Acordei do mesmo pesadelo no meio da madruga. A pele da minha escápula esquerda parecia querer rasgar-se, formigando e queimando. Levantei da cama e tropecei em tudo que encontrei pelo caminho até o banheiro. Consegui ascender a luz e cerrei os olhos para me acostumar à claridade.

Me aproximei do espelho e baixei a manga da camisola na altura do ombros, me colocando de perfil para ver melhor. Havia uma mancha avermelhada, com pontos escuram que transitavam entre o roxo e o preto. Passei as pontas dos dedos ali, mas um simples toque fazia o local arder.

Umedeci a ponta de uma toalha e passei por cima da mancha, grunhindo de dor. Apliquei um pouco de pomada e voltei para a cama, deitando em cima do lado oposto.

Última aula, todos estavam mais preocupados com o almoço do que com as anotações do quadro negro. Hoje eu tenho que voltar para casa sozinha, já que Arkane, Yuka e Mira ainda têm mais duas aulas e o Fran não estava bem. Resolvi deixar avisado que eu voltaria a pé.

Quando o sinal bateu, desci as escadas com tranquilidade e saí pelas portas automáticas. Ao chegar nos portões, fui arrebatada nos braços de alguém. Já ia gritar, mas percebi que era Arthur - o que não deixava a situação menos estranha.

– Yo, Cash-chan - ele sorriu.

Podia ouvir as garotas ao redor murmurando e praguejando diante da visão do loiro.

– O que você está fazendo aqui? - Perguntei secamente.

– Que cruel! Eu vim te buscar.

– Você deveria estar na faculdade, não é mesmo? Espera só a Alex-chan saber que você está cabulando as aulas - eu ri maldosa.

– Ah, mas lá estava muito chato - ele fez biquinho. - E aí, vamos tomar sorvete?

– Não acha melhor voltarmos pra mansão? Duvido muito que você dirija com segurança - gesticulei para o Aston Martin vermelho parado do outro lado da rua.

O celular dele começou a tocar, então peguei as chaves e fui para o carro. passados uns dois minutos Arthur entro no Aston, com um olhar sério e decido, que raramente aparecia em seu rosto.

– Alguma coisa errada?

– Hã? Ah, não! Era só a Alex-chan querendo saber porquê eu deixei a faculdade mais cedo - ele riu forçado.

– Aham, sei - fingi engolir a desculpa.

Até poderia ser a Alex, mas duvido muito que foi isso que ela disse.

– Pra que sorveteria vamos?

– Hm, que tal a Gelato Mio? - Ele sugeriu.

– Yuup, vamos nessa!! - Fiquei animada.

Finalmente cheguei na Black Rose. Os portões se abriram assim que a câmera captou a imagem do carro. Dirigi vagarosamente até a rampa da garagem. Deixei que o manobrista colocasse o veículo no devido lugar e subi para o andar térreo pelo elevador.

Pelo silêncio que assombrava a sala principal, deduzi que as crianças ainda estavam no colégio e Cashmire e Fran em seus quartos. Alex apareceu no mezanino e me disse para acompanhá-la.

– E então, onde está todo mundo? - Perguntei.

– Fran está de cama, as garotas ainda não voltaram do colégio e Cash e Arthur estão dando uma volta - ela informou.

– Cashmire deveria estar aqui fazendo seus deveres de casa - soou um pouco grosso.

– Ela está triste porque seu agente não retornou da missão, está se sentindo abandonada - ela apontou para mim. - Tínhamos que distrai-la até você chegar, e ela não poderia estar aqui agora.

Chegamos no escritório. Todos os outros agentes estavam sentados ao redor de uma mesa redonda com uma superfície de vidro emoldurada por mogno escuro. Um globo baixo com fios de cristais pendendo de alguns pontos se salientava sobre a mesa, deixando a sala com uma aura fantasmagórica.

– E aí está nosso campeão!! - Hikaru gritou.

– Campeão? Eu não diria isso. Não ganhei nada, na verdade eu só perdi - ri sarcástico e ocupei meu lugar no círculo. - Afinal, pelo o que eu acabo de saber, a senhorita Blackie está extremamente chateada comigo.

– Isso é apenas um detalhe, Blackie-san terá de deixar de depender de você um dia - Kain cuspiu.

– Mas isso vai muito além do que minhas responsabilidades para com ela, Drayer-kun. E a senhorita Blackie não depende de mim para a maioria das coisas, ela não é como a Meiko-san.

Kain levantou-se num pulo raivoso, socando as mãos na borda da mesa. Eu ri de canto, enquanto Ginger pedia para que ele se acalmasse.

– E além disso, não fui eu quem pediu para terminar a missão. Eu deveria ter voltado e ficado com a Blackie-hime - apoiei meu cotovelo na mesa.

– Mas você era o único com poderes youkais necessários para cumprir a missão - Alex suspirou. - E nós cuidamos muito bem da Cash.

– Se tivessem cuidado dela tão bem como você diz, ela não estaria triste. Por que não disseram que eu voltaria em alguns dias?

A raiva acumulada na viagem de volta para a Maison de Rosalia estava implorando para explodir em meu peito. Eu podia sentir as íris de meus olhos oscilando no vermelho da minha forma youkai.

– Porque dizer isso colocaria o sigilo da missão em risco - Alex mantinha a voz calma.

– Sem brigas - Yuto pediu. - O que importa é que o Yusuke-san está de volta, que a missão está completa e que a Cashmire-chan vai ficar feliz outra vez.

– Me diga como ela vai ficar feliz, Yuto - eu comecei -, se eu não vou poder lhe dizer a verdade do porquê eu fiquei fora durante quatro dias.

– Minta e omita - Kain aconselhou.

– Jamais, não gosto de mentiras.

– Hm, a Cash-chan vai ficar tão feliz em te ver que vai até esquecer de perguntar a razão de sua demora em voltar e por onde você andou - Hikaru disse.

– Aí é que você se engana - Ginger riu orgulhoso. - Cashmire-hime é uma garota, uma hora as garotas sempre colocam os pés no chão e deixam o coração de lado para esclarecerem as dúvidas da mente.

– Ué, é só continuar enrolando até que o "prêmio" da missão chegue - o ruivo rebateu. - Assim poderemos contar à todos de uma vez.

– Hikaru tem razão - Kain o apoiou. - Se conseguimos deixar Blackie-sama com a mente ocupada até agora, conseguiremos enrolá-la mais um pouco.

– Não vou "enrolá-la" - bufei.

– Ah - Hikaru suspirou pesado e deitou sobre a mesa. - Acho que honestidade demais também chega a ser um defeito, Yusuke-kun.

– Apesar de eu prezar muito os bons modos, temo que você terá de omitir a situação de Cashmire-hime por enquanto, Yusuke-kun - Ginger balançou a cabeça para se livrar de uma mecha da franja que caíra em seus olhos.

Perdi meu olhar no vácuo do ambiente, procurando alguma desculpa para dizer à Cashmire.

– Mas é claro que - Ginger olhou para cada um -, todos nós assumiremos a responsabilidade juntos.

– Hai! - Os outros responderam em uníssono.

– Afinal, somos a família Rosalia, não é mesmo? - Sorriu Hikaru.