A Rainha de Copas escrita por Kaya Terachi


Capítulo 21
Hatter Brothers




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A luz brilhava no céu, ainda não era noite de lua cheia, mas faltavam poucos dias para que ela se completasse, o céu estava limpo, as estrelas brilhavam imponentes e fazia frio. Era inverno, o natal estava chegando e as casas já tinham suas típicas decorações vermelhas e brilhantes, tudo construído com magnitude para a celebração de uma data tão maravilhosa, tempos de se ficar com a família, diziam uns, mas a maioria só se importava com os presentes e a ceia, é claro, as ricas famílias, as pobres, dividiam pedaços de sonhos entre cinco ou seis parentes, porque era tudo que tinham. Entre uns e outros, o natal era sempre uma época para sorrir, mas alguns não tem data nem hora para estar com um sorriso no rosto.
As crianças, dentro da casa, tinham um apreço muito especifico pelo frio e pela data, gostavam de se enfiar abaixo de seus cobertores quentes e macios e tomar chocolate quente que aprenderam a fazer desde cedo, afinal, não era sempre que podiam contar com a presença de um adulto em casa, na verdade, isso era meio raro para eles, tão pequenos e já tendo que assumir responsabilidades. Tinham apenas seis anos, uma idade tão bela quando se pode aproveitar e quando se tem uma família para dividir alegrias e conquistas, mas esse era mais um daqueles tristes casos que vemos na televisão quando as crianças são abandonadas pelos pais, nesse caso, abandonadas pela sanidade do pai que se mantinha bem próximo, mesmo desatencioso.
Seus nomes eram Scarlett e Hunter, estranhamente Coringa havia mantido seus nomes como a mãe pedira, talvez por pena, ou talvez por falta de criatividade ou vontade de encontrar outros nomes que satisfizessem a si, pensando bem, ele não tinha pena de ninguém. A verdade é que até mesmo gostava dos nomes, achava que soavam bem para pessoas crescidas e poderosas, mesmo que nunca fosse comentar isso com eles.
A porta se abriu e o vento frio adentrou a sala, as crianças que estavam em frente a TV vendo seus desenhos favoritos, se assustaram e levantaram-se, alertas como foram ensinadas, – sempre se mantinham alertas – mesmo sem saber o motivo de sempre ter que se manter assim, era até meio cansativo, mas ao ver a figura na porta em pé, eles abriram enormes sorrisos em suas faces. Scarlett tomou a dianteira, correndo em direção aos braços do pai e o abraçou mesmo na altura da cintura, apertando-o entre os braços.
– Papai! Papai! Você chegou cedo hoje! Senti tanto a sua falta!
O garoto tímido veio logo em seguida, abraçando-o do outro lado de seu corpo, impedindo que o homem de cabelos esverdeados se movesse. Ele sorriu, como de costume e pegou a garota nos braços com certa dificuldade, afinal, ela já estava ficando grande.
– Olá minha bonequinha. Já está ficando pesada para pegar no colo. – Ele disse a beijá-la no rosto e passou a mão pelos cabelos do filho ainda no chão.
– O que é isso? Papai! O que tem no bolso?! Trouxe doces?
Ele gargalhou e segurou a pequena mãozinha invasiva da filha.
– Hey! Ta bem, você descobriu, mas trate de cuidar desses dentes, afinal, você sabe que...
– O meu sorriso é a coisa mais importante no mundo. Eu sei papai. – Ela sorriu a ele.
– Isso, boa menina. – Ele a colocou no chão, mesmo antes de lhe retribuir o sorriso e lhe entregou os doces.
A verdade é que ele não gostava de ver o sorriso dela, mais a garota do que seu outro filho, ela lembrava uma coisa antiga, esquecida a que já teve muito apreço, os lábios vermelhos, o contorno de seu rostinho inocente e até os cabelos ruivos. Que falta fazia aquele corpo em sua cama algumas noites, mas afinal, o que estava pensando? Já fazia tanto tempo, não tinha tempo para pensar nessas besteiras. Pigarreou.
– Eu tenho muito trabalho para fazer, então, tentem não me incomodar.
Ambos uniram as sobrancelhas a observá-lo e afastaram-se em alguns passos, dando espaço para que ele caminhasse.
– Mas, papai... Não vai ficar com a gente hoje?
Ele sorriu.
– Mais tarde eu brinco com vocês. Querem ouvir uma piada?
– SIM! – Gritaram em coro.



Tudo estava tão silencioso na casa, a única coisa audível era o barulho da TV. Ambos mantinham seus corpos abaixo do cobertor com apenas os olhinhos para fora, atenciosos ao desenho a gargalhar baixinho em algumas partes, afinal, não queriam atrapalhar o pai. A garota desviou o olhar ao irmão por poucos segundos, notando em sua face o sorriso pequeno, não era tão grande, nem tão gracioso quanto o do pai, e menos bonito.
– Sabe, Hunter... Seria legal se tivéssemos um sorriso tão grande quanto o do papai, não seria?
– Ahn? Ah, sim, eu acho o sorriso do papai o mais lindo do mundo!
Ela sorriu a ele e descobriu os braços a levar as mãos à face do irmão, alargando o sorriso dele no canto dos lábios.
– Você ficaria igual a ele!
– Ah, eu quero ser igual ao papai! Scarly, me deixe igual ao papai!
– Bom... Eu posso tentar, mas eu também quero!
Ele assentiu e ela se levantou, seguindo devagar em direção ao quarto, com passos minuciosos, ao lado da cama do pai, pegou um pequeno objeto com o cabo negro, voltando logo ao sofá onde se sentou ao lado do irmão.
– Pronto, mas... Você não pode fazer barulho, ta bem? Tem que aguentar se quiser ter um sorriso bonito.
Ele assentiu novamente, mesmo sem entender o que ela faria e a garota lhe mostrou a faca afiada, guiando-a a boca dele que se assustou, recuando pouco no sofá.
– Ué, não quer mais?
Ele se encolheu, aproximando-se devagar da outra e permaneceu imóvel ao lado dela.
– Não seja assim tão medroso! Sorria!
Ela disse a sorrir a ele e colocou a faca na boca do irmão, cuidadosa e tremia sutilmente, tão amedrontada quanto ele. Ela fechou os olhos por poucos segundos a criar coragem para prosseguir e puxou a faca a rasgar a boca do garoto que gemeu de dor, porém cessou a voz ao notar que estava muito alto, levando uma das mãos aos lábios a tentar estancar o sangramento. Ela segurou a mão dele e estreitou os olhos.
– Falta pouco, pare de ser tão mulherzinha.
Ao terminar de falar, ela levou a faca ao outro lado da boca do irmão e cortou do mesmo modo que anteriormente, assistindo as lágrimas no rosto do menorzinho.
– Pronto! Agora está lindão, igual o papai. Sua vez de cortar.
Ela estendeu a faca em direção a ele e o viu recuar uma segunda vez, com as mãos sobre os lábios cortados e chorava.
– Estou vendo que vou ter que fazer tudo sozinha!
A garota parecia determinada e agora que já havia começado, não iria parar. Ela levou a faca até os próprios lábios e cortou um dos lados, segurando o choro com toda a força que pode e logo cortou o outro lado, tentando fazer igual ao do irmão. O sangue escorria pelo queixo dela, manchando as roupas de vermelho, o mesmo tom de seus cabelos e apenas largou a faca sobre o sofá, sorrindo a ele a mostrar o sorriso agora bem maior e permanente.
– Viu? Agora temos um sorriso grande como o do papai.
O garoto viu os dentes dela cobertos de sangue assim que ela os mostrou em meio ao sorriso, arregalou os olhos e gritou, assustado com a visão que teve da própria irmã. No mesmo instante a porta bateu, demonstrando que o outro saíra do escritório, furioso.
– Eu falei que não queria barulho! Desse jeito eu não consigo pens...
Ao ver ambos sobre o sofá, cobertos pelo liquido vermelho e espesso, junto da enorme ferida que alargava seus lábios, ele cessou a fala. A garota desceu do sofá e aproximou-se dele, abraçando-o.
– Papai, olha! Agora nós temos um sorriso enorme igual ao seu!
Ele a observou e logo o garotinho, atônito a processar as informações por alguns segundos e por fim sorriu, seguido de um riso baixo e logo uma gargalhada, a mão dele deslizou pelos cabelos escarlate da filha.
– Bom trabalho, crianças!



A loja era situada na esquina entre duas ruas, os nomes não tinham importância, afinal nunca tem quando as ruas não são conhecidas. Quem se importaria afinal com ruelas perdidas entre uma cidade enorme como Gotham? O letreiro lá fora, com letras garrafais indicava o nome de uma loja bem conhecida pelo bairro, conhecida pela maravilhosa mercadoria que vendiam, tanto para pessoas comuns, quanto para criminosos, ambos os lados mantinham seus segredos bem guardados quando saíam da loja, as vezes carregando pequenas caixas, as vezes carregando sacolas em caminhões. O fato é que os negócios prosperavam para os donos da pacata loja, conhecida como “Tea Party”. O local era grande, mas por fora parecia pequenina, era feito de vidro e nas paredes os tons vermelho e verde se fundiam em listras de cores pasteis, divertidas para uma pequena loja de doces. Tudo ali parecia transparente, o balcão dava passagem para a garçonete única do local, e mesmo que uma enorme quantidade de pessoas lotassem as cadeiras, nunca se via mais de uma pessoa atendendo e gerenciando a loja, era uma garota muito bonita, tinha seus dezoito anos, afinal não havia manchas nem sinais de idade em seu rosto, sua pele era clara como a neve, seus olhos verdes num tom intenso e seus cabelos eram vermelhos e longos, num tom natural de causar inveja a muitas pessoas que por ali passavam provando um bolinho, um biscoito ou o famoso chá feito por ela com um pequeno ingrediente especial que ela também adicionava em qualquer coisa que vendia na loja. Vez ou outra se podia ver uma criança pela porta correndo e chamando os pais para entrar, afinal já sabiam que a primeira mordida dada em um cupcake era suficiente para sentir a massa derreter na boca e as pequenas partículas explodirem em sutis estalos com sabor de framboesa ou limão.
A bela garçonete de cabelos vermelhos suspirou, entediada, já era quase duas da tarde, e para aquele horário, estava tudo muito parado, costumava ter mais clientes passando por ali, naquela tarde não atendera quase ninguém, apenas um rapaz com pressa de ir ao trabalho e passara rapidamente para comprar um doce. Mas de fato ela não estava interessada em vender somente doces, não era isso que mantinha a ambos com uma boa renda, apesar da quantidade absurdamente grande de dinheiro deixada a eles por seu falecido pai. Ela olhava fixamente uma xícara preenchida com seu chá favorito, posta sobre o balcão enquanto usava o dedo indicador para fazer movimentos circulares na bebida. Bocejou enquanto olhava o relógio posto na parede branca decorada com desenhos de xícaras e bules de chá, sempre esquecia que carregava consigo um relógio de bolso, tanto que um dia seu irmão acabou por fazer para ela um colar em formato de um pequeno relógio que realmente funcionava, assim ela poderia ver a hora mais facilmente, o que ele não pensou, é que ela podia esquecê-lo todos os dias em casa. De qualquer modo não importava, olhando a hora ou não, estava sempre atrasada.
O cheiro de chá recém preparado tomava conta do local, assim como dos deliciosos doces na vitrine feitos pela garota, o uniforme estava impecável, usava o vestido branco e preto com um avental amarrado em sua cintura e em sua barra uma pequena carta de um coringa junto do bordado com o nome da confeitaria. O vestido não era muito comprido, nem era curto, deixava as belas pernas a mostra, cobertas pela meia branca e os pequenos laços vermelhos em seu inicio a mesma cor de seus cabelos, enfeitados com uma tiara de renda branca. Seus lábios estavam pintados de vermelho, embora não fosse necessário, afinal, tinha uma beleza natural com a pele tão branca e os lábios corados, mas tinha algo de especial na garota, algo único, ela tinha o sorriso alongado numa cicatriz que atingia até a metade de sua bochecha, costurados com dois pontos de um fio preto.
– Ah... Que saco. Onde estão os meus clientes? Será que abriu alguma loja aqui perto? – Resmungou.
Porém, não demorou muito tempo até que o barulho da porta se fizesse ouvir. A garota retirou o dedo do chá e prontamente se ajeitou, pigarreando e bateu no avental, limpando-o rapidamente, em seguida fez uma pequena reverência ao rapaz de terno ali parado.
– Olá princesa, estou procurando os Hatter Brothers. Estou no lugar certo?
Ela sorriu, expondo seus perfeitos dentes brancos.
– Seja muito bem vindo, senhor! Está falando com um deles. Pode me chamar de Doll.
Ela disse a estender uma das mãos a ele, o rapaz tomou a mão dela entre os dedos e a beijou.
– Doll? É mesmo uma bonequinha.
Ela ergueu a xícara a levá-la aos lábios e bebeu um último gole de chá.
– Queira me acompanhar, senhor.
– Com você, eu iria até o céu, boneca.
A garota abriu a pequena porta e deu passagem a ele para trás do balcão, seguindo para a única porta branca no local. O corredor era estreito, mas dava em uma enorme sala na cor preta com pequenos detalhes em roxo e verde sobre as prateleiras, que eram completamente coberta de armas. Sim, armas! E existiam de todos os tipos, tamanhos e utilidades.
A garota adentrou a passagem que dava para um novo balcão de uma espécie de segunda loja e pegou o próprio chapéu ali deixado, a cartola negra, colocando-a sobre a cabeça no lugar da tiara que usava.
– Deixe-me chamar o meu irmão para explicar melhor sobre nossos produtos.
– É claro, fique a vontade.
O rapaz falou, mas era óbvio que estava muito desinteressado no que ela dizia e se concentrava mais nos milhares de modelos diferentes de armas, mas uma em especial chamou a atenção dele, ou talvez não fosse uma arma, mas sobre o balcão estava uma pequena dentadura com pernas, e atrás se podia dar corda para fazê-la funcionar. Ele tomou-a nas mãos e deslizou os dedos pelo “brinquedo”, porém antes que pudesse dar corda foi impedido pelo rapaz que adentrara o local e a garota que vinha logo atrás dele.
– Não faça isso! Está querendo matar todos nós? – Ele riu e o rapaz deixou o objeto sobre o balcão.
O garoto era um lindo jovem com cabelos longos e esverdeados num tom claro. Tinha nos lábios, o mesmo sorriso rasgado que ela, e os mesmos pontos cuidadosamente feitos. Usava o terno roxo sobre o corpo, impecável, mesmo a mexer com tanto óleo e partes mecânicas o dia todo e usava por baixo o colete cinza e a camisa num verde escuro. Colocou as luvas sobre as mãos e a cartola negra com pequenas rosas douradas sobre a cabeça, detalhes que combinavam com seus óculos tortos sobre os olhos que tratou de ajeitar, seguindo em direção ao balcão e logo ficando ao lado da irmã.
– Senhor, seja muito bem vindo, no que podemos ajudá-lo?
O homem observou a ambos lado a lado e parecia pouco apático por alguns segundos.
– É verdade que vocês são... Filhos do Coringa?
A garota riu, gargalhando em seguida.
– Ora, por que a curiosidade?
– Porque vocês parecem... Muito com ele, na loucura.
– E o que esperava? Somoschapeleiros malucos!
– Se são chapeleiros porque não fazem chapéus?
– Fazer armas é muito mais divertido, não acha? – O rapaz riu.
– Isso é verdade, mas não faz muito sentido... Bem, eu preciso de algo simples...



– Muito obrigado, boneca.
A garota sorriu ao rapaz, que se dirigiu à saída da loja, carregando a sacola roxa consigo, nela gravadas as iniciais H.B. e a pequena carta coringa.
– Volte sempre! – Ela disse a beijar a palma da mão e assoprar o beijo em sua direção, fechando a porta em seguida.
Então se virou, caminhando em direção à sala anterior e levou consigo uma nova xícara de chá, preparada dessa vez para o irmão. Ao passar pelo balcão, seguiu a parte onde ele trabalhava, deixou a xícara sobre a mesa e a colher ao lado dela.
– Trouxe chá e biscoitos.
Ele observou o chá sobre a mesa acompanhado da colher e logo desviou o olhar a ela.
– E onde estão os biscoitos?
– Ah... Desculpe, estão aqui.
Ela falou a retirar a cartola e colocar a mão dentro dela, retirando três biscoitos de chocolate que deixou sobre o pratinho e sorriu ao irmão, colocando a cartola sobre a cabeça novamente.
– Você continua sendo boa com mágica. – Ele riu.
– É só um passatempo. Como está o seu braço?
Ele suspirou, retirando a luva da mão direita e expôs a mão mecânica a ela, movendo os dedos algumas vezes.
– Bem melhor, mas tenho que parar de trabalhar tanto.
– Desde que não exploda a loja de novo. Já falei pra parar de trabalhar com bombas.
– É minha especialidade, por que deveria parar?
– Sabe que não somos tão bons quanto o papai. Sempre temos vários acidentes.
– É, mas até que foi legal quando o gás vazou e todos da loja começaram a rir loucamente.
Ela riu a observá-lo.
– Foi! Devíamos fazer de novo!
Ele riu, desviando o olhar a ela e logo ao jornal ao lado de algumas ferramentas espalhadas pela mesa.
– Você sabe que eu andei planejando uma coisa não é?
– Hm... Andou é? E tem a ver com o Batman?
– Sempre tem.
– O que é?
– Como sabe... Os Wayne vão dar a festa de comemoração de mais um ano da empresa.
– Hm... E?
– E a cidade toda vai comparecer, é claro.
– Tem certeza, Hunter? É um evento muito grande para um ataque.
– Scarlett, estivemos planejando isso por anos, vai amarelar agora?
– Amarelar? Que horror. Até parece que não me conhece, irmãozinho.
– E então? Está dentro?
– Vou preparar o chá.
– Essa é a Scarlett que eu conheço.
– Doll. Vai ter que me chamar de Doll quando estivermos lá.
– Eu sei. E você... Você já sabe.
– Sei, Robot.
– Esse nome até que soa bem, não soa?
– É, mas é bom tomar cuidado na hora de arrumar as armas, mais uma explosão e você vira mesmo um robô completo.
– Haha, muito engraçado, falou a bonequinha de porcelana do papai.
– Vai logo fazer as armas antes que eu arranque seu outro braço. E vê se leva o maldito coelho branco com você, não quero ele comendo meus cupcakes.
– Que coelho...?
A garota retirou a cartola e colocou a mão dentro dela mais uma vez, retirando um pequeno coelho branquinho de olhinhos vermelhos, deixando-o sobre a mesa e sorriu, virando-se e colocou de volta o chapéu, seguindo em direção à saída.
– Ah que bonitinho, é o nosso jantar?
– Separe as armas!



Era sábado, perto das seis da tarde em Gotham, os civis estavam por toda a parte, numa festa sem igual promovida por Bruce Wayne para comemorar seu aniversário. Por todo o local era audível o tintilar de copos, risadas e comentários das pessoas entre si, que muitas vezes maldosos, não faziam objeção a sua opinião de como estava todo o local da festa. Alguns gostavam de reparar até no mínimo detalhe colocado de forma errada sobre a mesa, gabando-se como se fosse um decorador trabalhando com anos de profissão. O problema da festa é que tudo parecia dar certo, isso não era muito bom para Bruce, que com certeza havia reparado nisso. Havia muito tempo que nenhum criminoso escapava do Arkham, mas era tudo uma questão de tempo, uma hora ou outra, isso iria acontecer.
Algo estranho perambulava pela cabeça de Bruce, preocupava-se com Angelique, a garota que há muito estava presa numa cela, ela não saía, quase não comia, perguntava-se até mesmo se ela não estava de fato enlouquecendo, mas a ideia de loucura era relativa, já conhecera tantos loucos em sua vida, que era quase incapaz de identificar um em meio há tantos outros, talvez ela continuasse sendo boa, talvez, quem sabe, ele pudesse vê-la de novo e encontrar ali a mesma garota ruiva com o sorriso esplêndido nos lábios e uma bondade sem fim apesar dos anos de maldades feitas. Talvez, era tudo um grande talvez. Agora, sem o Coringa, era um criminoso a menos para lidar, mas isso por algum motivo não parecia bom, era como se ele, mesmo morto, assombrasse a Bruce, tramasse algo no mundo das sombras contra ele, ameaçando invadir sua mente mais uma vez e instalar o caos.
As vozes cessaram assim que as batidas no copo foram audíveis e por um segundo o vazio que Bruce sentia fora interrompido.
– Senhoras e senhores, estamos aqui para desejar um feliz aniversário a esse incrível homem que Gotham tanto preza, o senhor Bruce Wayne.
As pessoas deram uma salva de palmas, todas virando-se em direção ao pequeno palco ali colocado, e sobre ele, Gordon fazia suas pequenas considerações a Bruce, muito mais do que outros, ele sabia sua verdadeira identidade, sabia sobre o Batman, e em sua cabeça certamente agradecia muito mais do que as aparências lhe permitiam, agradecia ao herói de Gotham, que salvara sua vida várias vezes.
– Tenha a bondade de subir ao palco, senhor Wayne. – Completou ele.
Bruce, que se sentia envergonhado com tanta atenção, até que sabia disfarçar o desejo de correr do local em direção ao próprio quarto e se trancar do mundo, levou a mão sobre o peito, lisonjeado pelos comentários do amigo e assentiu com a cabeça, subindo as escadas do pequeno palco e tomou o lugar no microfone.
– Agradeço pelos parabéns, senhor Gordon, também agradeço a todos vocês, pessoas maravilhosas que estão aqui nessa tarde.
Os olhos dele percorreram a rua, coberta de pessoas, todas com personalidades diferentes, vidas diferentes, e se deu conta de que não conhecia a maior parte delas, haviam poucas pessoas que ele gostaria de ver ali naquele dia, mas nenhuma delas estava presente. Ao lembrar-se de velhos amigos, Bruce sentiu uma dor apertar o peito e livrando-se dos pensamentos excruciantes pigarreou.
– Espero que se divirtam muito e que a festa comece!
As pessoas gritaram, felizes por Gotham ter pela primeira vez em anos uma festa decente, mesmo que fosse de um homem qualquer que a maioria não fazia nem questão de pensar em conhecer a fundo. O fato é que naquela cidade, as pessoas só se importavam com seus próprios narizes, era de fato uma cidade típica, porém com um único cidadão que tomava as dores de todos. Será que se eles soubessem que ele era o Batman, eles o olhariam diferente? Será que o reverenciariam ou lhe atitariam pedras?
Naquele dia, com tantas pessoas felizes pelas ruas, rostos sorridentes e crianças correndo, olhando tudo de cima só poderia se pensar em uma coisa: Era o cenário perfeito para começar uma guerra.




Ou fora isso que ela pensava, e pelo sorriso, seu irmão pensava no mesmo. Postos lado a lado os irmãos chapeleiros observavam a festa enorme dada por Bruce Wayne, que quase implorava para ser interrompida por alguém mal intencionado, o que era o caso ali. Armas postas ao lado dos corpos estavam os dois apenas a admirar, em um estranho silencio que ficou quase insuportável para Scarlett, que adorava falar. Posta num dos prédios mais altos da rua estava ali, a placa que dizia “2 anos sem acidentes”, o que era curioso para a garota, afinal, por onde andavam todos os criminosos?
– Dois anos sem acidentes, pois sim. O que andam fazendo que não saem logo do Arkham e enfrentam o povo? Acho que até estranho que o Charada não tenha...
– Shhh.... Quieta, Scarlett, estou tentando me concentrar. – Disse o outro, olhando-a com censura.
– Ora essa! Se concentrar no que? É só entrar e procurar por ele, não foi assim que combinamos? Ou já está com medo?
– Medo? Eu não tenho medo! Estou tentando achar um jeito de chegar até o centro.
– Papai nunca fazia planos, ele pegava a arma e simplesmente atirava.
– Pois aí que você se engana. – Disse ele, vangloriando-se ao achar que conhecia melhor o pai do que ela. – De onde acha que vem todas aquelas boas idéias dele? Acha que ele não as olha cuidadosamente antes de fazer algum movimento? Claro que olha! Ele é o que mais faz planos, em nome do caos e da desordem, mas faz.
– Fazia, né. Não temos mais ele, graças àquela maldita.
– Não se preocupe, vamos achá-la, mas primeiro o morcego.
Ao fim da frase, Hunter permaneceu a observar fixamente a cidade e as pessoas que por ali passavam, em alguns momentos sua atenção se desviava do objetivo e por ali via passar algumas famílias, pais, filhos, todos de mãos dadas, comendo e bebendo juntos e chegou a pensar que era como devia ser. Sentiu então o amargo sabor da solidão que tinha naquele mundo, além da irmã, nada mais havia lhe restado. Seu pai, morrera assassinado brutalmente por uma mulher insana, e sua mãe, morrera no parto, como a história de seu pai lhe contara. Desde então, ambos viviam para assassinar a mulher que lhes tirou o amor paterno e o morcego que a ajudou. Ah, se ele soubesse que o Coringa nunca amou ninguém, não se iludiria a ponto de transformar-se numa arma, assim como sua irmã, realizando o maior plano que Coringa já criara em sua vida: Seus descendentes no crime.
– Bom, eu não tenho tempo pra ficar pensando. Você me acompanha quando se decidir.
Ao fim da frase, ela apanhou sua arma e saltou do prédio em direção às escadas no andar de baixo.
– Scarlett!
Hunter de fato, levara um susto, esperava qualquer atitude insana dela, menos que ela pulasse do prédio. Como não teve outra escolha, ele mesmo pulou atrás dela, descendo rapidamente as escadas até o chão.
– Idiota, está querendo se matar?
Ao falar, notou que sua voz fora encoberta por milhares de outras, já estavam em meio a festa e por pouco não perdeu a garota de vista, segurando-a pelo braço e exigiu o olhar dela, estreitando os olhos.
– Não faça nenhuma idiotice.
– Não me amole, agora já estamos aqui, não tem mais como escapar.
A ruiva ergueu o braço, havia tirado uma pistola que guardava na cintura e o tiro soou alto e seco pelo local, calando a todos ao redor e abrindo ao redor deles uma roda, as pessoas correram desesperadas para fugir da garota que carregava curiosos objetos em mãos.
Ela, vestia uma estranha roupa preta, branca e vermelha. Usava um colete preto para cobrir o tronco cuja gola tinha as cores branco e vermelho, usava também um short preto com botões vermelhos, com uma cinta-liga de mesma cor que unia a peça às meias que alcançavam a altura das coxas, na cor igualmente preta com babados brancos. Os cabelos longos e ruivos desciam na altura das costas e sobre a cabeça tinha a cartola com o emblema que a caracterizava como um estranho personagem saído de uma história infantil. Nas mãos, tinha um estranho objeto grande, que parecia ser uma chaleira. O garoto porém, usava a tradicional camisa rendada e verde, seguida do colete cinza, casaco e calça num tom de roxo escuro. Usava luvas pretas e para combinar com a irmã, em sua cabeça tinha a cartola, junto dos goggles. Nas mãos, trazia apenas uma pistola que parecia normal, se não fosse pela cor dourada e pelos detalhes nela feitos.
A imagem de ambos, parecendo personagens de um desenho pareceu assustar os civis que passeavam por ali, não fora apenas o tiro que os fez gritar, mas também a estranha aparência conhecida desses jovens agora a frente. Os lábios rasgados, lembrava alguém que há muito fora assassinado em suas mentes, mas que agora se mostrava ali, vivo através de outras faces.
– Não se preocupem, não vamos atirar em vocês. – Gritou Scarlett.
– Queremos o Batman! – Hunter a seguiu.
– Pra quem é a festa, posso saber? Bruce? – Disse ela a observar uma mulher próxima que tremia de medo, sem poder responder. – O gato comeu sua língua?
– Vamos pedir mais uma vez. Onde está o Batman?!
O garoto gritou e a pistola girou em suas mãos, fazendo com que várias pessoas corressem em desespero, temendo por suas vidas. Hunter revirou os olhos, era chato ter que correr atrás das presas, mas por sorte alcançou uma mulher que segurou pela gola da camisa.
– Você sabe onde ele está?
A moça manteve-se silenciosa a observá-lo, mas pensando bem, quem diabos saberia onde o Batman está? É claro que a dádiva de chegar a essa conclusão parecia não ter atacado aos chapeleiros.
O garoto elevou a arma, apontando-a a cabeça da mulher e fez pela ultima vez a pergunta, que veio sem resposta novamente. O olhar arrogante estava cravado em sua face, junto do sorriso permanente, a arma se agitou e ele estava preparado para apertar o gatilho, porém a resposta caiu dos céus a sua frente, ali estava ele, o Batman.
– Solte a moça. – A voz soou intimidadora, esse era o poder que o morcego tinha sobre seus inimigos, porém Hunter nem se deixou abalar. O riso soou alto pelo local, em deboche ao pedido dele e deixou que a moça encontrasse o chão, atendendo ao pedido de seu rival, posto a sua frente. Batman o fitou no fundo dos olhos e na hora o reconheceu, ali estava, a sua frente, os filhos perdidos de Angelique.
Em seu peito os sentimentos se confundiram, perguntava-se por onde eles andaram todo esse tempo. Tinha até certo sentimento de culpa por não os ter encontrado, apesar de passar boa parte de seus dias seguindo rastros, talvez tivessem seguido para outra cidade, como saberia? Duas crianças filhas de um louco eram capazes de tudo. Queria abraçá-los, apertá-los nos braços e finalmente poder dizer “eu os encontrei, Angelique! Eu os encontrei!”, mas nem mesmo a ruiva ele via há tempos.
Num momento de fraqueza pelas lembranças, seu corpo fraquejou, como poderia ele lutar contra as crianças que ele defendeu tanto tempo e dedicou sua vida a encontrar? O que diria a ela, se machucasse seus únicos tesouros vivos. Não poderia pedir o perdão da velha amiga, não poderia pedir o próprio perdão.
No momento seguinte, viu as lembranças desaparecerem num estalar de dedos ao ouvir o barulho alto da arma que estalou nas mãos do garoto, que parecia tão crescido, para alguém de somente dezoito anos. Bruce voltou a si e balançando a cabeça se livrou do torpor, notando que apesar do tiro ter deixado a arma, não havia sangue no chão, mas os gritos se intensificaram, tanto dos telespectadores quanto da vitima. Talvez o tiro tivesse acertado o lugar errado? Não. Fora o lugar mais do que certo, porém aquela arma não era uma arma qualquer, o que fora disparado ao contrário da expectativa, não era uma bala, e sim ácido. Não era como uma bomba de água, o ácido não fora jogado contra a mulher e espirrado contra os outros. O ácido estava revestido por algo, que só explodia ao encontrar a pele.
No ar pairou um perfume estranho, era tangerina, ou talvez ervas, flores, como alguém poderia saber? Tinha aroma de chá, especificamente o chá que Bruce se lembrava que Angelique gostava de tomar, sem que eles conhecessem sua mãe, algo os ligava a ela, pois o chá favorito deles era o mesmo que o da ruiva: Earl Grey. Foi então que Batman percebeu, não havia só acido ali, mas também chá, o que dava o cheiro característico. Como se não bastasse o ácido corroendo a pele do rosto da mulher ali deitada que gritava e esperneava, tinha também o chá, quente a uma temperatura absurda. O garoto era um gênio, sempre fora um prodígio, capaz de construir as melhores armas e bombas, até mesmo nucleares. Com sua pouca idade era capaz de fazer coisas que pessoas muito mais velhas não conseguiam. Bruce nunca havia visto uma arma como aquela e perdeu longos e preciosos minutos a contemplar a arma em sua mão, perguntando-se como ele havia criado aquela arma mortal sozinho.
As pessoas já estavam impacientes, Batman pela primeira vez, se sentia num dilema entre lutar ou não contra os criminosos ali. Sabia que eles não eram de fato bandidos, tinha algo bom neles, tinha de haver, como havia em Angelique. O erro que ele sempre cometera em todas as ocasiões: Acreditar que as pessoas podem ser curadas de sua maldade como de uma doença. Um dos bombeiros aproximou-se da moça no chão e puxou-a para fora dali enquanto a confusão ainda não estava grande. Os paramédicos a atenderam de imediato, tentando evitar de alguma forma que o ácido continuasse a corroer a pele, mas sem muito sucesso a mulher caiu sobre a maca, imóvel.
– Agora você entende, não é? Viemos vingar nosso pai. – Disse o garoto, sorrindo.
A ruiva observava atrás, com o mesmo tipo de sorriso no rosto, porém a arma em suas mãos parecia ser bem pior do que a simples pistola de seu irmão, afinal, se aquilo espirrasse ácido, certamente o estrago seria muito maior do que uma mísera bala com o liquido. Em passos espaçados ela se colocou ao lado do garoto e piscou a Bruce.
– Brilha, brilha morceguinho, brilha bem devagarinho, desce, desce, vem pousar, cai no bule do meu chá.
Finalmente Batman decidiu se mover, ao perceber que ela já preparava a arma para atirar em sua direção e por sorte o pulo fora alto o suficiente para escapar do liquido que atingiu o chão e respingou por todo o local, porém o atingiu no pé, causando a dor quase imediata ao derreter parte de sua roupa.
– Ele está fugindo! Vamos, Robot!
Com um salto, ambos se aproximaram novamente do homem vestido de preto e o encararam, Robot, o garoto, tentou um soco e embora Batman o tivesse bloqueado com uma das mãos, sentiu ali uma força sobre humana, mesmo bloqueado o garoto continuava a empurrar o punho contra seu rosto, e era tão forte que quase não pôde detê-lo, se não fosse o movimento rápido que o fez se afastar alguns passos de ambos. Encarando o braço dele, Bruce tentava entender como ele tinha tanta força, e a resposta veio rapidamente quando o rapaz retirou a luva da mão direita, expondo a mão mecânica.
– Você não tem chance contra nós, Batman. Temos mais poder do que você pode imaginar.
– Por que você não mostra?
Ele respondera, cerrando os dentes. De fato, era visível que ele não queria atingir os dois, caso quisesse, eles já estariam no chão há muito tempo, eram duas crianças afinal, por mais fortes que fossem.
Lá embaixo, os policiais tentavam manter a ordem, dando indicação de que os civis se retirassem das ruas o quanto antes. Havia tantos oficiais nas ruas que dava a impressão de que a policia toda de Gotham estava ali naquela tarde. Um dos policiais, Gordon, se aproximou do palanque e chamou os que atrás estavam, em pé ali estava Alfred, que viera naquela tarde junto de seu patrão para presenciar seu aniversário. Estava atônito, tanto quanto Bruce ou qualquer outro que antes tivesse conhecido a história daquela trágica família com seu final tão estranho, mas ao contrário de Bruce, ele sabia o que fazer. Com passos rápidos agarrou a mão de Gordon e dali se retirou, adentrando o carro parado próximo da entrada de um dos prédios, era o carro de Bruce.





O estrondo da porta soou alto, um dos guardas ali se dirigiu a uma das vinte portas daquela área interna. Cuidadoso ao passar longe das demais, observou ali dentro a única pessoa que havia na cela: Angelique. Com uma das mãos ele empurrou a comida da jovem pela abertura ali.
– Hey ruivinha, você precisa comer ou vai morrer.
Angelique era indiferente, nem desviava o olhar em direção ao homem, continuava sentada, de costas para a porta e observando fixamente a parede onde havia várias palavras escritas feitas com tinta verde. A maioria eram risadas ou caras estranhas desenhadas por Coringa, mesmo assim, não deixavam de ser interessantes. Ela teve muito tempo para estudá-las, sabia onde todas estavam sem precisar se virar para olhar, mesmo assim todos os dias ela se sentava do mesmo modo, em frente aquela maldita parede. No canto, sobre sua cama, se é que podia chamar aquilo de cama, tinha um recorte de jornal e nele, a foto do palhaço. Ela sempre achara que nunca merecera estar ali, mas passados alguns anos, talvez essa idéia tivesse se modificado.
Ela parecia mais louca do que nunca. Seus cabelos, desgrenhados pareciam uma vida sem pentear, mesmo que ela penteasse todos os dias antes de dormir. Seus olhos, fundos, indicavam que há dias não dormia bem, tinha muitos pesadelos e via coisas naquele quarto, na maioria das vezes, era a imagem dele. Estranhamente, as marcas em seu corpo aumentaram, tinha marcas de unhas por toda a parte, a sorte, é que a maioria delas era muito superficial. Somente algumas expeliam sangue, não em excesso, mesmo assim era aterrorizante saber o que ela havia feito somente com suas unhas. Já usara até mesmo uma camisa de força, mas não adiantava, não podiam mantê-la todo o tempo usando aquilo, ela gritava e sempre que tiravam, novas marcas apareciam, após perceberem que ela não se mataria usando as unhas, eles desistiram. O estranho era que sempre que alguém perguntava a ela porque ela se machucava, a garota dizia que não era ela, que a culpa era do Coringa, que o fizera durante a noite, enquanto dormiram juntos. Sem ter por onde fugir, ficava presa naquele quarto, poucas vezes se lembrava da luz do dia e de como era poder sentir o cheiro de suas rosas, ou do chá fresco na cabeceira de sua cama, trazido por suas empregadas. O que teria acontecido com elas? Será que haviam morrido? Ou saído do país, como ela pensara em fazer? Não sabia, nem desconfiava, não perguntava, as únicas vezes que abria a boca, era para responder algum dos psiquiatras, ou para gritar enquanto dormia dentro de mais um pesadelo.
– Senhor! Tem alguém aqui para vê-lo!
A ruiva estranhou, o grito não tinha vindo de sua cabeça, mas sim de fora da cela, retirando-a de seus devaneios diários. Era outro dos serviçais que chamava pelo gerente da ala. Estranhamente o gerente sempre vinha servi-la, embora não servisse os outros pacientes, isso tinha, é claro, um motivo: Bruce Wayne tinha dinheiro o suficiente para subornar muitas pessoas, mas não utilizava disso para fazer o possível para cuidar de seus únicos amigos vivos, porém bastava o Batman fazer uma visitinha no Arkham, e todos assentiam sem contrariar suas ordens. Angelique era cuidada e vigiada severamente pelo gerente do local, cuidando para que ela se alimentasse corretamente, e fazendo o possível para que se recuperasse de seu choque.
– O que é? Agora não dá, tenho que dar os remédios a ela.
– Deixe isso pra depois! Você não vai acreditar quando ouvir.
O rapaz bufou, não queria retornar, mas a curiosidade consumia mais do que as atividades que tinha para fazer. Deixou ali a comida e virou-se, seguindo em direção à porta, que o levou para a sala central.
– O que é, Joe? Espero que não seja nada a toa de novo, se não eu...
As palavras faltaram em sua boca ao ver pela janela em frente ao sanatório, parado o carro da família Wayne.
– O que Bruce faz aqui? – Perguntou ao rapaz.
O serviçal negou com a cabeça, não sabia do que se tratava, e para a surpresa de ambos, quem saiu do carro não era Bruce, e sim seu mordomo, Alfred, que vinha correndo com um estranho desespero estampado no rosto.
– Alfred! Aconteceu alguma coisa?
– Angelique... – Disse ele, ofegante. – Preciso ver a Angelique.
O gerente assentiu, geralmente não deixava ninguém se aproximar dos detentos, mas a família Wayne era bem vinda ali, visto que já sabia quem era o justiceiro de Gotham, Bruce foi obrigado a falar, caso algo ocorresse de forma errada. Após passar por várias portas de segurança, finalmente ele se via ali, em frente à cela da ruiva que não via há muito tempo.
– Angelique! – Disse Alfred, agarrando-se nas barras da porta.
Pela primeira vez em tempos, ela reconheceu a voz, mas soou muito longe em seu pensamento, tanto, que não a assimilava a ninguém. O tempo fora suficiente para fazê-la se esquecer da voz de seus conhecidos fora daquelas paredes. Só então ela ergueu a cabeça e observando o teto respondeu:
– Coringa?
– Não! Angelique, sou eu, Alfred! Olhe aqui, vire-se.
O desespero era evidente em sua voz, mas a garota levou poucos minutos para se virar em direção á porta e levantando-se com passos lentos ela o observou de perto.
– Alfred? ... Alfred! É você! Você veio me buscar!
Num instante, parecia que ela nunca estivera naquela cela, e seus olhos novamente se encheram de brilho.
– Sim, sim Angelique, mas primeiro, precisamos conversar. Guardas! Onde estão as roupas dela? Entreguem-nas.
Com suas roupas devolvidas, não precisava mais sentir aquele tecido sujo e pesado do hospício sobre o corpo, havia se livrado daquele laranja nojento, agora vestia suas antigas roupas e mais uma vez, sentiu-se a rainha de copas, que há muito pensava ter morrido. As mãos delicadas da jovem deslizaram por seu corset que parecia largo em seu corpo magro, quase esquelético e sentindo a textura do tecido quase chegou a chorar, não cansava de se olhar no espelho. Os cabelos, mais uma vez foram penteados, ajeitados caindo livremente sobre seus ombros e seus olhos verdes pareciam mais vivos do que nunca, ela não sabia porque, nem o que Alfred estava fazendo ali, mas chegara em boa hora, como se acordasse de um longo e terrível pesadelo que parecia não ter mais fim. Os sapatos lhe serviram bem, parecia a primeira vez que os vestia de novo. “Uma nova vida”, ela murmurou para si mesma, crente que Alfred a levaria novamente para morar com Bruce e sem motivos a tirava dali, levando-a para a liberdade. Talvez seu torpor não a deixasse ouvir a angustia na voz do mordomo.
– Está pronta?
Uma ultima vez a mão deslizou pelos cabelos a arrumá-los e destrancou a porta, assentindo. Alfred a olhou da cabeça aos pés e um sorriso brotou em seus lábios, talvez esperançoso.
– O que foi? Não estou bem vestida?
Ele a segurou em sua mão e beijou-a do dorso a manter o sorriso em seus lábios.
– Senhorita Angelique, parece que nunca esteve no Arkham.




O grito das pessoas era ensurdecedor, ainda mais para Batman, que não conseguia pensar. Pela primeira vez se sentiu como se não pudesse colocar a cabeça em ordem, tudo girava ao seu redor, o rosto das pessoas em perigo, indignadas por sua falta de ação e por um instante a cidade a sua volta parecia estar em chamas, sentia-se tão impotente que comparava-se à noite em que seus pais foram mortos, e tudo vinha como flashes em sua cabeça, ele devia ter agido rápido, mas não pôde, era assim que se sentia frente aos gêmeos perversos.
Suas mãos foram atadas as costas, embora sem necessidade, mal podia se mover, quem dirá atacar aos dois, atônito ele tentava se livrar das lembranças que tudo aquilo trazia a sua mente, a morte de seu arque inimigo e os anos que pareciam ter passado tão devagar, agora se mostravam um desafio enorme a frente, como os venceria? ele se perguntava, e chegou a conclusão de que a fala era a melhor opção, isto é, se alguma coisa conseguisse lhe deixar os lábios.
– Povo de Gotham, vejam o que fizemos ao herói de vocês! O herói a quem davam tanto valor, agora está aqui, preso, nem conseguiu agir, nem falar diante de nós. Isso é um castigo pelo que ele fez ao nosso querido pai há alguns anos atrás. Vejam como ele cai diante de nós como um brinquedo. Um morceguinho numa teia gigante...
Doll havia tomado a dianteira, e agora discursava, o de praxe de todo vilão, ter que fazer um discurso quando poderia simplesmente acabar com tudo, o que certamente o faz perder rapidamente o controle sem nem ao menos perceber, e era isso que estava prestes a acontecer, quando Batman resolveu interrompê-la:
– Eu não matei o seu pai, garota.
A voz havia vindo quase como um murmúrio, porém alta o suficiente para que a garota o ouvisse e a fez se voltar em direção a ele.
– Você foi cúmplice!
– Chega dessa conversa, Doll, mate logo ele! – Gritou o garoto ao lado, que apenas observava até o momento.
– Calma, Robot, tudo tem seu tempo!
– Ora essa. – E pôs-se a resmungar, como sempre fazia.
– Eu não o matei, nem fui cúmplice, sempre achei que criminosos tinham que melhorar, não morrer. Eu nunca matei um se quer, seu pai não era diferente.
O silencio tomou conta do local por alguns instantes, e então a risada que se iniciou baixa aos poucos fora audível, a garota o desafiava, rindo em frente a ele e aquela risada o lembrava alguém, que a muito buscava esquecer.
– Nunca quis matar? Ah, mas é um perfeito ator, não é? – Disse a garota, batendo palmas. – Deveriam dar um premio a você pela sua hipocrisia.
– Doll, se é assim que chamam você agora, nós podemos resolver, me deixe mostrar a vocês, me deixe conversar com vocês...
– Não há nada para resolver. Nada! Nós já nos decidimos.
– Não cometam um erro enorme, vocês sabem que o pai de vocês se afundou sozinho. Ele cavou a própria cova!
– Cale a boca! – E a fala veio seguida de um chute bem no rosto de Bruce, dessa vez quem havia se pronunciado era Robot.
Batman não sabia o que estava fazendo ao certo, ele só esperava conseguir tomar algum tempo até decidir o que fazer, quem sabe irritar os dois fosse uma boa estratégia para se soltar e ele, agora lúcido já buscava fazê-lo, buscando pelo cinto a pequena faca ali escondida, porém os gêmeos não davam trégua, parecia que eles já estavam decididos do que fazer, afinal, Doll o encarava com uma aparente fúria nos olhos que parecia cortar tudo que tivesse na frente, e Robot, mesmo que parecesse indiferente se feria ao lembrar-se do pai e de seus dias de vida, sempre quis ser igual a ele quando crescesse, não importando o que acontecesse, e isso era obvio, afinal, Coringa era a única coisa que aquelas crianças conheceram além dos programas de tv.
Bruce havia alcançado a faca e agora cortava rapidamente as amarras feitas pelos gêmeos, mas enquanto isso, mantinha os olhos fixos nos dois, observando-os atentamente, e proferia poucas palavras, tentando conversar e acalmá-los.
– Doll, Robot, larguem as armas, podemos conversar e resolver, vamos, essas pessoas não tem culpa de nada, nem vocês.
E a faca raspava inutilmente na corda em mais movimentos, estava demorando uma eternidade para cortá-la.
– Se disser mais uma palavra e interromper meu discurso, eu vou dissolver toda a sua cara, entendeu?
Ele se pôs em silencio a ouvir as palavras dela enquanto continuava a cortar, porém ao invés de continuar falando, a garota tinha se calado. Bruce ergueu o rosto, tentando descobrir o porque e deu de frente com a jovem que tinha-se bem perto de seu corpo, o sorriso estampado na face, e era tão sinistro que lhe arrepiou até os ossos.
– Está tentando fugir, Batman?
Num chute, ela jogou longe a faca que ele tinha nas mãos, junto as outras armas que ele tinha no cinto. Estava sem esperanças agora.
– Você tem razão, Robot, acho que já chega de conversa, ele está espertinho, estava até tentando fugir de nós.
Robot deu alguns passos, aproximando-se de ambos e observou o tão amado herói agora jogado ao chão, diante dele.
– Você não parece tão forte agora, não é, Batman?
– O que vocês vão ganhar fazendo isso? – Disse Bruce a observar o garoto em pé.
– Não estamos buscando prêmios ou reconhecimento. Somos apenas o final de uma piada bem contada, uma piada longa, cansativa, bem elaborada, daquelas que demoram para terminar, sabe? Mas quando terminam, ah, elas trazem riso e até mesmo lágrimas. Muitos vão chorar quando essa piada acabar, mas eu não, eu estarei sorrindo, como meu pai me ensinou.
Hunter levou a mão à cintura e ali prendeu a arma dourada que costumava usar, pegando agora outro objeto preso ao cinto. Também era uma arma, mas essa não era uma qualquer, essa era a última lembrança que tinha de seu pai, era dele, tinha sempre com ele, embora não costumasse usá-la, Coringa gostava de torturar suas vítimas, mexer com seu psicológico, matar para ele devia ser lento e doloroso, por isso sempre manteve aquela arma com ele e dizia a Robot que armas deviam ser maravilhosas, que deviam mostrar a sua personalidade, aquela arma que ele carregava, tinha somente uma bala, e ele sempre dizia a seu filho que aquela arma seria usada na hora certa. Qual seria a hora certa? Era isso que Hunter sempre perguntava, mas ele nunca dizia, com um sorriso nos lábios dizia somente “você vai usá-la, você dará o fim a essa incrível piada usando ela, não se esqueça, carregue-a com você, o fim fantástico dessa história depende somente dessa única bala.”
E ali estava ele, com a arma na mão, era a hora de colocar o ponto final naquela história, e qual era melhor jeito de fazer isso se não matando o Batman? O arque inimigo de seu pai por anos. Ele não via um fim melhor. Os passos foram três, ele sabia, porque contou, queria lembrar-se de tudo porque viveria aquela cena todos os dias de sua vida dali em diante, vingaria seu pai. Ele ergueu a arma, destravando-a e a única bala estava pronta para atingir o fim, com a arma apontada para a cabeça de Batman, seu dedo se posicionou no gatilho, pronto para apertá-lo, e foi quando algo no meio da plateia interferiu, um grito, e ele virou-se para olhar, procurando de onde aquele estranho som tinha vindo.



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Notas finais do capítulo

Demorei infinitos anos pra escrever esse capítulo e ainda tive que dividir em dois porque estava muito muito grande. Espero que fiquem curiosos pra saber qual vai ser o final. Juro que vou terminar no próximo, ou não. Não, parei, sério.

Aqui tem as imagens dos Hatter Brothers só para ajudar na imaginação. (Ignorem minhas péssimas edições):
http://s1310.photobucket.com/user/Kayaterachi/library/Hatter%20Brothers?sort=3&page=1



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