Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 16
Sozinho




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Ethan Williams POV – Entardecer de 12 de Novembro.

- M-Mãe? – Gaguejei, andando até a frente da cama, parando de frente ao fantasma. Ela sorria. O mesmo sorriso que eu guardara na memória por todos aqueles anos. O mesmo rosto feliz e carinhoso que eu via cada vez que fechava meus olhos, cada vez que estava com alguma dificuldade. Eu não conseguia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Estavam vendo Maura. Minha mãe. – O quê... Como...

- Meu Deus, Ethan... Eu não consigo acreditar no homem que você se tornou, melhor do que eu e o seu pai jamais poderíamos imaginar... Você se parece com ele. E as suas atitudes mostram tantos traços do seu pai... A coragem, a determinação, a paixão... O sorriso dele...  – Ela disse, erguendo a mão para tocar-me na bochecha, porém tudo o que eu senti foi um ar gélido na região. Fantasmas não podem tocar humanos. Seu sorriso murchou por um segundo, e logo retornou. – Eu estou tão orgulhosa de você, meu querido! Mas eu sinto tanto, tanto por ter te deixado sozinho! Eu nunca deveria ter saído, nunca...

- O que houve? – Perguntei, encontrando a voz. – O que houve quando eu tinha cinco anos? O que tirou você de mim?

- O Mestre havia enviado a mim, seu pai, os pais de Andrew e os de Fred na mesma missão em que vocês estão, porém com objetivos diferentes. Ele queria o poder e as riquezas que a Mortem pode proporcionar... Mas nós falhamos. Os pais de Fred nunca saíram da mansão de Eurídice. Nós continuamos, pois pensávamos que poderíamos trazer Geoff e Karen de volta se completássemos a missão. Entretanto, falhamos em Limerick. – Seu semblante terno estava transformado em pura tristeza. A mais genuína dor cobria sua face. – E a última coisa que eu pensei antes de partir deste mundo foi você, meu querido. E eu não saí do seu lado por todos estes anos, eu e o seu pai.

- Quê? Como assim? Como eu nunca os vi?

- Somos almas, Ethan. Quando o mundo está em seu eixo normal, você não pode nos ver, mas isso não significa que não estávamos lá. Eu fui uma espécie de anjo da guarda para você. Estávamos lá sempre que você precisava. – Ela respondeu, virando a cabeça de lado em um sorriso carinhoso. – Fomos nós que desviamos sua bicicleta daquele ônibus quando você tinha sete anos. Fomos nós que acalmamos aquele cão infernal que você encontrou por acaso quando tinha dez anos. Fomos nós que protegemos você naquele acidente de carro na volta de Paris, naquela missão, quando você tinha quinze anos. E fomos nós que fizemos Harry escorregar naquele ataque fundamental para ter te matado, quando você tinha quase dezessete, em Amsterdã, e havia enganado a garota de Harry, a usado e matado. Estivemos ao seu lado o tempo inteiro. 

- Mesmo eu não merecendo... Mesmo eu tendo me tornado um ser humano terrível... E eu achei que estava sozinho por todos esses anos...

- Você não teve escolha até conhecer Marie, meu querido. Nós sempre o amamos, querido, independente das suas atitudes. E o que você vem fazendo desde que conheceu Marie mostra quem você realmente é, e esta é a parte que nós nos orgulhamos. É por essa parte de você que o defendemos todos esses anos, do jeito que podíamos, lá de além dos portões. – Explicou ela. Sentei-me na cama, ao lado de Marie, ao sentir minhas pernas fraquejarem. Percebi que chorava. As lágrimas geladas escorriam pela minha face e pingavam no meu peito, mas eu não me importava.

- Todos aqueles anos... Todas aquelas vezes que eu fui punido com chicotadas, surras, abstinência de alimentos por ter falhado em alguma coisa. Todas aquelas vezes que sentava sozinho no meu quarto, com as costas ardendo e sangrando, só querendo alguém que pusesse fim no que eu vivia. Eu quis cometer suicídio! – Exclamei, chorando desesperadamente. Estava desabafando coisas que eu nunca contara a ninguém. – Tudo o que eu quis, a minha vida toda, foi ouvir alguém dizer que me amava, alguém dizer que sentia orgulho de mim, alguém me dar carinho, apoio... E eu me senti sozinho!

- Mas você não estava, querido. – Disse minha mãe, se ajoelhando na minha frente. – Nunca esteve, e nunca vai estar. Você nunca sentiu aquele conforto repentino, uma paz, um calor? Éramos seu pai e eu ao seu lado, lhe acariciando e sussurrando-te palavras, para tentar te acalmar. Palavras de almas puras, segundo a lei de além dos portões, podem interferir na alma dos vivos, se estes estiverem receptivos. Eu e seu pai estivemos ao seu lado fazendo o que podíamos, sempre, mas existem coisas que nós não podemos interferir. Coisas que só se compreende no além dos portões... Se não teríamos evitado tudo o que você passou.

- E como você veio? Por que tão de repente?

- Eu precisava falar com você, meu anjo, mostrar para você que nunca te deixei sozinho. Assim que os portões se abriram, eu saí e procurei você. E só agora consegui falar com você, aparecer para você...

- E meu pai, por que não veio? – Perguntei, entre soluços. Senti Marie me abraçar lateralmente, me dando um apoio silencioso.

- Por alguma razão, ele não conseguiu passar pelos portões. Eu não sei por quê. Mas me pediu para te dizer que te ama muito, Ethan. Seu pai ama você. E eu amo você.

Eu não conseguia parar de chorar, não conseguia parar de encará-la e tentar guardar o máximo de detalhes que eu podia. O som da sua voz, o jeito do seu sorriso, do seu cabelo, as pequenas rugas ao lado dos olhos quando ela sorria. E tentava assimilar o fato de que ela sempre esteve lá. Que eu sempre tivera meus pais como meus anjos da guarda.

- Eu sinto tanto, filho, tanto...

- Não foi sua culpa, mãe... Um dia vamos ficar juntos novamente.

- Por favor, não tenha pressa, meu amor. Viva a sua vida junto a mulher que você ama e os seus amigos, viva para um dia formar uma família e dar aos seus filhos o que você não teve. Para vencer diante das dificuldades. Para se tornar um homem melhor do que eu e seu pai jamais imaginamos que você se tornaria, para continuar nos surpreendendo e nos enchendo de orgulho. Para que quando for a hora certa, do jeito certo, você venha e eu possa abraçar você.

Assenti em concordância, soluçando.

- Eu tenho que ir, meu anjo.

- Não, mãe, não vá... – Implorei, esticando a mão como se fosse puxar seu braço, mas minha mão atravessou-o. O vento gélido de encontro a minha pele. A frustração e a dor no meu peito.

- Eu preciso voltar para seu pai. Você vai ficar bem, afinal, você tem a sua segunda família, que é Marie e seus amigos. Aliás, que mulher maravilhosa que o destino escolheu para você hein? – Ela disse, olhando para Marie. – Obrigada, Marie, por cuidar do meu menino. Faça-o feliz, ok?

Marie assentiu, prometendo a minha mãe que me faria feliz para sempre. Elas sorriram uma para a outra. Minha mãe me olhou.

- Nunca, nunca esqueça que nós amamos você, Ethan. E, principalmente, nunca esqueça que quando você mais precisar, estaremos do seu lado para todo o sempre. Adeus, meu menino.

- Não...

Era tarde demais. Ela já havia partido. Fiquei encarando a parede, chorando. Senti a mão de Marie a afagar minhas costas e larguei-me em seus braços, sentindo-a apertar-me contra si, passando-me seu calor e seu apoio. Não sei quanto tempo ficamos daquele jeito. Só sabia o quanto eu estava mudado por dentro. Não de uma maneira ruim, é claro. Estava mais leve, pois várias das minhas perguntas foram respondidas, mas estava triste, também. E ao mesmo tempo, feliz. Eu não acho que isso seja algo compreensível, mas era exatamente como eu me sentia. Feliz por tê-la visto, ter falado com ela, mas triste por tê-la visto partir uma segunda vez.

Assim que me acalmei, Marie beijou minha testa e foi tomar banho, também abalada e surpresa. Vesti uma calça e deitei na cama, olhando para o teto e revivendo as memórias da minha vida inteira sem meus pais, e aquilo continuou me doendo, sempre doeria. Mas doía menos agora que eu sabia não estar sozinho.

Marie deitou na cama e se enroscou nos meus braços, e assim adormecemos.

Na manhã seguinte, seguimos caminho para Limerick. Estavam todos tranquilos – eu não havia contado para os outros o que havia acontecido, mas também estava calmo – enquanto viajámos. Em certa altura, quase chegando à divisa de Kilkenny e Limerick, começou a ventar forte. De repente, um monstro salta na frente do carro. Andrew, que dirigia, se assustou e desviou o carro. Foi tudo muito rápido. Em um segundo, estávamos na rodovia, no outro, estávamos capotando no pasto ao lado.

- Estão todos bem? – Perguntei, grunhindo. Todos responderam sim, grunhindo de dor também. Soltei o cinto de segurança e me espatifei no teto do carro – que havia virado o chão e estava cheio de cacos de vidro. Arrastei-me para fora. Havia uma pantera negra gigantesca no meio da rodovia, nos olhando, e ao lado dela, havia cinco pessoas. Uma garota de cabelos castanhos longos e ondulados fazia carinho na cabeça da pantera alada, que ronronava.

- Ora essa... Vejam se não é Ethan Williams, pessoal? – Disse a garota, cinicamente.

- Quem são vocês? – Perguntei, ouvindo os outros saírem do carro.

- Não se lembra de mim? – A garota perguntou inocentemente.

- Se eu lembrasse, certamente não teria perguntado.

- Talvez o nome Gregory Fletcher te lembre de alguma coisa, então. – Ela sorriu, mas pude ver faíscas de tristeza em seu olhar. Analisei sua fisionomia, achando-a familiar. Forcei a mente e logo, seu nome se tornou claro.

- Eleanor.

A garota sorriu afirmativamente, assentindo.

- O que você quer? – Perguntei.

- No verão passado, você e a sua namoradinha tiraram Gregory de mim. Você tem ideia de como dói ter alguém que ama tirado de você?

“Mais do que você imagina, biscate” pensei. Entretanto, permaneci em silêncio, encarando-a.

- Eu e meus amigos viemos procurando vocês dois há bastante tempo, Williams. Imagine só a nossa alegria quando soubemos que vocês partiram em uma viagem para os portões da Morte! Poderíamos então vingar o meu amado e, de quebra, consegui-lo de volta pelos portões.

- E como você planeja a sua vingança, queridinha? – Perguntei irônico, cruzando os braços.

- Da forma mais dolorosa possível. Olho por olho, dente por dente. Gota de sangue por gota de sangue... – Ela riu. – Susie, hora do jantar...

A pantera rugiu e começou a correr em nossa direção. Andrew exclamou um palavrão e correu junto com os outros, para de trás do carro. Com magia, convoquei nossas mochilas onde estavam as armas. Peguei minhas duas adagas longas e joguei a mochila mais para longe. Encontrei os outros, agachados atrás do carro. Em alguns segundos, a besta nos alcançaria.

- Qual é o plano? – Harry perguntou, sacando sua espada.

- Matar a besta. Depois matar aquela desgraçada. – Respondi.  Kensi se metamorfoseou em um tigre branco gigante e saiu. Levantamos e vimos que ela travava uma batalha de garras e dentes com a besta, mas não estava com muita vantagem.

- Fure os olhos, Kensi! Os olhos! – Andrew gritou. Kensi se afastou, transformou-se em uma águia e começou a circundar a fera, confundindo-a até conseguir espaço para furar os olhos. Assim que suas garras afiadas perfuraram os olhos do felino, este rugiu de dor, e alcançou Kensi com uma patada, lançando-a para um lado. Kensi bateu em uma árvore e transformou-se em humana, permanecendo deitada, semiconsciente, gemendo de dor.

- Agora você vai pagar caro, monstro. – Murmurou Andrew, baixinho, partindo para cima da pantera. Sabendo que ele não conseguiria sozinho, Fred e eu corremos juntos, pulando os três ao mesmo tempo em cima dela. Minha espada passou de raspão pelo dorso, Andrew fez um corte profundo em uma coxa do bicho, e Fred decepou a ponta do rabo. Recuei rapidamente, tentando fugir das garras do monstro, que estava furioso e com dor, mas elas me alcançaram, rasgando minha jaqueta e camiseta, fazendo três arranhões mais fundos. Um raio de luz azul passou por mim, atingindo a besta, e virei para trás tempo suficiente para ver Marie lançando feitiços na pantera. Ela lançou mais um raio, e em seguida outro, atordoando o bicho. A pantera cambaleou, batendo com suas enormes patas e criando sulcos fundos no chão úmido, e caiu de lado, emitindo um som parecido com um gemido, ou um uivo, de dor. Aproximei-me lentamente e finquei as duas adagas na cabeça. Ela rugiu, esperneou e parou.

- Gente, cuidado, o carro vai explodir! – Disse Marie, correndo em nossa direção e puxando-me para junto dela. Virei-me a tempo de projetar um escudo mágico sobre nós, e o carro se desfez em uma explosão enorme e alaranjada. Pedaços de metal, tecido do assento e de alguns pertences que haviam ficado lá dentro voaram em todas as direções. Assim que as coisas pararam de saltar e o carro ficou queimando, olhei para onde estava o grupo de Eleanor. Tinham feito um escudo mágico igual ao nosso – Eleanor também possuía poderes, assim como Gregory também tivera – e agora estavam correndo em nossa direção, empunhando um tipo variado de armas. Clavas, espadas, machados...

- Agora o pau vai comer. – Resmunguei.


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