Arme suspirou, virando uma página de seu livro. Apesar de adorar ler, estava começando a se cansar de ficar naquele pequeno quarto. Já nem se lembrava mais porque havia se oferecido para ficar lá enquanto o restante do grupo jantava fora.

Bem, alguém precisava cuidar de seus pertences, de qualquer jeito. Suspirou novamente, repassando os olhos no parágrafo que lia desatentamente, procurando absorver a ideia geral antes de ir ao próximo.

Nem os livros de romance estavam sendo o bastante para distraí-la mais. Quão entediante podia ser ficar naquele quarto por tanto tempo?

A luz fraca da vela iluminava pouco o ambiente, mas era o bastante para que ela fosse capaz de ler o livro. Podia usar magia para fazer a iluminação, mas preferia mantê-la para o caso de ser necessária para alguma batalha no futuro.

Estava num quarto do segundo andar de uma pousada humilde, que no momento estava com problemas com a fiação elétrica. Encontrava-se tudo silencioso - o único barulho que se ouvia eram as páginas que ela lentamente virava.

Quase deu um pulo, então, quando ouviu uma batida na porta.

Levantou o olhar de seu livro para a madeira do portal, engolindo em seco e respirando fundo antes de perguntar quem estava do outro lado.

- É o Ronan – respondeu a pessoa, e sua voz doce e preocupada era inconfundível.

A maga levantou-se da cadeira onde se acomodava e apoiou o livro na pequena mesa, pegando a vela e levando-a até a porta, que abriu vagarosamente.

O azulado sorriu gentil ao ver a pequena garota, e estendeu a ela, sem muitas delongas, algo embrulhado em papel toalha.

- É comida. Fiquei com pena de que estivesse com fome, aqui, sozinha – explicou, sorrindo doce.

Foi inevitável que ela corasse com seu comentário. O maravilhoso arcano estava se preocupando com ela? Já podia imaginar o motivo de seu coração acelerado...

- Você quer entrar? – abriu um pouco mais a porta, fazendo um sinal com a cabeça para o interior do quarto.

- Ah, claro. Vou te fazer companhia – ele sorriu mais ainda, se é que isso era possível, e passou por ela, adentrando o cômodo.

Era um quarto bem pequeno, de paredes e chão de madeira, com uma janela na frente da qual havia uma mesinha e uma cadeira. Se cada lado da mesa, acomodavam-se beliches, fazendo com que o cômodo pudesse comportar quatro hóspedes ao todo.

O azulado sentou-se numa das camas, observando como a pequena maga violeta trancava a porta e voltava para a cadeira, apoiando o embrulho na mesa e começando a desfazê-lo para ter acesso ao jantar.

- Então, como andam as coisas? Não temos tido a chance de conversar muito ultimamente – ele deu outro sorriso gentil, mas ela não desviou o olhar de sua comida para observá-lo.

- Do jeito que fala, faz parecer até que não temos nos visto – ela soltou uma risada, usando o papel toalha que embrulhava o croassaint para segurá-lo e finalmente virando-se para o azulado. – Eu estou bem, só um tanto cansada dessa guerra toda. E você?

- Também cansado da guerra – ele deu de ombros. – Ia ser legal tirar umas férias de vez em quando, não é?

-Heróis não tiram férias – ela deu uma mordida no salgado, descobrindo o recheio de calabresa com prazer. Ronan realmente conhecia seus gostos. – Acho que não preciso de tanto descanso assim, mas só estar num lugar com uma aparência melhor já me faria feliz – suspirou.

- É – o arcano olhou em volta. – Parece até cena de filme. O pior é que começou a garoar quando estava vindo para cá. Espero que não chova muito forte, se não o pessoal vai ter de esperar para voltar.

- Hm, acho que não – a roxinha riu-se por um momento, abocanhando novamente seu salgado. Engoliu antes de continuar. – Elesis é muito determinada para se intimidar por uma chuva. Acho que ela provavelmente vai ficar doente amanhã.

Como que confirmando suas palavras, um barulho de trovão foi ouvido, e os dois puderam ver de esguelha a luz que passou pela janela, do raio que caíra um tanto distante de onde estavam. Logo em seguida, o som de chuva forte começou, e os dois suspiraram em uníssono.

- Entendo que chova no verão e tudo o mais, mas não precisava ser hoje, né? – Arme mordeu outra vez seu salgado. – De qualquer jeito, vamos nos distrair que é melhor! Esqueci de agradecer pela comida. Obrigada – deu um sorriso.

- Não há de quê – ela não podia evitar desviar o olhar antes de ver a risada que ele lhe dedicou.

Não era boba nem nada, e já tinha plena ciência dos próprios sentimentos. Mas apesar de jovem, Arme com certeza era muito madura, o bastante para saber que, durante a guerra, pelo menos, ela deveria guardar seus sentimentos para si mesma.

Ronan também era. E por isso ele também não havia feito nada, ainda. Seria imprudente, àquela altura, deixar que sua mente fosse levada por algo além de seus esforços para salvar os continentes.

Não era justo, nenhum dos dois sequer por um segundo considerara que fosse. Guerreiros não podem amar, não podem ser amados, eles não têm tempo para isso em meio ao calor da batalha. E isso era o que mais lhes doía, a ele e a ela.

- Vamos chegar lá amanhã – Arme suspirou, abocanhando novamente o croassaint. – Em Thanatos, digo. Mari disse que chegaremos amanhã.

- Sim. Me admiro que tenhamos encontrado uma vila ainda intacta tão próximo de onde ele está – o azulado passou a mão pela franja, jogando para cima, ignorando que ela ficaria bagunçada. – Sinceramente, não sei se quero enfrentá-lo logo ou se quero adiar isso até não poder mais.

- Hm – a roxinha deu um sorriso gentil. – Ia ser bom se pudéssemos adiar. Ia ser bom se pudéssemos ter mais tempo. Ia ser bom se pudéssemos ter vidas normais... – seus olhos foram ficando cada vez mais tristes, e o arcano arregalou os próprios orbes ao notar isso. – Ia ser bom se pudéssemos ser felizes, se pudéssemos viver de mais do que batalhas, se pudéssemos dormir sem nos preocupar com amanhã, se pudéssemos...

- Arme! – ele esticou uma mão e segurou o ombro dela.

A maga virou-se para ele, assustada, interrompendo seu discurso. Tinha parado de pensar conforme falava, deixando seu coração lentamente exposto. Pegou-se surpresa ao sentir um líquido escorrendo por suas bochechas.

Soltou o croassaint sobre a mesa e esticou os dedos, os orbes arroxeados arregalados conforme passava-os por sobre a trilha dolorosa de lágrimas que descia por suas bochechas. Fazia tempo que ela não chorava. Havia dito a si mesma repetidas vezes que o ato só a faria mais consciente do quanto aquele mundo era horrível, e sua fraqueza se tornaria cada vez maior e difícil de evitar.

As pontas de seus dedos seguiram o caminho úmido de suas lágrimas, e ela manteve os olhos arregalados sem realmente ver nada a sua frente. Um soluço deixou seus lábios entreabertos, mas tornou-se quase inaudível quando outro trovão soou da janela, seu rugido entrando pelas orelhas dela como um grito de guerra.

Caiu da cadeira, cobrindo as orelhas de deixando os soluços tomarem conta de si. Não queria viver daquele jeito, e também não queria que seus amados amigos tivessem de enfrentar aquela realidade. Pensou em Lire e Ryan, tão longe de tudo o que conheciam naquele mundo humano mundano; em Jin e Amy, que haviam perdido todos os companheiros queridos para Victor antes de começar aquela jornada, assim como Mari, que agora estava sozinha no mundo; em Lass, de cuja família nem sequer lembrava, e Elesis, cujo pai provavelmente jamais veria outra vez.

Diferente deles, ela tinha uma família, e os únicos amigos que se encontravam em perigo agora eram eles. Ela não queria que nada acontecesse a eles, e tinha o desejo egoísta de que talvez pudessem viver em um mundo onde guerra não fosse mais tão necessária, onde tudo pudesse ser bom outra vez.

Mal sabia ela que esse mundo demoraria um pouco para surgir, mas surgiria, aparecendo por entre as cinzas dos inimigos que iam derrotar. E era nesse mundo quase pacífico que nossos doze passos iriam se desenrolar.

- Arme... – Ronan escorregou da cama, sentando sobre o piso de madeira junto a ela, estendendo as mãos e colocando-as sobre as da maga violeta, segurando seus dedos com força. - Arme, depois de amanhã estaremos livres. Talvez não estejamos todos vivos, mas tenha fé. Algum dia a guerra vai acabar, algum dia nós seremos felizes.

- É-é verdade? – ela levantou o olhar para ele, trêmula, e o arcano sentiu um nó se formar em sua garganta ao vê-la lá, tão frágil e ao alcance de seus dedos.

Inclinou, colocando uma das mãos que seguravam as dela sob seu queixo e erguendo um pouco o rosto avermelhado da maga antes de selar seus lábios em um beijo.

Os lábios dele soavam macios e aconchegantes sobre os dela, expandindo uma calma bem-vinda por sobre o desespero que a dominara tão rapidamente. Gentilmente, após alguns segundos, ele afastou-se, seus olhos brilhando ao se chocarem com os dela.

- Quando isso tudo acabar eu também serei capaz de te dizer o que você precisa ouvir, então seja um pouco paciente – ele sussurrou. Ante aos orbes curiosos que ela pregou sobre sua figura, desviou o olhar, erguendo-se e seguindo para a porta, destrancando-a antes de sair.

Ela o observou, ainda do chão, conforme ele deixava o cômodo, o som da maçaneta fechando sendo eclipsado lentamente pelo próximo trovão, assim como sua voz baixa, que deixou vagarosa os lábios vermelhos e esperançosos.

- Eu serei.