Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 18
Possessão


Notas iniciais do capítulo

Boa noite! Espero que gostem desse capítulo!



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Narrador em 3ª Pessoa, Onisciente.

Assim que o sol nasceu, Marie Jean conjurou comida para todos, e Ethan enfeitiçou todos para que ficassem limpos (afinal, fazia dois dias que não tomavam um banho). E logo que estavam prontos, partiram. O sol batia em suas costas, esquentando-as, apesar do vento frio que batia de encontro aos seus rostos magros e abatidos pelo cansaço, tomados pelo mau humor devido à noite mal dormida na grama seca atrás de alguns arbustos no meio do nada, no frio. Àquela altura, já deveriam estar em Limerick, se a bruxa Eleanor não os tivesse encontrado para tentar sua vingança.

Passaram a manhã caminhando pela rodovia. Nem se atreviam a pedir carona, pois ninguém em sã consciência daria carona para seis pessoas. Mal conversavam de tão mau humorados e cansados que estavam. Fizeram uma parada para o almoço e um descanso mais prolongado, e por volta das duas da tarde recomeçaram a caminhar. Eram quase cinco horas quando viram algumas casas ao longe, prova que eram fazendas e que aquele lugar não era de todo um fim de mundo.

Avistaram uma casa menor, perto da beira da estrada e abandonada. Já estava bem escuro; os últimos raios de sol desapareciam no horizonte, atrás de umas colinas.

- Podemos passar a noite ali dentro. Vai ser mais agradável do que dormir de novo na rua, no frio. – Disse Andrew, apontando para a casa.

- Parece estar caindo aos pedaços de tão abandonada, mas é melhor do que nada. – Concordou Harry. O grupo se aproximou devagar, pulou a cerca de ferro enferrujado e caminhou para a varanda da casa. A madeira rangeu sob seus pés, e haviam folhas secas e sujeira por toda a extensão da varanda, e eles sabiam que dentro não deveria ser diferente. Estavam surpresos por não ter nenhuma pichação por ali – se bem que quem pararia num lugar desses para pichar?

Ethan empurrou a porta de madeira, cuja maçaneta estava quebrada, e entrou. A casa era pequena, com papéis de parede antigos descascando as paredes, poeira cobrindo as prateleiras de madeira com tinta branca manchada. Alguns móveis ainda estavam ali dentro, provavelmente comidos por traças e cupins. Havia poeira em todo o lugar. Uma sensação de familiaridade tomou conta do rapaz irlandês, que olhava a todos os detalhes como se quisesse reconstruir a casa com suas memórias, porém nada concreto lhe surgia.

- Estranho... – Murmurou ele.

- O que foi? – Perguntou Marie, que estava ao seu lado, segurando sua mão. A garota não se sentia confortável invadindo uma propriedade privada, mesmo tão abandonada.

- Eu acho que já estive aqui antes. – Disse o rapaz.

- Eu também acho. – Disse Andrew. – Mas não consigo me lembrar de quando e por que, muito menos quem morava aqui.

Ethan assentiu, concordando com Andrew. Simplesmente lhes fugiu da mente as informações que queriam. Mesmo assim, continuariam no lugar. Afinal, havia uma lareira, e a medida que escurecia, esfriava mais devido a proximidade com o inverno.

A casa tinha dois andares, porém resolveram ficar apenas no térreo, todos unidos, como fizeram na noite anterior. Não se sentiam muito seguros ali, como se pressentissem que algo estava errado. Constaram que o abastecimento de água da casa havia sido cortado, e não havia luz elétrica. O casal de bruxos conjurou luzes. Na cozinha restavam alguns enlatados datando de três anos e meio atrás. O fogão ainda tinha gás, e Fred tinha fósforos na mochila, porém eles não tinham o que cozinhar.

Marie Jean limpou a sala com magia, e conjurou alguns colchões e cobertores para que eles pudessem ter finalmente uma boa noite de sono, se tudo lhes ocorresse bem pelo menos uma vez. Ethan estava tentando resolver o problema da comida na cozinha, porém não conseguia conjurar muita coisa além de sanduíches de peito de peru e suco de laranja. Depois de muito tentar conjurar um prato de Fish and Chips ou um de Cottage Pie, mas apenas conseguindo mais sanduíches de peito de peru, scones com geleia e manteiga e suco de laranja, desistiu. Todos concordaram que aquilo era um banquete, se comparado ao que vinham comendo nos últimos dias.

Enquanto comiam, Ethan teve a forte sensação de estar sendo observado pelas costas. Virou-se bruscamente, mas nada enxergou além da parede da cozinha.

- O que foi? – Perguntou Fred.

- Nada... Nada não. – Respondeu o rapaz, voltando à posição original e sentindo o olhar em si, mas não havia ninguém além dos outros cinco em volta da mesa. Não tinha como haver outra pessoa ali. Após terminarem de comer, Andrew deitou ao lado de Kensi em um dos colchões, Harry e Fred ficaram sentados conversando com o casal. Enquanto isso, Marie Jean e Ethan foram para o quintal da casa, forçando a porta dos fundos, que estava emperrada, para poder sair. O vento frio bateu de encontro ao corpo dos dois, e o rapaz congelou.

No meio do quintal, havia um pedestal de pedra na vertical, com entalhes em latim ao redor. Ainda havia sangue seco encrustado na pedra, junto com ossos de ratos e cocô de passarinho. E então, Ethan se lembrou.

“- Por favor, me deixe ir, eu não fiz nada... – Choramingava a garota morena, com cabelo na altura dos ombros e ondulado como uma personagem de novela. Escorria maquiagem pela sua face molhada de lágrimas. Ethan apenas riu.

- Não, queridinha, você tem algo que pertence ao meu mestre, e eu vou pegá-lo de volta. – Respondeu, tirando uma adaga prateada afiadíssima de um case preso ao cinto. Andrew acendia uma fogueira na frente do pedestal, enquanto Fred olhava ao redor para assegurar-se de que não tinham nenhuma plateia inconveniente.

- Quê? – Perguntou ela. – Eu não conheço seu mestre! Eu não tenho nada dele! Por favor, Ethan, me deixe ir embora... Pelo nosso amor...

Os três rapazes começaram a rir alto, divertindo-se com a ingenuidade da garota.

- Ah, por Deus, Allison, você acha que eu te amo? – Ele começou a gargalhar mais alto ainda. – Eu menti! Eu te usei! Me aproveitei de você e o seu corpo enquanto ganhava sua confiança, e sabe para fazer o quê? Matar você!

- Matar? – A garota chorava soluçando. Cada palavra que o rapaz, de uns dezesseis anos, falava, a machucava cada vez mais. – Por quê?

- Porque você é uma maldita bruxa, e merece morrer! – Rosnou ele, com o rosto próximo ao dela. Brandiu a adaga e cortou as palmas das mãos dela em um formato de cruz, e pingou o sangue no fogo, que crepitou mais forte. Então fez uma cruz em uma pedra arroxeada, que conteria o poder da garota até ser entregue para o Mestre. Allison chorava, emitindo um som semelhante ao uivo, de dor e medo. Ethan se deliciava com a maneira em que ela lhe implorava piedade, lhe implorava para não matá-la. Seu instinto predador adorava ver o sofrimento de sua presa, próxima ao abate. Ele então furou sua pele na altura do peito, perto do coração, e ela gritou de dor, e ele pingou aquelas gotas de sangue no fogo. Ethan brandiu a adaga em direção da cabeça da garota, e ela gritou, fazendo-o rir enquanto cortava um tufo de cabelo negro e o deixava cair nas chamas também. Fez um último corte, na altura do ventre da garota, também uma cruz, e começou a recitar as palavras em latim enquanto circundava o altar vertical. Ouvia o barulho dela se contorcendo e o sangue fluindo por suas veias, e adorava o som. Adorava se sentir no poder. Adorava aquela sensação de invencibilidade que o assassinato brutal lhe dava.

Ao completar o círculo, uma última coisa faltava para fechar o feitiço.

Ethan fincou a adaga na cabeça da garota.”

Assim que o flashback terminou, Ethan arfou, se apoiando na soleira da porta. Marie Jean segurou sua mão, e a outra mão estava nas costas dele.

- O que houve? – Perguntou ela, com voz suave e tranquilizante. O rapaz estava visivelmente perturbado e envergonhado em lembrar-se do que era capaz de fazer com uma pessoa inocente, e a lembrança resgatara feridas profundas nele.

- Eu... Eu... Eu matei uma garota aqui. – Respondeu. Marie deu uma olhada rápida para o altar vertical, e entendeu. Um arrepio de medo subiu pela sua espinha, enquanto se lembrava de que esteve a um fio da morte, e por pouco o rapaz a salvara. Mas ninguém tinha salvado a garota que morava ali. Ethan continuou. – Seu nome era Allison. Eu lembrei... Eu lembrei de seu choro, seus gritos, e como eu ignorei tudo aquilo e a matei sem dó nem piedade... Eu...

Ethan estava à beira do choro.

- Eu fui capaz de tudo isso... Eu sou um monstro! – Ele exclamou, virando-se para ela.

- Não, você não é. Você já notou quanta coisa honrável você já fez? – Marie perguntou. – Você salvou minha vida várias vezes, assim como a de nossos amigos, de minha mãe. Você mudou, Ethan.

- Mas eu fiz tudo isso! – Ele apontou para o altar. – Eu matei muita gente inocente!

- Você não pode mudar o passado, Ethan. Mas pode escolher quem você será a partir de agora. E eu tenho certeza que não há nenhum monstro dentro de você. – Marie disse. – Vamos, vamos sair daqui. Você vai ficar mais calmo perto do fogo, e perto dos seus amigos.

Marie Jean fechou a porta, não antes que um vento gélido a atingisse. Não um vento gélido qualquer, era um vento com um toque de magia... De magia maligna.

De volta à sala, Ethan ficou observando o fogo por um tempo, sentado no colchão. Os outros conversavam, mas ele nada falava. E Marie Jean apenas o observava.

Kensi notou o olhar que Marie dava a Ethan. Não era o olhar afetuoso, carinhoso, preocupado que ela geralmente possuía. Era um olhar duro, frio, como se estivesse calculando alguma coisa. A polimorfa pensou que talvez Marie estivesse pensando em alguma coisa sobre os Portões, apenas com os olhos pousados no namorado. Kensi aninhou-se nos braços de Andrew e adormeceu.

Logo, todos estavam dormindo. Todos menos a bruxa, Marie Jean.

A garota observava Ethan dormir, mas dentro de seu corpo sua alma não estava sozinha. A alma de Allison a invadia, enquanto um desejo maligno de vingança dominava seu corpo. Queria matá-lo. Queria vê-lo sofrer. Queria vê-lo pagar por todos os pecados que um dia cometeu contra tantas pessoas inocentes, matando-as por algo que elas nem tiveram escolha. Levantou-se, foi até a mochila e pegou sua adaga. Tocou a ponta de leve, furando seu dedo, contente por ver a arma tão afiada como nunca. Aproximou-se lentamente do rapaz, deitado em um colchão, ressonando levemente.

Marie Jean estava consciente dos atos que seu corpo fazia, mas não tinha controle sobre eles. Lutava contra a dominação de Allison, mas a alma invasora era mais forte. Marie ouvia, entendia as intenções e pensamentos de Allison, e ficava mais desesperada a cada passo que dava em direção a Ethan.

“Allison, pare. Por favor. Eu o amo!” Marie disse em pensamento, sabendo que Allison a ouvia também, e sentindo que ela se divertia com o desespero da bruxa.

“E será que ele o ama de verdade, Marie? Será que ele não a está enganando como fez comigo? Afinal, ele afirmou para Eleanor Calder que te engana. E você nunca duvidou?” a voz melodiosa e cruel de Allison ressoou na sua mente.

O corpo de Marie ajoelhou ao lado de Ethan, ao mando de Allison. A mão se levantou, brandindo a adaga.

“Ele morreu por mim. Essa é a maior prova de amor de todas.” Marie retrucou. “Ele matou você porque não tinha escolha, Allison. Ele sofria nas mãos do mestre tanto quanto você sofreu ao morrer, e se duvidar, mais ainda. E Ethan mudou! Você não percebe?”

“Eu percebo que dentro dele, o monstro ainda existe. É só uma questão de tempo para que volte a tona. Eu vou impedir isso... E vou fazer com que ele apodreça no inferno!” Allison gritou em sua mente.

- ETHAN! – A voz de Kensi berrou, despertando o rapaz no momento em que a mão de Marie baixava a adaga com força. Ele desviou no último segundo, apenas arranhando o braço, e a arma perfurou o colchão.

- Marie?! O que você está fazendo?! – Exclamou Ethan, atônito.

- Matando você. – Respondeu a voz de Marie, junto com a voz de Allison. O rapaz se levantou, junto com os outros. Fred pegou uma arma.

- Não! Não! Você pode matar Marie! – Exclamou Kensi, tirando a arma das mãos de Fred.

- Ah, vamos lá... Matar o Romeu, e depois a Julieta... Quão poético é isso? – Marie se viu perguntando, ouvindo sua voz sair grotesca de seus lábios, unida ao som da voz de Allison. A garota possuída deu dois passos para frente, enquanto Ethan recuava. A mente do rapaz trabalhava a mil para entender o que estava acontecendo.

- O que foi, queridinho? Ainda não conseguiu entender? – A garota possuída perguntou. - Não se lembra de mim? A garota que você e seus amiguinhos mataram no quintal desta casa?

- Allison... – Murmurou Ethan, entendendo. Andrew e Fred se entreolharam, apavorados, pensando no que fazer.

- Exato. – A voz grotesca respondeu. – Você me matou há três anos, depois de ter me usado, me enganado. E agora... Eu vou ter minha vingança!

A garota possuída avançou para cima de Ethan, que desviou. Andrew tentou segurá-la por trás, mas ela bateu a sua cabeça na dele, fazendo-o cambalear e acertando-o no abdômen com a adaga, de raspão. Fred pegou um pedaço de madeira que encontrou no chão e tentou acertar a cabeça de Marie Jean, que tentava retomar o controle do próprio corpo, mas a maldade e a crueldade de Allison pouco a pouco tomavam conta da sua alma. Marie Jean, aos poucos, se tornava Allison. A garota se abaixou e chutou Fred, brandindo a adaga contra seu peito e fazendo um corte profundo que atravessava de um lado a outro.

Kensi rosnou, fazendo seus caninos e suas unhas ficarem mais proeminentes. Ela se metamorfoseou pela metade em um lobo, e avançou para cima de Marie, tentando contê-la, mas apesar da polimorfa estar mais forte fisicamente, a agilidade do corpo de Marie havia sido aumentada pela alma de Allison. A garota possuída desviou e fincou a adaga na parte de trás do ombro esquerdo de Kensi, que ganiu de dor e caiu.

Ethan estava parado, atônito, sem reação, vendo a garota que amava sendo possuída por um espírito vingativo e tentando matar todos os seus amigos.

- Então, Ethan... Agora resta apenas eu e você. Quem irá salvá-lo, hein? Ninguém, afinal, você está sozinho agora. – Disse a voz grotesca que vinha do corpo de Marie. Fred tentou se levantar, mas a garota chutou suas costelas, fazendo-o ficar deitado. – E agora, eu vou matar você...

Ethan engoliu em seco, vendo os olhos castanhos da garota que amava se tornarem vermelhos do ódio da alma de Allison, que a possuía. 


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Notas finais do capítulo

O que acharam?



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