Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 14
O Demônio de Mil Olhos




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Trancaram as portas. Fecharam as janelas. Quebraram as lâmpadas. Arrancaram as cortinas. Espalharam vidro pelo chão. Derrubaram os móveis. Destruíram os colchões. Estraçalharam o rádio-relógio. Nina não conseguia lembrar quem fez aquilo tudo, mas não fazia diferença.

A casa agora estava sempre cheia. Estranhos sem rosto andavam por todos os lados. Olhando fotos, mexendo em gavetas, derrubando tudo o que vissem pela frente. Estavam lá quando ela acordava e quando ia dormir, na cama ao seu lado, parados nas portas. Todos queriam a mesma coisa, Nina sabia. Eles queriam ajudá-la a sumir.

Nina tentou ficar de olhos fechados para sempre. Pensou em dormir pela eternidade, mas todas as vezes sonhava com Alex sorrindo, com a voz de Eva, com Cícero tremendo caído no chão ou com um gigante apertando a sua garganta. Sonhos sem começo nem fim, cheios de escombros, cheios de olhos, onde eles pareciam estar sempre distante demais e ela sempre furava os próprios olhos com estacas de vidro. Acordava assustada e via aquela multidão de pessoas sem rosto ao redor da sua cama, só para ter a conclusão infeliz de que ainda estava vendo, afinal, e ainda alucinava, também. Decidiu parar de dormir.

Nina não sabia dizer quando eles começaram a aparecer. Quando se deu conta, já enchiam a casa. Eram todos corpos sem rosto, andando por todos os lados e conversando sem voz entre si.

Às vezes dava para ouvir pelo apartamento batidas na porta e vozes vindas do lado de fora. Sempre desistiam depois de um tempo e tentavam novamente outra hora. As pessoas sem rosto aprenderam a falar com elas e as imitavam o tempo inteiro, em gritos, sussurros, melodias. “Você está bem?”, “Me deixa entrar!” cantavam o dia inteiro nas mais variadas vozes, dentro da cabeça de Nina.

O telefone também gritou, por horas a fio, sem perder o fôlego. Até que algum deles o destruiu com a vassoura, espalhando mais cacos pelo quarto, espalhando mais destruição por Nina.

Nina pensou que talvez devesse ser grata às pessoas sem rosto. Talvez estivessem só a protegendo, como Alex fazia. E pensando nisso se trancou dentro do banheiro, para mantê-los do lado de fora.

O banheiro agora era o seu novo lar. Passava horas, talvez dias, - não sabia mais calcular o tempo -, encolhida contra a parede do box gelado, com medo de dormir para não ter que sonhar. Apesar disso, a cada batida, a cada “Vem, Nina” que as pessoas sem rosto sussurravam enquanto arrastavam mãos por baixo da porta, produzindo o som de unhas arranhando os azulejos, Nina apertava seus olhos com força. Mais de uma vez se pegou apertando com força pedaços afiados do espelho quebrado nas mãos, como nos sonhos, então se assustava com a dor dos cortes que abriam e os atirava para longe. Amarrou o pedaço de algo rasgado no rosto, sujando tudo com seu próprio sangue, e mesmo assim raramente abria os olhos. Sabia que se o fizesse iria ter certeza que a desgraça ainda manchava seu corpo, veria os contornos do caos em que a sua vida se transformou e em cada sombra veria as vidas que ela arruinou no seu egoísmo por ver novamente. Os estranhos chamavam, puxando a maçaneta, esmurrando a porta. Nina tremia e soluçava, mandando todos eles irem embora. Gritava tanto que sua garganta ficou rouca. Até que, um dia, eles pararam.

Nina não ouviu mais nada. Sentiu frio dentro de seus ossos e cada pedaço do seu corpo arrepiou-se por inteiro. Um medo abrasador envolveu seu coração como uma luva e apertou. Eles estavam alí dentro. Acharam alguma forma de entrar. Podia senti-los. Arriscou abrir os olhos dentro da sua venda manchada de sangue e viu ao invés de pessoas sem rosto, milhares e milhares de olhos estranhos, diretamente focados nela.

O seu coração saltou dentro do peito ao ouvir um ruído baixo do seu lado. Um soluço de criança em meio ao silêncio mórbido de expectativa. Nina viu através da sua venda qualquer coisa pequena encolhida ao lado da pia, um pequeno borrão branco. O soluço constrangido se repetiu, um choro tímido e medroso. Nina arrancou a venda e viu uma garotinha encolhida contra a parede. Não sabia dizer quando ela tinha aparecido ou se era real ou não, mas não parecia ser uma das pessoas sem rosto. Ao mesmo tempo em que a via como um borrão branco também podia ver seu vestido azul sujo de lama e terra, os dedos pequenos nas mãos que escondiam o rosto e as pequenas sapatilhas pretas foscas de sujeira.

- Eles querem me levar embora – A garotinha soluçou por entre seus dedos de criança. – Tenho medo deles. Não quero ir, não quero ir!

Nina sentiu calor correr pelo seu sangue. Tinha uma necessidade urgente de consolar a menina, traze-la para perto e protege-las do demônio bizarro de mil olhos que continuavam lhe encarando. Esticou a mão para ela mas a menina se encolheu ainda mais contra o móvel da pia.

            - Não!!

- Eu não vou te machucar – Nina garantiu, devagar, sentindo-se seca e ruidosa pelo desgaste dos dias passados.

    - Você vai – chorou a menina. – Você mandou eles me levarem embora.

     O monstro de mil olhos respirou pesadamente. Nina sentiu o hálito quente soprado contra o seu rosto. A menina soluçou mais alto, desesperada, e continuou:

- Eu não quero voltar pro escuro. Eu não gosto do escuro. Por que você quer me deixar lá? – Perguntou, com toda a mágoa que poderia caber no seu corpo pequeno.

Nina reconheceu o pequeno borrão branco. Da mesma forma que reconheceu a garota do espelho.

- Não vou deixar levarem você embora – disse, vacilante, com lágrimas quentes vindo brotar nos seus olhos.

- Mentira! – A garotinha gritou e chorou com mais força. – Você vai deixar me levarem embora, como deixou levarem o Alex!

Alex. Nina se arrepiou perante a possibilidade de ter entregado Alex ao demônio de mil olhos que assistia a tudo com uma respiração tão ruidosa que ressonava por todo o banheiro. O pequeno borrão branco continuou a gritar para os azulejos.

- Você me esqueceu! Esse tempo todo, você tentou me fazer não existir, mas eu existo! E agora quer me fazer ir de novo... com eles! – Milhares de vozes passaram a ecoar pelo banheiro, tão sólidas que Nina quase era capaz de ver letras cor de fumaça flutuando no teto. – Eu não vou! Não vou, não vou, não vou!!

As vozes sopravam milhões de cores ao mesmo tempo. “Eu te amo, minha princesa”, “Isso é um machucado no seu joelho, mocinha?”, “Baixinha, vamos brincar!”, "Você vai ficar bem sozinha?", "Sucrilhos, mesmo? Será que eu não valho uma desculpa melhor", "Deixa ela em paz, seu bastardo!". Nina sentia crânio quase estourar por todos os ventos que o passado lhe soprava para dentro da mente. Era demais para conseguir suportar.

- Eu sinto muito por ter te deixado  – admitiu, fraca. – Sinto muito por fugir. Eu só queria esquecer tudo. Eu estava errada! Eu errei, demais. – Sorriu entre as suas lágrimas. – Eu não vou mais te deixar sozinha.

A garota levantou o rosto para ela. Nina viu, sem surpresa, que ela não tinha olhos.

- Você promete?

O monstro gritava frases e desculpas e brigas e perdões, tão alto que fazia as paredes tremerem. Todos os olhos demoníacos giravam para todos os lados, criando um furacão em volta das duas.

- Eu prometo.

As coisas que aconteceram a seguir foram como um mergulho profundo em um mar de tinta. O pequeno borrão branco se jogou sobre ela, abraçando e afundando dentro da sua cor, bem quando a porta cedeu sob o machado de um dos bombeiros da guarda municipal e Eva irrompeu dentro do banheiro, em puro desespero, e a tomou nos seus braços. Nina sentiu, meio distante, a sensação gostosa do cheiro da mãe contra o seu nariz, as lágrimas de preocupação dela molhando o topo da sua cabeça como um chuveiro e de ter passado a mão cheias de sangue pelas costas dela, repetindo, baixinho:

- Tá tudo bem, mãe, tá tudo bem. Eu voltei...

Depois disso viu tudo ficar cada vez mais turvo e olhos, com rostos, pairando sobre a sua cabeça, enquanto ela escorregava com um sorriso fraco para a inconsciência.


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Notas finais do capítulo

Finalmente entra em cena as grandes e poderosas forças maternas! Sim! Isso aqui não é Disney onde todo mundo é órfão abandonado que canta na floresta!

Já estamos em reta final de capítulos, no máximo em mais duas semanas essa história tão dramática chega ao fim! Eu queria agradecer desde já por todo o apoio e paranoia de minhas leitoras lindas e avisar que vocês não precisam se preocupar, a maré de má sorte já passou.
No próximo capítulo: Respostas! Mamãe Eva chegou pra botar ordem nessa zona. "Você nunca quis saber de onde você é? Quem são seus pais?" "É tão engraçado que chega a ser deprimente, não é? Eu sempre acabo voltando para lá". E... branco?

Eu poderia trocar o nome da história de "Olhos de Aquarela" pra "A Menina Que Só Se Fode"
hm