Já ouviu falar no termo coagulação? Eu sempre adorei esta palavra.Agora mais do que nunca, já que ela está descrevendo como eu me sinto nesse momento. Ou melhor, como estão minhas palavras, minha raiva e minhas esperanças. Coaguladas, entaladas no meio da minha garganta. Não querem ser engolidas, não querem ser mastigadas só querem ser postas para fora.

Valia qualquer pessoa que ao menos me ouvisse, mas não precisava ser ela. não é mesmo? Hora do chá, fim de tarde. Estávamos reunidos num dos jardins da propriedade, e Shyo, a garota nova, acabara de se juntar a nós. Ela sorria eventualmente e ria baixinho de quase todos os papos furados que eram lançados na mesa.

Minha cabeça estava nas nuvens, pensando em onde e, o mais importante, com quem Kain estava. Ao término do chá, Shyo me pediu para levá-la a um tour pela mansão. Pois bem, tudo ocorreu perfeitamente bem até que ela resolveu me perguntar quem era e onde estava o meu agente.

A primeira pergunta foi fácil de responder, mas a segunda resposta parecia estar travada. Ela então olhou fundo em meus olhos, parecia que procurava um ponto em que o tom de azul de nossas íris se fundissem. Mas tudo o que ela fez foi me dizer o seguinte: "Eu entendo como é ser trocada".

Meu chão ruiu nesse momento, eu me perdi em cada letra que compunha sentença que estava transpassando meu coração. Como ela se atrevia? Acho que só foi mais doloroso porque eu sabia que tinha sido trocada, mas estava tentando tampar isso de todas as formas, ou retardar a chegada dessa conclusão ao centro de meus pensamentos.

Eu explodi com ela, gritei para a mansão inteira ouvir. Disse que ela não tinha o menor direito de falar algo assim pra mim, que não sabia o que era dor, ou que era ser abandonada pela mesma pessoa que te salvou um dia. E a conversa terminou com alguns xingamentos básicos, uma mão levantada na ameaça de um tapa e meus passos pesados de volta ao elevador.

Coagulação é a palavra para definir tudo o que as horas têm significado para mim, como elas tem passado. Não duvido, e até tenho certeza, de que Kain está em algum roteiro romântico na companhia daquela Loren. Talvez eu devesse concordar em deixar a Arkane arrastá-la pelo asfalto e depois queimá-la, seria um belo espetáculo efervescente.

Alguém bateu na porta com uma certa impaciência. Coloquei meus pés no chão e cocei brevemente as pálpebras, correndo até o carpete na frente da porta. Miguel estava de costas, brigando com Viollet para que a garota fosse vestir um blusa menos decotada.

– Ah, Mira-sama - ele se virou para mim. - O jantar será servido dentro de alguns minutos, desça por favor.

– Tudo bem - fechei a porta com delicadeza, mas sem agradecimentos nem nada do tipo.

Só então me lembrei de perguntar se o imprestável do Kain já tinha retornado de seu "folga". Abri a porta numa afobação de garotinha de cinco anos, torcendo para que Miguel não tivesse saído dali.

Para minha sorte, o moreno continuava em pé do lado de fora, numa posição e expressão estática. Ele piscou os olhos meio atordoado e sorriu sarcástico para mim.

– Acho que o Kain-san deveria te dar uma educação melhor. Com sua licença - ele girou os calcanhares, agarrou o braço de Viollet e dobrou no meio do corredor.

Minha mão ficou esticada para o vazio, esperando algo para segurar. Me lembro de Kain brigando comigo para pôr um top ou uma blusa com um decote menor - ou sem decote, de preferência. Acho que Miguel não é do tipo que curte garotinhas mimadas. Voltei para dentro do quarto e fui trocar de roupa.

Vamos recapitular os acontecimentos que se deram em Maison de Rosalia: Viollet e Miguel chegaram no sábado e já tiveram algumas briguinhas, o que nos leva a nossa pequena competiçãozinha da qual Fran foi o vencedor; no domingo fomos no Parque Luminus e levamos um susto do caramba; ontem a Mira e o Kain se desentenderam e deram uma dor de cabeça há mais pra todo mundo; hoje chegaram a Shyo e o Yuichi, e a Mira quase bateu na garota.

Estamos bem na fita, 'né não? Principalmente agora que a mesa de jantar se tornou um campo minado de olhares cruzados, tortos e de canto de olho. Ainda assim, Viollet e Hikaru conseguem sorrir felizes da vida. Ginger fica me encarando de cinco em cinco segundos como se a culpada por essa tensão no ar fosse eu. Esse cara me odeia, fala sério.

– Cash-hime, quer que eu prepare seu prato? - Yusuke ofereceu.

– Por favor.

Um silêncio mortal baixou sobre os belos partos que estavam dispostos sobre a fina peça de fios egípcios que cobria a mesa. Yomi-chan parecia ter se recuperado de seus surtos, mas ainda estava um pouco resguardada.

As portas no fundo da cozinha se abriram tímidas, como se não quisessem dar passagem a pessoa que as estava abrindo. Uma linha de cabelos castanho-escuros cortou o ar, enquanto Kain se virava para fechar a porta. Ele sorriu meio encabulado e, esfregando as mãos uma na outra, virou-se para nós.

– Hehe. Bem, eu perdi alguma coisa?

– Só o seu juízo - Mira jogou, dando um gole em seu suco.

O sobrecenho de Kain se fechou e ele tomou seu lugar na mesa. Seus olhos púrpuros avaliaram os dois estranhos à mesa.

– Oh, novos residentes? - Ele sorriu, acolhedor.

– Não, não. Eles moravam no porão, só resolvemos tirá-los de lá - Mira foi grossa.

Meu Deus, por favor, faça a Mira-chan ficar quietinha na dela. Isso aqui vai terminar em barraco, aposto. Fran também deduziu o mesmo, seus olhos de cor achocolatada com um pitada de magenta desceram e se fixaram em seu prato.

– Err, Kain-kun, esses são Shyo-san e Yuichi-kun - e apresentei os novatos.

– Nossa, que cabelos exóticos - Kain elogiou.

Shyo riu um pouquinho, acho que apenas por educação. Com certeza ela já deve estar acostumada ouvir esse tipo de coisa, não soa mais engraçado. Mira revirou os olhos e bebericou mais uma vez seu suco.

– Hm, então você é o Kain-kun? - Shyo abriu um sorriso infantil e iluminado para o moreno.

– Não, querida, ele é o Baka-san - Mira sorriu infame, parecia estar se divertindo interrompendo as conversas.

– Mira-sama, se a senhorita não tem nada de bom para falar, cale-se - Kain asusmiu um tom severo para com a azulada.

– Por favor, pare com as brincadeiras, Meiko-san - Ginger pousou seu olhar sobre ela.

– Ora, só estou brincando - ela levantou sua taça na direção de Shyo e depois tomou um demorado gole.

– Gostaria de fazer um brinde. Me permite, Cashmire-san? - Shyo olhou em minha direção.

– À vontade - balancei a mão para ela.

Opa, pressinto barraco chegando. Fran me olhou um tanto receoso, como se também tivesse uma leve noção do que estava por fim. Shyo se levantou, numa erupção de organza verde-alga.

– À pessoa mais egoísta que eu já conheci, Mira-chan - ela ergue sua taça e sorriu triunfante.

Quais são suas últimas palavras, Shyo? Mira comprimiu os lábios, as sobrancelhas ficaram um pouco retas e seus olhos expressavam uma fúria avassaladora ao redor dela. Queria que a Alex-chan estivesse aqui, pelo menos ela ia controlar essa fera. Como faremos agora?

Mira se apoiou na mesa, tendo um sorriso sádico, sarcástico e cruel nos lábios. Ela estava linda, principalmente aos olhos das pessoas que não sabem o que ela vai fazer a seguir. Sua taça foi erguida na altura da de Shyo.

– Que tal um brinde para a garota mais va -

Do nada, Fran se elevou sobre a mesa. Ele podia não ser forte, mas é rápido mesmo que não esteja na dua forma youkai. Ele tapou a boca de Mira com uma das mãos, balançando a cabeça em negativo para ela.

– Acho que não é o local nem a situação para que você use esse tipo de palavra, Mira-chan - meu primo tinha os olhos no arranjo de mesa.

Arkane puxou de leve a barra do vestido de Mira e a azulada se sentou inconformada. Shyo lhe lançou um sorriso vitorioso, daqueles que se deliciam em apenas ver a desgraça de terceiros.

– Oh, sua taça está vazia, Shyo-chan - Mira observou. - Permita-me que eu te sirva.

Agora sim ela vai chutar o pau da barraca. Acreditamos na ingenuidade falsa que os olhinhos de Mira transbordavam, aí não pudemos impedir sua façanha. A jarra de vidro com ornamentos de flores foi erguida sobre a cabeça de Shyo, e, inclinando-se aos poucos, a taça despejou boa parte de seu conteúdo diretamente nos cabelos esverdeados e no laço de fitas da garota.

Antes que nada do suco restasse na jarra, Kain segurou o pulso de Mira com firmeza e com a outra mão segurou a jarra para que a mesma não se espatifasse na mesa. Fran soltou um suspiro de alívio, mas teve de abafar um riso com a manga da camisa quando seus olhos bateram na situação de Shyo.

– Acho que foi o suficiente para uma noite, Mira-sama - Kain a repreendeu. - Vamos para o seu quarto.

Mira abaixou a cabeça, permitindo que seu franja lhe cobrisse os olhos, dando um aspecto sombrio a seu rosto. Ela bufou orgulhosa, deu riso doentio e encarou Kain com ódio. Puro ódio que parecia escorrer em cada palavra que ela dizia, um ódio que implorava para nos envolver como um serpente.

– Hump, acho que você não pode opinar. Ou melhor, eu não quero a sua opinião. Por que não oferece suas palavras para a Loren, tenho certeza de que ela vai aceitar qualquer coisa que venha de você.

Mesmo que ela estivesse relutando um pouco, Mira desceu da cadeira e soltou-se de Kain., A jarra foi depositada de volta na mesa. A azulada caminhou com os olhos no chão até a porta, com seu agente logo atrás.

Shyo tinha acabado de digerir o que tinha se passado. Ela olhou para suas mãos, para o vestido arruinado e puxou o laço do cabelo para baixo. Tudo estava empapado de um líquido gelado, grudento, doce e roxo. Os olhos azuis da garota pareceram acender em algo intenso, e ela se levantou num pulo de sua cadeira.

– Você me paga sua b**ch!!

Otoha correu atrás de Meiko, como um touro que planeja acertar o vermelho pano do toureiro - ou melhor, os dois.