Correndo.

                Eu estava correndo em uma floresta, mas não era meu corpo, era de um homem. Ele estava correndo desesperado, algo estava atrás dele, algo grande. A floresta era escura não deu para ver muitos detalhes do que estava acontecendo ou onde ele estava, nem como ele era, eu só podia sentir a sua dor sufocante na barriga, como se algo pontudo tivesse o atingido. Ele estava morrendo.

                - Kassie Way! Levante, está atrasada novamente... – minha mãe gritava da cozinha.

                Ela continuou falando, só que meus ouvidos se fecharam, eu ainda escutava os estalos da dor. Pontos pretos dançavam na minha frente quando tentei levantar, estava atrasada mais uma vez, era a quarta vez nesse mês. Era sempre os mesmos sonhos que me impediam de acordar, um homem, uma velha lembrança talvez, mas que eu não conseguia distinguir em que parte da minha memória ele estava.

                Correndo de algo grande, quase morrendo precisando da minha ajuda. O sonho ficava mais claro a cada dia, a três noites atrás eu não podia ver o livro que ele segurava, se tornava mais nítido, mas ainda não era simplesmente visível.

                Levantei com um pulo depois que a sensação de medo foi embora. “Era só um sonho”, repetia para mim mesma. Não deu tempo de arrumar a cama, minha mãe teria que perdoar. Quase pisei no meu trabalho de física que comecei e não terminei na noite passada. Imagens me impediam de continuar, elas pediam para serem desenhadas. Meu quarto era cheio de desenhos por toda parte, desenhos estranhos de monstros e pessoas de outra época, minha mãe tentou jogar fora uma vez, só que eu desenhava de novo, essa terrível sensação de “casa”.

                Fui desviando dos papeis até o banheiro, a Lily teria que me emprestar o dever. Ao olhar no espelho vi o quanto terrível estava. Meu cabelo loiro escuro se desprendendo do coque, meus olhos estavam mais escuros do que eram, estava toda suada, como se estivesse corrido uma maratona. Acordei do meu devaneio, não tinha tempo para ficar me encarando no espelho, ainda mais porque eu não gostava do que via.

                Depois do banho coloquei a primeira roupa que vi no armário, essa era aparte boa da minha escola, não exigia uniforme, mas era uma ótima desculpa para as meninas e Mindy se acharem tão superiores, como se a roupa delas fossem grande coisa.  

                Coloquei um short jeans curto e uma blusa lisa rosa, prendi meu cabelo em um rabo de cavalo, não estava feliz com a minha aparência, mas não tinha escolha. Peguei a mochila jogada de baixo da cama, joguei os cadernos e os livros, além do dever pela metade.

                Desci as escadas de dois em dois degraus, quando cheguei à cozinha Lily estava sentada impaciente tomando uma garrafa de suco de laranja. Ela era a minha melhor amiga desde os cinco anos de idade. Quando fomos a fazendo do pai dela, aos seis anos, ela decidiu ser vegetariana, ela amava animais, era uma paixão totalmente estranha. Depois ela só usava coisas ecológicas, não que eu me importasse, até ajudava, mas tinha hora que era extremamente irritante.

                Ela estava usando um vestido florido rosa, e seu cabelo totalmente negro estava preso em uma trança embutida, ela me encarava com aqueles olhos dourados.

                - Sabe que horas são Kassie? – ela disse num tom de reprovação, era difícil de acreditar que uma menina tão doce, poderia ficar assustadora quando nervosa.

                - Onde está a minha mãe? – perguntei ignorando a pergunta dela.

                - Foi com seu pai no mercado. – ela parou um instante – Não dormiu bem de novo né?

                - Não temos tempo para isso, - peguei uma maçã na fruteira em cima do fogão e corri para a porta – você fez o dever de física?

                - Sim, - ela falou irritada – no carro eu te dou.

                Descemos as escadas do prédio correndo, era difícil ver alguém a essa hora da manhã acordado, mas dessa vez a senhora Lídia estava bem na porta, estava usando um roupão com estampa de gatinhos, seu cabelo estava debaixo da touca, ela sorriu, mas foi um sorriso sinistro, não amável como sempre foi.

                - Parabéns Kassie. – com essa confusão toda esqueci que hoje fazia dezesseis anos – Hoje sua vida mudará, para pior. – o jeito que falou aquelas palavras me fez congelar no último degrau da escada, a Lily já tinha alcançado a porta.

                - Obrigado. – disse por fim, tentando esconder o medo. – um bom dia para senhora. – disse já alcançando a porta, e não olhando para trás.

                - Para você também querida.

                Corri para alcançar Lily no carro, ela estava a ponto de me dar um soco, tínhamos somente meia hora para chegar à escola, e normalmente a gente demorava mais do que isso.

                Quando sentei no carro ela me jogou o caderno de física e acelerou pela rua, quase bati com a cabeça no vidro, joguei minha mochila para trás e olhei para ela indignada.

                - Espere  pelo menos eu botar o cinto senhora apressadinha – comecei a copiar o dever.

                - Se não fosse seu aniversario hoje... – ela não precisava terminar. Lily era de uma família rica, seu pai era dono de uma grande empresa, por isso quando fez dezesseis anos seu pai fez questão de dar um carro, desde então vamos à escola no carro dela.

                - Ainda estou esperando meu presente.

                - Só mais tarde. – ela tentou esconder um sorriso.

                Já tinha acabado de copiar o dever e estava , desenhando o livro que sonhei. Lily encarou, mas não perguntou nada já estava acostumada com meus desenhos estranhos, procurei algo para apoiar o desenho e achei um caderno no chão, olhei para ela:

                - É do Lian?

                - Sim, estudamos ontem e ele acabou esquecendo.

                - Estudando é? – ele me deu um leve tapa e tentou não ficar corada.

                Lian era o namorado dela, ele era o professor de espanhol, começaram com aulas e depois foram para algo mais sério, o único problema deles é que ela não tinha planos de sair da cidade, enquanto ele queria viajar pelo mundo.

                Quando acabei meu desenho era um livro marrom, como os antigos, tinha uma fechadura com a forma de um circulo, na sua capa dizia: “Diatiz Encantrios”, não sei como, mas aquelas letras eram muito comuns, eu conseguia entender o que dizia...

                - O Diário dos Encantos – Lily disse e eu a encarei, como ela podia saber exatamente o que eu ia falar.

                - Como...?

                - Não sei. Olhe. – disse ela pegando um colar de baixo do vestido, era circular imitando pedra do tamanho da palma da sua mão e tinha uns desenhos indecifráveis, e escritos, como estava longe dela, não entendi o que significava. – Meu pai me deu hoje de manhã, não faço ideia do que é, ele me deu todo misterioso e saiu repentinamente quando eu perguntei o que era.

                - Está sendo um dia estranho...

                Seguimos o resto do caminho em silencio. Quando chegamos à escola todo mundo já tinha entrado, corremos antes que o último sinal tocou. Lily correu para o laboratório e fui para aula de física.

                Essa aula tinha dois motivos para ser terrível; primeiro: era física, segundo: eu não tinha par, no dia que escolheram as duplas eu faltei, então faço tudo sozinha. Talvez não dessa vez.

                Cheguei eufórica na porta e pedi permissão para entrar, o professor me encarou com olhar reprovador e eu segui de cabeça baixa para o meu canto solitário. Tentando o máximo possível desviar a atenção de Mindy, o que eu não queria no meu aniversário era aturar aquela garota.

                Sentei sem perceber que tinha alguém do meu lado, quando olhei levei um susto. Era um garoto, mas não um garoto qualquer, era O garoto. Loiro de olhos azuis, usava uma calça jeans desbotada, all star vermelho, e uma blusa azul com um surfista. Ele estava jogando na cadeira, completamente despreocupado, seus olhos estavam voltados para o colar que pendia em seu pescoço.

                - Hãm... Oi?

                - Olá. – ele falou sem tirar os olhos do colar.

                - É novo aqui? – tentei formular frases inteiras sem gaguejar.

                - Por acaso você já me viu por aqui? – ele levantou os olhos e me encarou por um minuto, algo nele era familiar.

                Virei tentando desviar o olhar, peguei o trabalho e esparramei com o desenho do livro em cima da mesa.

                - O Diário dos Encantos. – olhei para ele nervosa, ele também sabia o que era, e se talvez a Dona Lídia tivesse razão, e a minha vida realmente mudaria.

                - Como você sabe? – no momento que olhei definitivamente para o colar que ele segurava, percebi que era igual ao da Lily, com algumas diferenças, mas o mesmo estilo.

                - Não, sei, quer dizer... Só sei. – ele percebeu que eu olhava para o colar. – o que a de errado com meu colar?

                - Nada é só que... – quando eu ia falar algo me interrompeu.

                - Brian e Kassie, a aula já começou! – o professor me olhava com um olhar ameaçador, ele sempre fazia isso quando era dia de entrega de trabalho.

                 O resto da aula foi irritante, Brian era super inteligente, dava até raiva, ele sabia exatamente tudo, isso tinha um lado bom, ele era meu parceiro. Quando a aula acabou a Mindy estava na porta mostrando seu novo colar, “ela também não”, pensei, tinha o mesmo colar do Brian e da Lily, eu não merecia isso.

                - Kassie... Não morra de inveja querida, se seus pais trabalhassem mais talvez pudesse dar um desses para você. – ela estava usando uma saia, quer dizer um pedaço de pano, era minúsculo e rosa, uma blusa brilhosa e saltos gigantes, seu cabelo ruivo estava preso com uma tiara, seus olhos verdes eram o que mais me dava raiva nela.

                Sempre quis olhos claros e ela tinha, só para aumentar a lista de coisas que eu não gostava dela. Ano passado eu finalmente consegui alguém que gostava de mim, o Frank, ele era um ano mais velho, alto musculoso, tinha cabelos pretos e um cicatriz perto do olho esquerdo, mas não durou muito até que Mindy também se interessasse e roubasse ele.

                - Talvez eu não queira um Mindy. Adorei a saia, pequena e nada de especial como seu cérebro.

                Não quis ficar para receber a resposta, passei pela porta com vontade de sair correndo. Quando sai Brian estava encostado na parede com sua mochila caída no ombro direito, ele continuava com aquele ar de “sou incrível”.

                - Bela resposta, mas eu faria melhor.

                - Me desculpe por não ter a sua mente brilhante – continuei andando, ignorando-o.

                - Espere Kassie. – ele apressou o passo e puxou meu braço. – eu já te vi entes?

                - Acho que não, eu me lembraria de.... – me cortei antes que dissesse “um garoto bonito”, tentei não ruborizar.

                - Bem... Então estou ficando maluco. – ele parou e olhou para o fim do corredor. – está indo para refeitório?

                - Sim.

                - Vou com você, talvez precise da minha proteção.

                - Ah claro.

                Quando íamos para o refeitório, um homem estranho passou por nós, eu olhei para trás e Brian também.

                - Você também viu? – perguntei encarando o homem enquanto sumia.

                - Sim. – ele olhou em volta, ninguém mais via o homem.

                Era ele, o homem dos meus sonhos. Corri atrás dele antes que sumisse, Brian correu atrás, tinha que alcançá-lo entes que sumisse.