforcei-me na última das minhas forças. Permita-me somente admirar a sua partida. E foi assim, envolvendo o pedido suplicante de ternura, que a morte me permitiu abrir os olhos e desembaçar lentamente as cores pela janela. Levando o amarelo das plantações de arroz de volta ao seu lugar, os azuis e brancos das paredes de volta as mesmas, o laranja do céu a ser distribuído como antes. Então eu vi Glenn encostado em seu carro, uma caminhonete vermelha. Ele segurava o rádio nas mãos e fitava a janela imóvel.

A morte desatou as cintas. O corpo pesado permitia-me mexer os dedos e talvez o corpo todo caso eu conseguisse forças.

Não, hoje não. Talvez amanhã, talvez depois, talvez um dia. O futuro pode não ser longo mas ele deve me guardar alguma coisa. Eu não posso parar aqui, não.

- Eu estou aqui. – sussurrei pelo transmissor.

É hora de recomeçar.


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Notas finais do capítulo

Agora a história começa realmente. :)