Ad Limina Portis escrita por Karla Vieira


Capítulo 14
Podre


Notas iniciais do capítulo

Agora todos os capítulos estão aí, na ordem correta, espero que gostem! E por favor, me digam suas opiniões, não ter retorno algum me desanima para postar aqui.



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Fred Storm POV – Entardecer de 11 de Novembro.

Olhei ao redor e encontrei um homem velho, com barba branca e grande, apoiado em um galho longo de madeira. Ao contrário de tudo o que eu já havia visto até então, ele estava vivo.

- Ei! Tem alguém ali! – Apontei, chamando os outros. Comecei a andar em direção ao velho. – Ei, você! Sabe o que aconteceu aqui?

Em vez de me responder, o velho virou as costas e andou. Comecei a segui-lo, chamando-o.

- Fred, espera. – Chamou Ethan. – Não sabemos o que houve!

- Ele obviamente pode nos contar! – Exclamei. – Ei, velho!

- Até onde sabemos, ele pode ser o culpado! Espera, Fred! – Ethan retrucou, mas não lhe dei ouvidos. Tinha uma forte impressão que aquele homem podia resolver o que quer que tivesse acontecido. Continuei seguindo o homem por dentro da cidade, ouvindo os outros me chamando e xingando enquanto vinham atrás de mim. O homem parou na orla da floresta, e se virou.

- Ei! Por que você fugiu? Vai me responder o que houve aqui? – Perguntei. Ele nada respondeu, apenas ficou me olhando, como se me avaliasse. Os outros pararam ao meu lado, e o velho sorriu, e fez um movimento com as mãos. As árvores atrás dele rangeram, e as raízes saltaram para fora, deslizando rapidamente em nossa direção.

- Corram! – Gritei, mas era tarde demais. Os outros haviam sido alcançados, presos pelos pés e estavam sendo arrastados em direção à floresta, sendo imobilizados totalmente por outras raízes. Eles gritavam por minha ajuda, mas eu estava impotente, sem saber o que fazer. Estava desarmado e não tinha nada para lutar contra aquelas raízes malditas. Nem contra o velho feiticeiro.

- Frederick Storm. – O velho disse, calmamente. Olhei-o com raiva. – Muitas vezes, durante o curto espaço de tempo da sua vida, você se provou um péssimo ser humano. Arrogante, cruel, mentiroso, assassino, e entre muitos outros defeitos constroem seu caráter. Algumas coisas podem ter mudado graças ao romance do seu amigo Ethan Williams, porém você continua o mesmo por dentro. Não é?

- Não! O que você quer, seu desgraçado?

- Quero que você prove que mudou. Caso contrário, seus amigos e a cidade de Kilkenny pagarão o preço pelos seus erros.

- Deixe-os ir! Eles não têm nada a ver com o que eu sou ou deixo de ser!

- E como eu puniria você, o seu coração e a sua consciência? A maior dor não é a que você pode suportar fisicamente. A maior punição não é a sua morte. A maior punição, Fred, é saber que você é o culpado pelo sofrimento e morte de cada um dos que você ama, além de centenas de inocentes.

- O que eu tenho que fazer?

- Nos próximos dias, você será testado. Cada vez que você falhar, as raízes sugarão parte da vida de seus amigos, e dos moradores desta cidade. Se falhar três vezes, seus amigos e a cidade Kilkenny da Irlanda sumirão para sempre, e o mundo inteiro sucumbirá as trevas que os portões da Morte contém. Acho bom que você não falhe, Frederick Storm.

- Eu não vou, velho. Tenha certeza disso. – Rosnei para ele. Olhei para os outros, que estavam amarrados em troncos de árvores, enrolados por raízes, de olhos fechados. Não conseguia ver se respiravam. Virei às costas e comecei a andar de volta a cidade. Quem aquele velho era? Por que isso, de repente?

Ao alcançar a cidade, algo havia acontecido. Não havia mais estátua alguma em nenhum lugar. A cidade estava viva novamente. Caminhei pelas ruas, pensando no que o velho queria fazer comigo. Entrei em uma ruela estreita, mais escura, onde havia a parte de trás de algumas lojas, entre elas uma padaria, mais ao fim. A porta da padaria se abriu repentinamente e eu ouvi uma gritaria, e um homem ruivo e maltrapilho saiu correndo, carregando consigo um pacote que eu sabia ter comida. E eu sabia que ele havia roubado.

- Ei, ei, o que está havendo? – Perguntei, segurando-o.

- Por favor, cara, me deixa ir, me deixa ir... – Ele respondeu, desesperado.

- Você roubou daquela loja?

- Peguei apenas uns pães pequenos, cara. Eu tenho família, somos muito pobres, minha mulher está doente e tenho dois filhos pequenos para alimentar! Por favor, cara, me deixa ir...

Dois homens saíram da loja, viram o maltrapilho e começaram a vir em nossa direção.

- Eu vou deixar você ir por causa das crianças. Mas não faça isso novamente. Arrume um emprego e dê um exemplo descente para seus filhos. – Eu disse, sério, olhando nos olhos do homem. Ele assentiu freneticamente, dizendo “eu vou, cara, eu vou, obrigado” e eu o soltei. Ele começou a correr, desesperado, e os dois homens correram atrás dele. Um deles passou por mim me xingando por tê-lo soltado. Voltei a olhar para a ruela, e vi o velho feiticeiro me olhando, lá do final. Ele assentiu, com um meio sorriso, e sumiu.

Conclui que aquele era o primeiro teste, e eu havia passado.

Passei o dia circulando pela cidade, observando a vida em Kilkenny. Parecia que não havia nada de errado acontecendo. Ao anoitecer, retornei ao carro de Niall, que havia sido rebocado para o canto da estrada e havia um papel de multa grudado no vidro. Nada demais. Entrei no carro, que estava aberto, peguei uma adaga e coloquei-a no cinto, e levei o carro até a orla da floresta, indo pela parte mais pobre da cidade. Havia casas pequenas, mal acabadas, algumas bem velhas; e também barracões. Ao dobrar uma rua, procurando um lugar próprio para estacionar, quando avistei uma casa pequena, porém bem cuidada, nova. Estilo georgiano, recém-pintada de azul claro. A garagem estava aberta, e na frente dela, o homem ruivo estava terminando de lavar um carro. O mesmo homem ruivo e maltrapilho, porém agora usando melhores vestimentas.

Parei o carro. Eu estava bravo.

- Então aquela história de mulher doente, dois filhos pequenos e a pobreza são mentiras?! – Exclamei, saindo do carro, em direção ao homem. Ele se virou e sorriu em deboche. – Você mentiu pra mim?!

- E você acreditou? Contei-te a história mais patética e usada por todos e você acreditou? É muita ingenuidade e burrice...

- Você mentiu pra mim. – Resmunguei, ficando extremamente irritado.

- E você só sabe dizer isso? Seus amigos devem ter muita pena de você, não é? – Perguntou ele.

- Não ouse falar dos meus amigos!

- Ora essa... Devem ter te recrutado na ordem dos caçadores por pena... Fraco, burro e medíocre. – Disse ele, olhando-me dos pés a cabeça. – Você envergonha a sociedade caçadora.

- Olhe bem como fala comigo! Fui um caçador melhor do que você jamais será! Ajudei a capturar e matar dezenas de bruxas!

- Tem certeza? Essa sua fraqueza toda só serviu para atrapalhar o Williams. E, aliás, deixou de ser caçador por que, traidor? Largar a irmandade só serviu para provar que você é fraco, inútil e medíocre. Sem nenhuma honra.

Eu estava ficando cada vez mais irritado. Aquele homem estava me ofendendo.

- Cala essa boca! – Explodi, pegando a adaga e avançando para cima dele. O homem riu com escárnio, sagando uma adaga também, para se defender. – E quem é você para falar de mediocridade e honra? Você mente e rouba, com certeza mata, e não tem nenhum escrúpulo!

- E você tem? – Perguntou ele, barrando um ataque meu e revidando. – Convenhamos, Storm, você é o pior, porque fez tudo isso e não teve coragem de admitir que é podre por dentro. Não teve caráter para admitir o que é, o que fez.

Em uma sucessão de ataques, consegui derrubá-lo e abaixei a adaga para matá-lo, porém ele sumiu em névoa. Imediatamente, senti algo de diferente no ar, como se ele ficasse mais seco e estivesse... Sob efeito de magia. Olhei ao redor e todas as casas tinham teias de aranha, e as pessoas que estavam nas ruas estavam em pedra.

- Por que você matou este homem, Fred Storm? – A voz do velho chegou aos meus ouvidos. Olhei para frente e lá estava ele, com suas roupas compridas e acinzentadas, mal costuradas; os cabelos e barba compridos e brancos, e o cajado na mão.

- Ele estava me ofendendo! – Respondi, como se fosse óbvio, ainda sentindo a raiva correndo nas minhas veias.

- Você se provou ser arrogante. E como ele disse, fraco e medíocre. Você poderia ter seguido caminho e o deixado. Mas deixou-se tomar pela raiva e ignorância e mostrou que continua podre por dentro. – O velho disse. – E agora seus amigos vão pagar o preço por isso.

Ele bateu o cajado no chão e vi meus amigos amarrados nas árvores gritando enquanto empalideciam. As pálpebras mexeram de acordo com os olhos revirando nas órbitas, se contorcendo enquanto as raízes se apertavam em seus corpos. Os pés virando pedra.

E de repente, sumiu. A visão, o velho, a cidade enfeitiçada em pedra. A cidade estava viva novamente, porém meus amigos morriam nas mãos daquele velho desgraçado e eu tinha que salvá-los. E eu também estava a mercê do que ele queria fazer.

Encontrei um lugar para estacionar o carro e me ajeitei dentro dele para dormir. Na manhã seguinte, levantei-me, comi um sanduíche que Marie havia feito e havia restado, peguei a adaga e saí do carro. A noite fora péssima. Tivera pesadelos com eles o tempo inteiro. Acordava apenas para retornar a dormir e retornar aos pesadelos, onde eles morriam de diversas maneiras e a cidade desmoronava e sumia na névoa para sempre. Em outro, eles morriam e o mundo escurecia e monstros surgiam de todos os cantos, pois o mundo estava sucumbindo às trevas.

Eu tinha que salvá-los. Eu tinha que provar para aquele velho que eu havia mudado. Que dentro das trevas do meu coração de pedra havia surgido uma luz, um coração de carne e sangue, e estava tomando meu organismo rapidamente. Mas como?

Caminhei pela cidade a esmo, sem saber para onde ir e o que fazer. Perto de uma hospedaria, vi uma cabeleira castanha e cacheada familiar. Aproximei-me e forcei a vista, e identifiquei-a. Era a garota que eu me apaixonara há alguns anos, mas havia me deixado, sumido do mapa por causa de uma proposta de emprego. Na época, era caçadora de bruxas como eu. Era uma pessoa adorável, porém sufocava a si mesma com uma máscara de impetuosidade e crueldade. Era Charlotte. Ou, como eu a chamava, Charlie.

- Charlie! – Chamei-a, alto, no meio da rua. Algumas pessoas me olharam, mas ela não. – Charlotte!

Corri até ela, chamando-a. Ao me aproximar, ela se virou, e sorriu.

- Fred! – Exclamou. – Quanto tempo! Desde...

- Desde que você me abandonou, em Frankfurt, por causa daquele emprego. – Completei a frase, com um tom de tristeza e conformação na voz. Ela sorriu pesarosa.

- Então você provavelmente vai ficar feliz em saber que eu não trabalho mais para aquela mulher. – Ela disse. – Sou uma espécie de mercenária, agora. Trabalho para quem eu quiser... Tentei te encontrar, mas não consegui. Onde você se meteu, Fred?

- Trabalhando pela Europa. – Dei de ombro. – Agora moro na Inglaterra.

- Voltando às raízes... – Ela sorriu. – Vem tomar café comigo, quero saber o que aconteceu com você nesses anos.

Pensei nos meus amigos por um instante. Eles estavam lá, presos, e eu estava conversando com Charlotte. Mas será que tomar um café faria tão mal assim? A hora que o velho tentasse me testar, ele testaria... E só faria mal à eles quando eu falhasse, certo?

- Claro, vamos lá! – Assenti sorrindo.

Entramos em uma cafeteria ali perto e começamos a conversar. Charlie sempre estava arrumando um pretexto para encostar-se a mim. Seu decote era um tanto quanto grande demais, provocativo. Seus lábios pintados de vermelho. Seus cabelos cacheados com o mesmo perfume de tantos anos atrás. Seu sorriso ainda belo. Por vezes, sua mão encostava-se a minha por engano. Colocava o cabelo para trás da orelha. Seu pé esbarrava ao meu sem querer. As mesmas técnicas de sedução de tanto tempo atrás.

O tempo passou e eu voltava a me sentir atraído por ela. Rendido nos seus encantos. Meu desejo de tê-la nos meus braços novamente aumentava cada vez mais. Eu sentia a pulsação na região do baixo ventre, e tentava me controlar. Mas a luxúria, o desejo voltava a medida que relembrávamos nosso passado.

- Charlie... Você não sabe o quanto eu senti a sua falta. – Eu disse, segurando sua mão, temendo que ela se afastasse. O que não fez.

- Eu sei, Fred, eu sei... – Ela acariciou minha mão. Sua voz estava extremamente persuasiva, sedutora, tinha algo diferente. Algo que me fazia querê-la mais.  – Por vezes pensei se eu tinha tomado a decisão certa, de deixá-lo, ir para Frankfurt...

- Então vamos sair daqui. – Eu disse, sorrindo. – Relembrar os velhos tempos...

Charlie sorriu, e por um segundo temi que dissesse não.

- É o que eu mais quero agora. Sentir-te perto de mim.

Sorri e me levantei, segurando-a gentilmente pela mão. Ao sairmos da cafeteria, parei e a observei. Lentamente me aproximei e a beijei, feliz por senti-la de novo. Em seguida, ela riu e me puxou pela mão pela cidade, correndo entre becos e ruas, até chegarmos a uma viela vazia e mais escura, em uma parte quase inabitada da cidade. Prensei-a contra a parede e beijando-a, não podendo mais resistir e controlar meus instintos. Ela parecia estar da mesma maneira. Afobada, puxou minha camiseta para cima, e eu a arranquei rapidamente, fazendo o mesmo com a dela. Peguei-a no colo, descendo os beijos pelo seu pescoço, mas ao retornar para seus lábios, ela desapareceu como em névoa. Deixando-me sozinho no beco vazio.

- Então você deixaria seus amigos de lado por causa da sua luxúria? – A voz do velho ressoou atrás de mim. Virei-me, frustrado. A maldita visão deles sofrendo voltou aos meus olhos, desta vez um pouco pior.

- Você também joga sujo, velho. – Respondi. – Brinca com as partes sensíveis do meu ser. Eu gostava dela! Eu era apaixonado por ela!

- E por causa dessa paixão deixaria seus amigos morrerem?

- Nunca! – Eu estava completamente frustrado, a beira de lágrimas. – Eu nunca os deixaria!

- Você vai ter de provar... E só tem mais uma chance... – E o velho desapareceu. Berrei de raiva e peguei minha camiseta no chão. Vesti-a e saí correndo, procurando chegar a orla da floresta onde eles estavam aprisionados. Corria o mais rápido que eu podia, movido pela minha raiva, pela minha sede de vingança daquele velho estúpido que brincava com os meus sentimentos. As duas provas anteriores, tudo bem. Ele tinha razão, eu era arrogante e medíocre. Mas envolver o que eu sentia pela Charlie era demais. E ainda me acusar de largar meus amigos... Eu nunca os deixaria. Nunca.

Percebi então que eu chorava de frustração e culpa, também. Havia cedido aos encantos da Charlie-espectro-fantasma-conjuração do velho.

Cheguei à orla da floresta e tirei a adaga presa no cinto. Corri para a árvore mais próxima, onde Andrew estava preso, e saltei nas raízes grossas, golpeando-as freneticamente na tentativa de libertá-los. Uma das raízes se moveu e me estalou em mim, lançando-me para metros de distância. Bati com as costas no chão duro e gemi de dor.

- O que você está tentando fazer, Fred Storm? – A voz do velho surgiu.

- Libertar meus amigos. Eu entendi seu jogo. A sua intenção verdadeira é não deixar que nenhum de nós saiamos vivos daqui, pois assim você teria que voltar para o inferno, o lugar que não deveria ter saído. Por isso brinca com meu emocional. – Eu disse, levantando-me. Olhei-o, com a raiva faiscando no olhar. – Você me enfeitiça. Aumenta o poder dos testes em mim. Tudo para fazer com que eu fracasse e você “possa” matar meus amigos. Mas você não vai. Pode me matar, mas aos meus amigos? Nem pensar.

- O que você quer dizer?

- Quero dizer que sim, eu sou um arrogante, medíocre, fraco. Sou suscetível sim aos encantos da Charlie porque tenho sentimentos por ela, e sim, pode ser um problema. Mas sabe o que eu não sou? Não sou desleal. Não sou medroso. Eu não tenho medo de você e não vou deixar meus amigos por causa de você. Quando ao meu jeito podre de ser, isso eu posso mudar. Já estou mudando. Você sabe disso. A Mortem sabe disso. E sabe também que só era o que era porque não tinha outra opção. Mas agora eu tenho. E sabe qual eu escolho? A opção de amar, sentir, e lutar pelo o que eu acho certo. Lutar pelos meus amigos. Agora você pare de ser um covarde e me enfrente como homem!

O velho sorriu.

- Se é este o seu desejo...


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