A Rainha de Copas escrita por Kaya Terachi


Capítulo 22
Morte na família.




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O carro estacionara em frente à prefeitura, onde as pessoas já haviam se dispersado, embora ainda houvesse uma grande quantidade no centro, em volta do trio que ali estava discutindo em bom tom. Alfred saiu do carro correndo, e num único fôlego estava no meio das pessoas, observando tudo ali, e por trás de Bruce, fora capaz de avistá-lo, sentiu seu coração na mão, mas ao ver a faca, sabia que Bruce poderia de soltar por si só, e rezou para que isso de fato ocorresse. Porém outra pessoa também estava ali ao lado dele, a garota ruiva, que embora tivesse suas roupas extravagantes, não chamava tanta atenção quanto as pessoas que brigavam no centro.
O mundo pareceu girar, atônita, Angelique observou os três ali, e aquela imagem que criara ao encontrar seus filhos desaparecera, era uma situação bem diferente da que esperava, afinal seus filhos estavam ali, chutando seu amigo e lhe fazendo ameaças, mas por algum motivo, ela não podia intervir. Não era porque ela queria que Bruce morresse, de forma alguma, e sim porque seus pés estavam plantados no chão, não podia agir, só observava o rosto de seus filhos, que até então não conhecia, os cabelos verdes do menino e os vermelhos da menina, seus rostos tão lindos, e mesmo com aqueles cortes, ainda os achava bonitos. Os filhos sempre são perfeitos aos olhos de uma mãe, ainda mais uma mãe que faria de tudo para protegê-los. Angelique sentiu-se despedaçar ao pensar que havia deixado aquele maldito tirar seus filhos dos braços, sentiu-se como se as lágrimas fossem deixar seus olhos a qualquer momento junto de todos os sentimentos bons e ruins que sentia. Estava novamente com seus filhos, mas não podia abraçá-los, não podia tocá-los, só os observar de longe, e esse era o pior castigo para uma mãe.
Angelique estremeceu, não tinha medo, ao contrário, tinha vontade de correr e abraçá-los, não se importava se eles iriam ou não atirar nela, mas observou, ouvia ainda perturbada a voz da filha e do filho a gritar e só então o torpor se desfez ao ver a arma na mão do garoto. A ruiva então num ato impensado deu um passo a frente da multidão e gritou a plenos pulmões.
– Scarlett! Hunter!
Era o que lhe havia deixado os lábios, ela não sabia se Coringa mantivera os nomes dos filhos, mas pelo visto ele havia feito, já que os nomes atraíram a completa atenção dos jovens a ela, e a observavam atônitos, sem entender como ela sabia os nomes deles.
– Hunter! É a vadia que matou o papai!
Quem havia tomado a dianteira como sempre fora Scarlett, já a tocar a arma presa na cintura ela havia gritado em direção à garota, como se cuspisse as palavras em seu rosto. Hunter permanecera em silencio a observá-la, encarando-a e a arma que tinha em mãos aos poucos abaixou, desviando-se de seu alvo original.
Angelique deu um passo a frente e fora tudo o que conseguiu fazer, congelou, não por não ter coragem de se aproximar, mas porque estava presa, hipnotizada pelo olhar da filha, seus olhos a fitavam buscando a atenção dela, prendendo-a por vários instantes, e em sua mente só se passava o quanto queria matá-la, imaginava-se esfaqueando-a mil vezes no peito, como ela havia feito ao pai.
– Se você fosse inteligente não viria aqui.
– Vocês não me conhecem? Não sabem quem eu sou?
Era mais do que obvio que todos estavam perdidos, era talvez o reencontro mais estranho que já havia ocorrido. Angelique se via em frente a seus filhos que não a reconheciam por achar que estava morta há muito tempo, e isso nem lhe passava pela cabeça naquele momento, se ao menos ela se lembrasse de que Coringa jamais se importou com ninguém alem dele mesmo, talvez ela pudesse compreender melhor. A multidão havia levado Alfred para longe, muitas pessoas estavam ali para ver o desfecho, queriam entender o que estava acontecendo, quando deviam estar preocupadas se levariam ou não um tiro, e Batman ainda estava jogado no chão. É claro que ele já deveria ter-se livrado das amarras, se não fosse por Angelique ter aparecido e tomado a atenção de todos, até dele, ele a observava com os olhos cheios de lágrimas, e a esperança tomando todo o seu peito, sabia que ela ainda era a mesma garota que conhecera há anos atrás, que ela ainda era boa, e ela ali, poderia resolver tudo se ao menos se explicasse, todos queriam uma explicação, todos precisavam desesperadamente de uma, menos Scarlett, que parecia decidida a atirar.
– Hunter, o que você está esperando? Ficou louco? Pegue logo a arma.
O que ela não sabia é que ele não iria atirar, não até saber o que estava acontecendo ali, diferente dela, não era tão louco, tão inquieto, tinha puxado a mãe afinal.
– Como sabia que estaríamos aqui? – Disse ele à ruiva.
– Hunter... Como você cresceu...
– Responda!
Angelique empalideceu, sentindo o coração se despedaçar aos poucos, era realmente isso que ela estava vendo? O próprio filho gritando e lhe dando ordens?
– Tudo pode se explicar se vocês me derem uma chance. Por favor, abaixem as armas.
Scarlett já impaciente com o irmão, observava o rosto dele e se voltava à ruiva, e a Batman vez ou outra para ter certeza de que ele não escaparia.
– Hunter!
– Cale a boca, Scarlett! – Virou-se em direção à ruiva em seguida. – Como sabia que estávamos aqui?! Não me faça perguntar de novo!
Ela hesitou, mas era incompreensível, não podia dizer que era amiga de Batman ou eles se voltariam novamente em direção a ele e a arma estava perto demais de sua cabeça, não queria ver os miolos de ninguém voando naquela tarde, porém, curiosamente suas ideias brilhantes e seu jeito versátil de criar desculpas havia desaparecido, a cabeça estava muito cheia para pensar.
– Por favor, Hunter, abaixe a arma! Eu conto tudo, se você abaixar a arma.
Agora era a vez do garoto de hesitar, com a irmã impaciente ao lado, se largasse a arma ela certamente atiraria dele, louca como era, seria capaz de fazê-lo. Numa medida meio desesperada ele ergueu a arma novamente, apontando-a para Batman.
– Se não me contar, eu mato ele.
Angelique estremeceu, não podia deixá-lo atirar e não tinha uma ideia de distração, o olhar percorreu tudo ao redor sutilmente, mas não achou um meio, uma resposta, estava perdida em pensamentos, sentia-se enlouquecendo, como se estivesse num sonho, tudo parecia muito surreal e foi então que ela voltou a si ao ouvir o barulho de um soco.
Mas não, o soco não havia atingido a Bruce, ela notou ao desviar o olhar a eles novamente, porém algo mais estranho acontecia. Batman havia se soltado, como ele havia cortado as cordas ela não sabia, mas ele estava agora em pé, segurando as mãos do garoto, havia lhe arrancado a arma à força e lhe desferido um soco na face, Scarlett o olhava atônita, afinal, tudo havia acontecido tão rápido que nem ela teve tempo para acompanhar, mas ao perceber, na mesma hora, ela tirou a arma da cintura, apontando-a a Batman, tarde demais, afinal ele já segurava o pescoço do garoto a mantê-lo como uma espécie de refém.
– Largue a arma, Scarlett. Largue a arma!
– Você não vai atirar nele, vai? Você não faria isso... Você não mata.
– Não, mas você sim, se atirar, vai perfurar o seu irmão.
– Ele não se importaria de morrer, não é, Hunter? Tudo para cumprir nosso objetivo.
– Scarlett! – Agora o grito havia vindo da ruiva que observava, e que já tinha se aproximado tanto que estava praticamente ao lado da filha.
– Não se mexa! – Disse ela a retirar outra arma da cintura, que apontou para a garota agora. – Se der mais um passo, eu atiro.
Angelique parou e desviou o olhar a Bruce, não sabia o que ele estava planejando e pelo jeito, nem ele sabia, afinal sua expressão não era das melhores. Tinham a frente uma réplica quase exata do Coringa, ele não se importaria de matar a mulher que havia dedicado a vida a ele se fosse necessário, nem a garota, mataria seu irmão se fosse preciso, mas Hunter não parecia gostar nada da ideia, afinal a observou com um ódio extremo no olhar, era obvio que ele não faria o mesmo se fosse o contrário, mas não podia negar, aquilo tinha que terminar logo, antes que um dos dois saísse morto.
Hunter agiu rápido e numa cotovelada atingiu o outro atrás de si bem no peito, soltando-se e a arma voou longe escorregando pelo chão, ele não a queria mais, estava apenas interessado em saber quem era a mulher ali parada, porque ela não parecia ser quem ele de fato pensava, quem de fato crescera odiando, tinha algo errado. Scarlett dera um passo para trás, incrédula com a atitude do irmão de caminhar até a mulher, se fazendo em frente a ela.
– Quem é você?
– Eu sou sua mãe.
Hunter arregalou os olhos, agora quem estava incrédulo era ele, de fato a achava parecida com sua irmã e com ele, mas nunca esperava ouvir aquilo dela.
– Seu pai deve ter dito a você que eu morri, mas eu sobrevivi, eu sobrevivi, Hunter... Eu procurei vocês seis anos seguidos, jamais deixaria vocês nas mãos daquele maníaco.
Ele estava cada vez mais confuso, as mãos levou até o rosto e o grito morreu na garganta, as palavras que queria dizer não saíram, somente tentava juntar todos os pontos e associar onde ela entrava naquela história, onde as mentiras começaram a ser contadas, e se perguntava o que de fato tinha acontecido para tudo chegar naquele ponto, eram muitas duvidas, mas nenhuma resposta poderia acabar com a sua raiva por ter vivido uma mentira.
– Mentirosa! Como pode chegar aqui, dizer isso e achar que eu vou acreditar em você?!
– Hunter, é verdade... Eu juro. Eu dei os nomes a vocês, eu os escolhi, eu queria que vocês tivessem uma vida digna, a vida que eu não tive, me perdoe, eu tentei encontrar vocês... Eu procurei tanto...
– Cale a boca! – Ele gritou, observando-a já com as lágrimas a escorrer pelo rosto, sem poder mantê-las nos olhos. – Você... Você abandonou a gente... Como pôde?
– Eu jamais abandonaria vocês... – Ela tentou se aproximar, mas o garoto afastou-se num movimento rápido, não queria ser tocado por ela.
– Não me toque!
– Hunter... Por favor... Eu sonhei em encontrar vocês, me deixe ao menos explicar como tudo aconteceu...
– Você não é minha mãe... Não... Não pode ser...
O choro tomou conta dele. De longe todos observavam sem dizer uma palavra, sem ousar interromper. Até Batman que antes lutava, agora se mantinha em silêncio. O choro daquele garoto, que mais parecia uma criança enganada corroia os corações mais do que qualquer ácido poderia fazer. Ela de fato tentava se explicar, mas havia usado as palavras erradas para tentar fazê-lo. Era horrível aos olhos de uma mãe ver um filho chorar tanto, e ela não entendia, ao vê-lo de longe, achara que o filho era a imagem do pai, mas agora percebera que algo nele o fazia se manter são apesar de tantas coisas que lhe haviam acontecido, algo bem fundo guardado em seu coração, que queimava de um modo insuportável a cada vez que olhava pela janela e via passar um casal e seus filhos felizes com o amor que compartilhavam. Era isso, o amor, era o que faltava para ele, e lhe fazia falta, fora isso que o havia trancado em sua sala todos esses anos, fora isso que o fizera começar a produção de armas, pessoas eram difíceis de lidar, principalmente sua irmã, que agia sempre no impulso, cega de adoração pela imagem do pai louco, que perdera a cabeça há muito tempo, que enlouquecera agarrada a uma imagem que nunca lhe dera nem restos de carinho, e talvez olhando por esse ponto, ambos se pareciam muito com a mãe, estavam sempre se agarrando a migalhas, sem realmente conhecer o que era amor de verdade. A diferença é que um havia trocado a sanidade para viver sem precisar se preocupar com tais sentimentos, e o outro havia se agarrado tanto a falta deles que se tornara sério, frio e calculista. Sua imagem agora se dissolvia no chão, junto de suas lágrimas, perdido em pensamentos e em perguntas sem resposta.
Angelique que via seu filho sofrer, não podia deixá-lo chorar daquele modo, ele poderia afastá-la no inicio, mas logo entenderia, ele tinha que entender, e tudo se resolveria, ela tinha certeza, ainda tinha esperança, ambos ainda estavam respirando e isso era suficiente. Enquanto seus corações ainda batessem haveria um jeito de se reconciliarem, haveria um jeito de juntar os pedaços e seguir em frente, e naquele momento ela sabia, que o amor que sentia por eles queimava tão forte em seu peito que achou que podia matá-la.
E podia. Mas ela não morreria de amor, não fora assim tão simples de se resolver, não fora indolor como um simples sonho. Scarlett esticou-se para o chão enquanto todos choravam e ela não poderia suportar ver a assassina tocar seu irmão, antes que ela o tocasse para abraçá-lo, Scarlett destravou a arma e apontando para a ruiva, apertou o gatilho. A bala a atingiu no abdômen e seus braços nem chegaram a alcançar o filho quando seu corpo foi ao chão. Hunter abriu os olhos e os mesmos se encheram de vermelho, dessa vez não estava apenas em suas roupas, mas no chão ao redor dela. Angelique tinha as mãos sobre a ferida, como se ela pudesse estancar o sangue, mas muito já havia se perdido e a dor era excruciante, mas não mais do que perder um filho, não mais do que saber que um filho pode te odiar. Hunter se ajoelhou ao lado dela e as lágrimas molharam novamente a sua face, ela não pôde ouvir, tudo estava embaçado e a ruiva lutava para se manter acordada. Alguém gritava ao fundo para que chamassem uma ambulância e alguém havia chamado a policia, ela não sabia quem, mas isso não era importante, o importante é que a pessoa certa estava segurando sua mão naquela hora, seu filho. Ela piscou várias vezes, se esforçando para se manter acordada, uma lágrima escorreu de seus olhos e o filete de sangue de sua boca, mas Hunter ainda estava ali, imóvel enquanto a observava.
– H-Hunter... – Ela gemeu e o garoto abaixou-se para ouvi-la.
– Mamãe... Você... Você não pode morrer agora , por favor. Nós acabamos de nos encontrar…
– Hunter… Eu…
– Não fale nada, olhe pra mim, continue me olhando, alguém vai te levar ao hospital, por favor, só continue respirando!
–Me escute... Por favor, filho...
Hunter cessou o choro e por um minuto a fala, aproximando-se dela novamente, dispondo-se a ouvi-la.
– O que eu mais queria no mundo inteiro era ver vocês dois... Eu queria ter estado com vocês... Queria ter segurado vocês nos braços… Queria ter acordado com o choro de vocês a noite... Queria ter comemorado cada aniversário, ter lido cada história de ninar, ter cuidado de vocês, abraçado, queria ter levado vocês ao primeiro dia de escola... Eu sempre fui terrível, mataria qualquer um sem pestanejar... Mas por vocês, eu morreria…
As lágrimas escorriam pelo rosto de ambos e Hunter pela primeira vez sentia algo próximo ao carinho, ele apertou a mão dela entre os dedos e perguntou-se mentalmente como poderia ter pensado em matá-la, como poderia ter cogitado a ideia de lhe tirar a vida, a mulher que deu a vida dela por ele.
– Sua irmã... Sua irmã não é má... Me escute, filho… Faça com que ela entenda, ajude-a, ela precisa da sua ajuda...
– Mamãe, não diga isso... Vamos sair daqui juntos, você vai poder dizer tudo isso a ela.
– Não... Eu não vou… Eu não vou conseguir.
– Você vai, você vai sim!
– Não, filho… Escute… Eu amo vocês. Eu sempre amei, todos os dias da minha vida, e vou morrer amando, meu amor sempre vai estar com vocês, o tempo jamais vai apagá-lo. Me prometa que vai cuidar dela... Prometa que não vai odiá-la, que vai ajudá-la.
– Mamãe, por favor.
– Hunter...
– Eu prometo, prometo, agora pare de dizer besteiras.
Angelique sorriu, preferiu não mostrar os dentes pois sabia que estavam cobertos de sangue e ao tossir pelo sangue preso na garganta notou que cada vez mais se sentia perto do fim.
– Eu vou morrer feliz, meu filho... Por que eu finalmente encontrei vocês... Finalmente posso segurar sua mão.
– Mamãe…
– Seja forte, Hunter… Não vá para o caminho errado, não cometa os mesmos erros que eu.
– Não vou... Eu prometo.
Ela já não enxergava mais nada, só ouvia a voz dele, e mesmo assim bem longe, como num sonho. Ao assentir, ela apertou a mão do filho como sempre esperou fazer.
– Eu te amo...
– Eu... Eu também te amo, mamãe...
Ela não o ouviu, seu coração havia parado antes, seus olhos permaneceram abertos, não ouvia mais, nem via, nem sentia, tudo havia parado, e o sorriso permanecera em seu rosto.
Hunter a observou por alguns instantes e só então se deu conta de que a havia perdido, ele a moveu no chão, tentando acordá-la e chamou por ela várias vezes, mas não podia mais respondê-lo. Por um momento ele só ouvia a si e sua dor, tentando expulsá-la com as lágrimas embora sem sucesso e só sentiu algo realmente quando fora puxado, Bruce o havia feito, levantando-o para afastá-lo do corpo no chão, é claro que a resposta não fora agradável, Hunter não queria deixá-la, sentia-se tão ligado a ela que quis morrer em conjunto para encontrá-la em outro mundo, mas novamente, o filho fora arrancado da mãe e carregado para longe.
Scarlett não tinha expressão, ela estava mais do que convencida de que fizera o certo, mas o choque a abateu ao ver o irmão chorando sobre o corpo no chão, o que não havia feito nem com a morte de seu pai. Havia sido algemada e carregada junto do irmão para o carro da policia, ela não chorou.



Um corpo pendia e balançava de um lado para o outro na última cela do corredor de proteção máxima do Arkham. Todos estavam em luto, mas essa morte nada tinha a ver com isso. Um carro preto parou em frente ao local junto de uma ambulância que tinha a sirene desligada, e algumas pessoas se dirigiram até a entrada do hospício, médicos e legistas cumprimentaram os guardas sem demais conversas, se encaminhando à cela onde empacotariam o corpo como um pedaço de carne, não sem antes tirar algumas fotos de evidencias. A cadeira estava posta ao lado da cama e o lençol havia sido amarrado no teto, o que fora usado para o estrangulamento. Não precisavam de muito para perceber que fora suicídio. O corpo agora estava deitado sobre a maca e a face que já era branca agora parecia ainda mais, mesmo sem a maquiagem, que fora retirada. O doutor a olhou uma última vez, averiguando qualquer característica possivelmente incomum e logo após, fez sinal para que fechassem o saco.
Harley Quinzel, mais conhecida como Arlequina, havia cometido suicídio na noite anterior. Ela não viveu para receber a noticia da morte de sua arqui-inimiga. Alguns médicos diziam que fora a loucura, outros discordavam, dizendo que ela nunca fora realmente louca, e essa discussão podia durar a eternidade, então naquele momento, ninguém fez nenhuma especulação, o corpo foi recolhido e os poucos pertences que ela tinha, foram retirados da cela. A loira tinha poucas coisas, algumas fotos do Coringa, pequenos pedaços de giz de procedência duvidosa que usava para escrever nas paredes e uma carta antiga guardada com carinho, embora já não fosse mais possível ler o que estava escrito nela. Era triste que sua morte fora pouco valorizada pelo pessoal do Arkham e pela cidade de Gotham, ninguém ali se importou com ela e a noticia não saiu em nenhum jornal, o foco estava demasiado grande na história peculiar sobre o reencontro de uma mãe e seus filhos loucos. De todas as lágrimas caídas naquele dia, nenhuma foi direcionada à Arlequina.
Apesar de Angelique ter sido carregada num mesmo saco fechado, ambas serem mulheres e terem o mesmo destino, a cidade de Gotham não as via como seres iguais. Todos sempre se apegavam a imagem do herói como referência, o vilão era sempre ignorado, mesmo que sofresse tanto quanto ou mais do que o mocinho. Angelique não estava nem perto de ser uma heroína, mas naquele dia a imagem dela pareceu sagrada para todos. Talvez muito sensacionalismo, quem poderia saber?
O movimento da rua havia se dissipado, e a chuva só caiu quando não havia mais ninguém por ali, ninguém, exceto Bruce. Incapaz de ir para casa ou de seguir o carro para ver o corpo dela mais uma vez ele se viu ali, preso ao chão e as lembranças, e a chuva caía sobre seu corpo como se pudesse lhe lavar a alma. Ah, como sentiria a falta dela, era algo incontestável, afinal, já sentia antes, e ela estava apenas presa, imagine agora que nunca mais a veria de novo. O grito sufocou em sua garganta, sentiu vontade de se trancar num quarto, de fazer alguma idiotice, de sumir, se esconder, ou até mesmo de morrer com ela, tamanha era a dor que sentia e com ela também o fracasso, saber que não havia encontrado as crianças antes, se tivesse procurado mais, ah se tivesse usado cada minuto, se as poucas noites que usara para dormir tivessem sido melhor aproveitadas, isso não teria acontecido. O sangue ainda se encontrava sobre o piso, porém a chuva o dispersava, em breve não haveria mais nada ali, não haveria mais restos de esperanças para ele, e ajoelhando-se no chão, chorou sobre o que restou da amiga.
Vanity, Violet e Victoria, que há muito achavam ter sumido ainda estavam no mesmo local e cuidavam da boate caso um dia Angelique voltasse, no fim, ao menos tinham um local para morar assim como as protegidas da rainha. As lágrimas atacaram todas ao assistir no noticiário a noticia sobre sua morte e imediatamente o Wonderland foi fechado para o que parecia nunca mais ser aberto, afinal, o país das maravilhas não era nada sem a rainha de copas, de fato, nem essa história seria, sem ela, seriam apenas páginas em branco implorando para que algo fosse escrito.
Naquela mesma noite o Arkham recebeu dois convidados, um garoto e uma garota, ambos foram recebidos com extrema frieza pelos guardas do local, que já nutriam alguns sentimentos por Angelique quando ela passou a morar ali. Hunter chegou em prantos e Scarlett era indiferente, não ria, nem chorava, e nem olhava para o irmão, orgulhosa como era, sentia-se traída por ele da pior forma possível, talvez por não ter ouvido nem a metade da história, ou talvez porque herdara mesmo a loucura do pai.
Hunter fora posto em uma cela e Scarlett em outra, eles não trocaram nenhuma palavra. Scarlett deitou-se para dormir, nada a preocupava, nem tinha a dor do remorso, já Hunter, passou a noite acordado, perguntando-se como cumpriria sua promessa e perdoaria aquele ser humano já completamente corrompido. Ele se sentia tão mal que o coração parecia secar e morrer dentro de si, as últimas migalhas de sua felicidade haviam sido arrancadas de suas mãos com uma facilidade tão grande para aquele monstro que chamava de irmã, e doía saber que há muito também havia chamado um monstro de pai. Sua mãe estava morta, saber disso inibia toda a dor da morte de seu pai a qual usou boa parte da noite para analisar, pegou vários caminhos, algumas curvas, outros deram em ruas sem saída e sempre permaneceriam inexplicáveis, o fato é que a uma conclusão ele chegara, nada ali havia sido em vão.
Banhado nas próprias lágrimas e caído em profunda insônia, só havia uma coisa para se fazer, tentar desvendar o mistério deixado em suas mãos por seu falecido pai, já que ninguém além dele se daria o trabalho de fazê-lo. Num pulo ele se levantou da cama e já havia avistado alguns pedaços de giz deixados abaixo da cama pelo antigo dono da cela, apanhou os pedaços e pôs-se a desenhar nas paredes, traçando tudo que vivera até ali até o momento presente, todas as tramas, as coisas misteriosas sobre seu pai e até mesmo o que ele lhe contara sobre sua mãe, tudo foi alvo de sua cuidadosa pesquisa dentro de si mesmo e sua história, cavou o mais fundo onde podia ir, lembrando de quantos detalhes podia, e tudo o tempo todo o levou àquela arma que carregava na cintura com a única bala, algo indicava que ele estava perto de achar a resposta, quando deu por si que tudo estava ligado.
Havia uma razão para todos os acontecimentos, essa era de fato a mais longa trama do pai e ele só percebera isso naquela hora. Fora criado como arma de combate, não contra Batman, ele nunca fora o alvo, era ele, era Angelique, Coringa queria matá-la, mas não com as próprias mãos, não era porque não conseguia porque podia sufocá-la quando quisesse, ela cederia, porém era pelo amor às boas tramas. Desde o inicio, ele queria que ela se envolvesse com Batman, queria que ele a visse, que eles se tornassem amigos, depois ele provocaria o morcego como conseguisse e para isso, esticaria e esmagaria Angelique se fosse preciso, tudo para chamar a atenção do morcego, queria ele morto desde o inicio, mas onde ele queria chegar com isso? Porque ele havia dado aquela arma para si? Porque teria os mantido vivos? Algo ali não se encaixava, e só então ele ouviu a voz vinda de trás, da sala em frente a sua.
– Você ainda não entendeu, não é?
– Hm?
Scarlett se aproximou da porta, ainda nas sombras só metade de seu rosto podia ser visto.
– Ele nos contou a história toda, somente o necessário para que pudéssemos ligar os pontos.
Hunter virou-se e observou-a de onde estava, nem se moveu, atendo à explicação da irmã.
– Ele a resgatou da rua, ela não deveria ter vivido, não se não fosse por ele. Ele a usou por um tempo, foi divertido certamente, precisava de um comparsa que não chamasse tanto a atenção para ajudá-lo a montar as situações e foi aí que ele sentiu... Sentiu algo impossível de se ignorar, não sei se era a idade ou se ele simplesmente decidiu morrer, o fato é que desde o inicio ele estava planejando isso. – Disse ela, ajeitando os cabelos e segurou-se em uma das barras da porta. – Ele queria aproximá-la do Batman, queria que ficassem íntimos, só assim ele poderia atingi-lo, acho que isso você já sabe. Tudo sempre foi um grande jogo indireto entre os dois, as pessoas dentro desse jogo eram só peões para chegar onde o Coringa realmente queria chegar.
– Então está dizendo que ele planejou a própria morte?
– Exato! Ora, está obvio. Ele sabia que Angelique o mataria se ele nos roubasse, afinal, como ele a deixou, seriamos os únicos tesouros dela, ele só não esperava que ela descobrisse tão cedo onde estávamos, se a maldita da Arlequina não tivesse aberto a boca, talvez tivéssemos vivido mais tempo com ele e não na rua.
– Não a chame de Angelique, era nossa mãe, não é qualquer pessoa.
– Tanto faz, Hunter, ainda não entendeu? Fomos projetados, somos máquinas, máquinas para fazê-lo alcançar seu verdadeiro objetivo, não existiríamos se não fosse por ele. Ele planejou tudo, a gravidez, o julgamento, tudo.
– Como você sabe de tudo isso?!
– Ele me contou. Ele precisava que eu soubesse, para que eu pudesse explicar a você um dia o porquê fizemos tudo isso.
– Que maluquice, não acredito em você. – Disse ele, incrédulo.
– Escute, ele havia planejado tudo, menos a intoxicação, ele não sabia que ela ficaria doente, quando viu que isso ameaçava tudo, ele então criou um antídoto e acabou tornando-a mais forte do que deveria, mas a salvou, o que era ótimo. Depois do parto ele sabia que tudo que tinha que fazer era se esconder por um tempo, nos ensinar, nos fazer entender, nos fazer criar, para então voltar a Gotham e aguardar que ela solucionasse o quebra cabeças e nos achasse.
Hunter permaneceu pensativo, observando a irmã como se não entendesse uma palavra, é claro, tudo estava saindo da boca de uma louca, parecia mesmo sem pé e nem cabeça, o pior, era que sabia que o pai era realmente capaz de tudo isso.
– E se ele queria morrer, porque simplesmente não fez isso logo?
– Ora, e que graça isso teria?
– Bem... Prossiga.
– Quando Angelique o matou, era obvio que ela iria para o Arkham, ele a separaria novamente dos filhos e de Batman, torturaria a ambos um pouco mais, é claro que isso durou muito mais tempo do que esperava, tanto que ela quase ficou louca presa aqui, e por uma ironia do destino, a colocaram na mesma cela dele, o que a perturbou ainda mais, já que ela ainda o amava.
Ele estava confuso, não conseguia entender como a irmã sabia de tudo aquilo, estava obvio que ela sabia bem mais do que a si, e perguntou-se porque o pai não havia explicado nem parte desse plano, deixando a si de mãos atadas, a cabeça girou, mas a irmã continuou com sua versão psicótica e maluca da história:
– Nosso trabalho era apenas continuar o legado dele, construir bombas, armas até que pudéssemos atacá-los, e nosso alvo, de inicio teria que ser o Batman, só assim chamaríamos a atenção dela e a tiraríamos do Arkham, do contrário, morreríamos tentando matá-la e nunca entraríamos aqui. Papai só errou numa coisa... Ele esperava que Batman revidasse, que nos desse ao menos um soco, que provocasse a ira dela, mas ele nutria um sentimento muito grande por ela e jamais faria algo para magoá-la ou que pudesse por um acaso fazê-lo. Com o plano dando errado, já que ele não revidaria, eu queria que ela aparecesse, sabia que ela estaria no meio da multidão, tinha de estar, se não tudo teria sido em vão. Quando ela chamou nossos nomes, eu quase não acreditei, fora tudo realmente como planejado, ela estava ali, mas o desfecho estava diferente.
– Por que Coringa achou que Batman nos atacaria?
– Era obvio, somos vilões, ele esperava que Batman mostrasse seu lado hostil, que ao menos nos intimidasse e isso fosse mal visto por Angelique.
– Por que? O que ele esperava com isso?
– Mostrar a todos como o ser humano é desprezível. Angelique não está fora dessa lista. Ele sabia que ela ficaria perturbada vindo pra cá, era só uma questão de lógica que ela o atacaria para defender seus filhos, e ao ver que ela se voltara contra ele, Batman se entristeceria e em longo prazo, enlouqueceria.
Hunter fez uma pausa para processar as informações.
– O que era exatamente para ter acontecido hoje?
– Você deveria tê-la matado. Sem saber que era nossa mãe você deveria ter atirado depois que ela matasse o morcego.
– “Essa bala vai dar um fim a tudo”...
– O fim dependia de você. Quando eu o vi chorando por ela, aceitando as desculpas dela, eu não tive dúvidas, estava obvio que você não era forte o suficiente, como papai previu. Então eu atirei. Eu a matei.
– Esse era o fim? Esse era o fim ridículo dessa piada de mal gosto criada por ele? Esse fim não tem a mínima graça, não tem pé e nem cabeça.
– Isso é porque ainda não chegou ao fim.
Hunter desviou o olhar a ela e arqueou uma das sobrancelhas.
– Ainda sobrou uma peça em pé.
– ... Batman!
– Ele tinha um plano B. Com a morte de Angelique, ele vai começar a se perguntar porque todos a sua volta sempre morrem, ele vai se questionar se viver ainda vale a pena, e então, vamos vê-lo enlouquecer aos poucos e mostrar a Gotham que todos nós somos loucos.
– Não... Ele não faria isso. Não podemos deixá-lo morrer, Scarlett. Você percebe a loucura disso?
– É exatamente sobre isso que se trata. Gotham inteira vai perceber em breve.
– Eu não vou deixar.
– E vai fazer o que? Você não pode sair daqui, estamos presos, esqueceu?
Hunter observou a porta fechada e decidido se afastou, deixando para trás a imagem da irmã em sua cela. Com ambas as mãos ele se apoiou no chão, deitando-se e observou o local a volta, certificando-se de que não havia nada ali que pudesse incriminá-lo, só então pôs-se a gritar. Scarlett sem entender olhou em pânico para a cela do irmão, desviando o olhar ao corredor e gritou junto dele.
– Guardas! Guardas! Não estão vendo que ele está tendo algum ataque?! Ajudem!
Em poucos minutos o local ficou alvoroçado, não pela quantidade de guardas, porque naquela área só tinham dois, mas os próprios criminosos em suas celas gritavam feito loucos, é claro que alguns não tinham o juízo perfeito, estamos falando do Arkham, mas alguns se aproximavam em silencio, rindo do jeito sinistro e único, prevendo uma tragédia, um deles, era o espantalho, que havia se levantado pela primeira vez em tempos para observar a confusão.
Hunter manteve-se deitado no chão, de olhos fechados e esperou, os guardas se abaixaram, averiguando algum sinal de vida e um deles encostou a face junto ao peito do rapaz caído. Antes que alguma coisa pudesse ser dita, ele fora arremessado ao chão, Hunter havia atacado um dos guardas com um soco, enquanto o outro, sobre si, ele havia puxado e agarrado pelo pescoço, sufocando-o até que perdesse a consciência. Deixou ambos os corpos no chão e trancou a cela do lado de fora, observando a irmã ali.
– Me solte, vamos.
Hunter a observou por longos instantes e negou para ela e si mesmo, continuando a andar.
– Hunter! Vai me deixar aqui?!
– Vou, até depois, Scarlett.
– Vai se arrepender disso! Escute o que estou dizendo!
– Certo, certo.
E antes de sair, jogou a chave e a arma ao chão.
Não fora difícil chegar até a entrada do Arkham, não depois que derrubou um dos médicos e vestiu suas roupas, mantendo-se sempre na sombra para que ninguém visse as cicatrizes em seu rosto.
– Hey John, está na hora de levar a comida para os garotos da Angelique.
– Nem me lembre, era uma moça tão boa...
– Esqueça, não é hora para essas lembranças.
Hunter abaixou-se e se escondeu lado a porta da sala principal, ouvindo a conversa dos dois.
– Não venha me dizer que não se lembra dela, você mesmo cuidou dela com as ordens de Bruce. Ninguém podia ter cuidado melhor.
– Sh, não seja idiota, se alguém escuta você falando isso estamos mortos, não podem saber quem é o Batman.
Decidido, percebeu que ouvira exatamente o que precisava, pois afastou-se devagar e esperou a saída dos homens da sala, passando por ali em direção a porta e ao descer, correu para longe das luzes, escondendo-se na lateral do prédio.
– Então... Bruce Wayne é o Batman...




Do alto de um prédio a cidade sempre parece pequena, as pessoas e seus sentimentos tornam-se quase insignificantes na visão geral, pessoas correndo para suas casas, entrando e saindo de hospitais, chorando, rindo, conversando, trocando informações com outras, amigos de longa data se abraçam aqui e ali, garotas trocam mensagens com seus pretendentes sentadas no chafariz de um prédio próximo, a felicidade e a tristeza sempre estiveram tão próximas que praticamente andaram de mãos dadas, quando a felicidade vem, é só uma questão de tempo para que a tristeza teime a incomodar um coração tranquilo, arrancando lágrimas pesadas e carregadas de sentimentos. Na cidade, todos pareciam ter alguém, um companheiro para dividir a vida, mesmo um amigo ou familiar, todos tinham companhia, ninguém estava de fato sozinho, mesmo aquele que se sentava no canto se encontrava com alguém mais tarde e era invadido pela onda de felicidade que o reencontro trás. Todos, menos um, que fazia o mesmo de muitos anos, observar de cima do prédio as almas abaixo, vagando soltas pela terra, este era o homem que podia ver a felicidade de uma forma relativa e passageira, que vem por pouco tempo e logo some, mas a dor nunca se vai. Por mais que tentemos esconder no íntimo a dor que nos aturde, ela insiste em se mostrar, persistente, vazando por nossos olhos e nosso ser, mesmo embora tentemos evitar que outras pessoas as vejam, afinal, ninguém deve compartilhar nosso sofrimento. A questão é que há muitos problemas para poucas resoluções e cada um guarda dentro de si uma dor excruciante, capaz de matar, ou pior, capaz de fazer com que mate a si mesmo.
Bruce Wayne estava ali, perturbado no alto do prédio e dessa vez não vestia sua roupa de morcego, não queria morrer como herói, naquele dia era somente humano, sofrendo como um e morreria como um. Há tempos estava observando a cidade, sentado a beira do abismo da morte havia parado para apreciar a brisa antes de se atirar para o descanso eterno. Ele não entendia, por mais que se perguntasse mil vezes, continuaria não entendendo. Esvaziava a mente e buscava em seu intimo motivos para que tudo aquilo acontecesse com ele, mas não achava nenhum. Desde pequeno nunca pôde ter uma família e mesmo grande, até amigos lhe foram tirados, como poderia ser uma pessoa feliz e viva sabendo que todos que se aproximavam dele acabavam mortos? Preferia morrer logo a ver mais uma pessoa indo embora para sempre, talvez encontrasse Angelique no caminho, mas não sabia se os vilões iam para o mesmo céu que os heróis, se é que existia um céu.
O dia chegava rápido em Gotham e os raios vermelhos de sol já se mostravam em algum lugar no horizonte, encobertos pelas nuvens negras, era hora, hora de desistir da vida que o afligia, da dor de estar sozinho, de não ter mais ninguém. Ele se levantou devagar, encostando pé por pé na beira do abismo e sentia o vento frio bater contra o peito, a pele se arrepiava completamente e não sabia mais se era de medo ou frio. Alguns trovões ameaçaram cair sobre a sua cabeça, rasgando o céu com sua luz azul e majestosa, nada mais importava, iria para o lugar de onde vinham aqueles sons estrondosos. A primeira gota pingou sobre a sua cabeça e logo vieram mais, Bruce ficou feliz de sentir pela ultima vez a chuva cair sobre sua pele, o que ele não sabia é que aquela era a primeira chuva de outono, consequentemente acabara naquele dia a primavera e se iniciara o outono, as rosas morreram espalhando pétalas vermelhas pelo chão e os céus choravam por elas mais uma vez.
Bruce estava pronto para morrer, não se importava mais, quando as lembranças são deixadas para trás, a vida se torna inútil e se acolhe a morte de braços abertos, o medo já não o atingia naquela altura. Ele se inclinou para frente, somente um pouco, e viu seu corpo se projetar no ar por segundos, mas fora salvo antes por uma mão amiga que se quer sabia da existência, era ele, Hunter.
– Bruce! – Ele o puxou, colocando-o no chão, em segurança. – Está louco? Não pode morrer, nunca mais faça isso!
Por um segundo Bruce parecia estar em um estranho transe, só o suficiente para recuperar os sentidos e desviar o olhar ao rapaz, já coberto pela chuva, nem se dera conta de quando ele havia entrado ali, a porta estava emperrada, ela fazia barulho, mas não a ouviu.
– Bruce! Fale comigo! Você está bem? Temos que sair daqui!
– Hunter…? O que faz aqui? Você não foi preso?
– Bruce, por favor, não faça perguntas agora, venha! Precisamos ir para um lugar seguro!
– Do que está falando? Não há mais do que se esconder, acabou.
– Não diga isso! Você ainda tem muito o que viver!
– A Angelique morreu, meus pais morreram, não tenho mais ninguém vivo. Desculpe Hunter, mas vai ter que sair daqui sem mim.
– Bruce! Olhe pra mim! – Disse o garoto a chacoalhá-lo enquanto o segurava nos braços, olhando-o nos olhos. – Eu estou aqui! Eu estou aqui com você, eu fiz coisas horríveis, mas eu posso te ajudar! Você é o Batman, quer dizer, todos contam com você, você não pode morrer! Não pode! Não deixe o mau reinar sobre você, não deixe que a morte da minha mãe tenha sido em vão! Bruce, quando as rosas morrem no outono, elas renascem na primavera, não faça com que a memória dela se perca ao vento como as pétalas dessas rosas, precisamos mantê-la, fazer com que as pessoas se lembrem que podem ter justiça, que elas podem lutar, que podem sonhar. Vamos sair daqui!
O silencio se fez presente, Batman, que poucas vezes precisava de uma lição de vida estava levando uma de um garoto órfão que a pouco era o vilão, não por escolha própria e sim do destino, afinal o que são os vilões além de pessoas que não tiveram suas histórias contadas? Ele levantou a cabeça e como num estalar de dedos percebeu que o medo que o havia deixado voltara, e deu alguns passos para trás se afastando do abismo e do torpor, a vontade de morrer deixou seu corpo.
– Isso... Agora vamos sair daqui, está chovendo muito.
Hunter estendeu a mão, solidário e carregava Bruce pelo ombro até a porta da saída, virou-se para observar Bruce e um estrondo se fez ouvir no local, era um trovão talvez? Não, era a porta com falta de óleo que bateu contra a parede, dando passagem para aquele par de olhos verdes cintilantes que adentrara o local segurando em sua mão direita uma pistola e apontava para ambos.
– Scarlett? Que diabos você está fazendo?! Vamos, largue essa arma!
– Hoje não, irmãozinho, hoje não. – Ele moveu a arma, mostrando que não estava brincando com ele, e deu um passo a frente. – Levante as mãos!
Hunter soltou Bruce e manteve-se no lugar, assim como Bruce, fitando fixamente a garota armada com os cabelos bagunçados pelo vento e molhados pela chuva e a maquiagem que borrava com a água de forma bizarra, escorrendo como um liquido negro de seus olhos.
– Scarlett, o que está fazendo? Vamos, abaixe a arma, vamos todos para casa e conversamos. – Bruce tentou convencê-la, aproximando-se devagar.
– Fique aí onde está morcego! Ou eu atiro!
– Não vai atirar em mim, Scarlett, eu era amigo da sua mãe, podemos conversar, venha, eu vou dar um lar pra vocês, vou tirar vocês da rua.
– Blá, blá, blá, eu já ouvi isso antes, não vai me convencer. Última chance, Hunter, venha pra cá!
– Eu não vou! Você é maluca! Abaixe essa arma!
– Você tinha que estragar tudo, não tinha? Tinha que se meter! Os planos eram perfeitos, papai planejou tudo, tudo se concretizou, a morte dela, a morte do morcego, e você, um perfeito imbecil estragou tudo! Você foi o erro genético feito para estragar os planos! Você não devia ter nascido!
– Scarlett, como pode dizer isso? Eu sou seu irmão...
– E daí? Eu não quero um irmão como você! Que nunca sabe de que lado está!
– Eu não estou de nenhum lado! Eu quero uma família, sempre quis, não quero estar numa cela fria junto com outros loucos! Pare com isso, Scarlett, venha, agora nós podemos ter uma vida melhor, eu vou cuidar de você, você é minha irmãzinha, sabe disso, sempre foi. Vai ficar tudo bem.
As lágrimas escorreram pelos olhos dela, era impossível, por mais que ela quisesse não podia contê-las e aos poucos, ela abaixou a arma. Hunter aproveitou a oportunidade para dar alguns passos em direção a ela, vendo-a de cabeça baixa, ele queria abraçá-la, mas parou a poucos centímetros, estranhando ao ouvir o som que vinha de sua irmã, era a risada, a risada já conhecida, e ela erguera a cabeça, observando-o e rindo descontroladamente.
– Você é tão... Sentimental.
Ela deu vários passos em direção a ele e Batman, impondo a arma até que estivessem à beira do prédio.
– Últimas palavras irmãozinho.
– Por que está fazendo isso, Scarlett? Por que?
Ela sorriu, perversa.
– Vou fazer uma charada, chapeleiros gostam de charadas, não é?
Hunter arqueou uma das sobrancelhas.
– Quantos são necessários para passar para frente a linhagem de sangue do Coringa?
Hunter fez-se em silencio e arregalou os olhos quando percebeu a resposta.
– Papai também me deu uma arma e uma bala.
Ele se viu sem saída, estava acabado, a irmã estava em frente a ele apontando uma arma, e atrás a morte aguardava, um passo em falso e cairia no chão. Foi então que a arma disparou a última bala, numa fração de segundos e Hunter mais uma vez arregalou os olhos. A bala não havia acertado ninguém. Scarlett dera tanta atenção a Hunter que Batman tivera tempo de aproximar-se e empurrar a garota antes de seu disparo, a arma atingiu o chão e ela caiu longe da mesma. Hunter se afastou da beira e a garota se levantou furiosa, haviam estragado seus planos mais uma vez.
– Ora, seu...!
Ela correu, tentando acertar Bruce com um chute na altura do rosto, mas fora bloqueado, Hunter abaixou-se e pegou a arma, afastando-a da garota, processando as informações, longe da briga que ela travava com Batman. E a garota tentava atingi-lo entre chutes e socos, quase sempre sem sucesso, mas um soco ou outro já fora suficiente para que Batman tivesse os lábios sangrando, ele não bateria nela, apenas bloqueava seus ataques e tentava imobilizá-la. Ela viu sua chance, se não completasse o plano ao menos uma parte dele se completaria, Batman estava na beira, ela o empurraria, foi então que ela se afastou e tomou impulso, pronta para atingir o morcego que se mantinha em posição para recebê-la, mas fora preciso um passo em falso, somente um para que fosse ela quem abraçaria a morte. O chão estava liso, facilmente escorregadio, ela não teve chance numa luta contra a natureza, pisara em falso e se atirou para a morte de cima do prédio de trinta andares.
– Scarlett! –Hunter gritou, mas Batman chegou primeiro, ele agarrou a mão dela, mas deslizou por ela como ela havia deslizado no chão, a chuva era impiedosa e a última coisa que viram foram os olhos verdes translúcidos brilhando no escuro, até que ela atingisse o chão.
Batman se levantou e rapidamente abraçou o rapaz em pé, que gritara o nome da irmã e chorava desesperadamente, como se fosse capaz de se atirar do prédio atrás dela.


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Notas finais do capítulo

"Every picture tells a story. Sometimes we don't like the ending. Sometimes we don't understand it." - Cheshire Cat (Alice Madness Returns)

(O título desse capítulo foi dado em homenagem à morte da rainha no V.d.G.)



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