Last Letters escrita por AnyBnight


Capítulo 6
VI: A Abandonada


Notas iniciais do capítulo

Demorei mais do que imaginava pra esse capítulo...
Confesso que tive várias ideias para o desfecho até decidir-me por um.



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Eu não serei como todos os outros, eu não abandonarei nada, nem mesmo meu nome, Coron, ou minha história.
Desde sempre eu era abandonada, uma das órfãs de um orfanato bem pobre. Nunca fui uma criança quieta, vivia aprontando pelos campos que cercavam o orfanato. Graças à isso também vivia me machucando, quase sempre quebrando as pernas.

Quem atendia as crianças do orfanato de tempos em tempos era o doutor Drevis, na época, um senhor jovem e gentil, e também muito paterno. Eu sempre tive um grande apego à ele e confesso que me machucava e adoecia de propósito só para ser tratada por suas mãos gentis

"Ora, ora, Coron, doente outra vez?" era o que costumava dizer em minhas consultas, tocando suavemente minha testa para checar temperatura. Eu adorava o doutor Drevis e sonhava sempre tê-lo como meu pai. "Do jeito que você precisa de mim, vou acabar levando-a comigo." brincava. Uma brincadeira que me preenchia de esperança.

E,

Não tardou muito para essa brincadeira que nutria meu sonho o realizar.

Em cerca de meus 11 anos, o orfanato beirava a falência. Já não haviam muitas crianças lá e o governo não nos dispunha tantos recursos; não tinha mais como pagar as visitas do doutor Drevis. Sendo assim, ele parou de vir. Por mais que eu me ferisse, por mais que adoecesse, ele não vinha. Chegamos à um ponto em que restava apenas eu e a diretora daquele lugar ali.

Sem eu saber porquê, teve uma última vez em que o doutor Drevis veio. Só de vê-lo chegar corri ao seu encontro "Doutor Drevis!" abraçava-o como uma filha abraçaria o pai que acabara de voltar do trabalho. "É bom vê-la de novo, Coron." Apesar do tom sereno de sempre, notei que o doutor parecia estranho de alguma forma, estava mais frio. Pensei ser apenas coisa da minha cabeça, não deixaria minha imaginação estragar a felicidade daquele momento. "Coron, você se lembra de quando eu dizia que a levaria comigo?" Ouvir aquilo foi simplesmente... maravilhoso! Eu enfim fui adotada pelo "pai" que tanto amava! Embora ele tenha aparentado estar decepcionado por ver que eu era a única lá... Seria possível que ele adotaria mais alguém além de mim?

Fomos pra casa. Eu estava tão feliz, não parava de rir e falar durante todo o caminho sem soltar o braço do doutor um segundo sequer! A casa era tão grande e me deixava tão ansiosa pela vida que eu teria ali...

"Desculpe, Coron, mas você vai ter que ficar em outro lugar por um tempo."

"Outro lugar? Eu não vou morar aqui?" 

"Sim e não. Ainda será nesta casa, mas... Bem, venha comigo."

Fui guiada por uma passagem subterrânea, um longo labirinto no porão. Doutor Drevis não me respondeu quando perguntei porque teria que ficar ali e não lá em cima com ele e a família a qual eu queria tanto pertencer.

O quarto onde eu fiquei era tão longe da parte principal da casa que eu nem lembrava mais o caminho de volta. A galeria onde ficava o quarto possuía apenas dois deles, ambos completamente fechados onde a única coisa sem ser parede ali era uma porta de madeira ferro. A iluminação era precária. Eu vivi ali por muitos dias e raramente o doutor vinha me ver, mas todos os dias eu recebia a visita da assistente, Maria, que vinha trazer comida. Nunca gostei dela, ela me olhava com desprezo como se eu fosse um inseto ou coisa pior; eu sempre a insultava. Eu confesso que tinha inveja dela por sempre poder estar perto do meu amado doutor.

Numa das raras visitas dele - sempre ladeado por aquela vadia chata -, o doutor me trouxe um cãozinho. Aquilo me alegrou muito e achava que as coisas finalmente estariam mudando. Ainda assim nunca recebi uma boa resposta sobre o porquê de estar ali ou sobre as injeções e remédios que eu tinha que tomar.

Depois de algum tempo naquela quase solidão, outra pessoa viera ocupar o quarto-cela ao lado do meu. Eu não vi quando o doutor o trouxe, talvez tenha o feito quando eu estava dormindo ou sei lá. Eu o vi através de um buraco que ficava na parede entre nossos quartos.

Era um garoto, da minha idade eu acho, loiro e muito quieto. Tentei fazer amizade com ele, mas ele não se abria, ficava calado o tempo todo, dava respostas secas e diretas. Apelidei-o de Dio já que não quis me dizer seu verdadeiro nome. Eu tinha Dio e o meu cãozinho como companhia mas ainda ansiava pelo doutor Drevis todos os dias.
Dio sempre me dizia pra não confiar no doutor, que ele era uma pessoa ruim. Nunca dei ouvidos a isso.

Uma vez, sem que o doutor ou Maria percebessem, eu lhes tomei a chave das celas. Quando ouvi que deixaram a galeria apressei-me para sair. Libertei Dio também. Aquele foi o nosso primeiro e último encontro. Ele tentava me convencer a fugir o quanto antes, que ele sabia o caminho de volta, mas como sempre, eu não liguei. Ainda era uma garota travessa e queria mesmo era explorar o lugar e procurar pelo doutor. Dio me disse pra tomar cuidado e foi por um caminho diferente do quê tomei. Claro, meu cãozinho vinha comigo.

Eu, estranhamente, não me incomodava com as galerias escuras, frias e silenciosas; já havia me acostumado. Apenas o cheiro que o lugar tinha me dava vontade de vomitar. Tudo cheirava a coisa morta, principalmente as bonecas de porcelana... espalhadas pelo caminho. Tá, isso era estranho. Cheguei perto de algumas, todas eram assustadoramente reais, pessoas em miniatura. O cãozinho sempre latia para elas e eu apenas ria disso. Só que uma hora ele parou.

Eu andava sem olhar pra trás enquanto ele ficava parando toda hora pra latir para as bonecas. O último latido que ouvi dele foi agudo, de dor. Quando me virei o vi caído, sagrando, com facas fincadas na lateral do corpo. Quando cheguei até ele já estava morto.

Sem entender mais nada, um medo absurdo começou a me tomar. Peguei meu cãozinho imóvel e corri de volta para a cela, não o abandonaria mesmo que a vida o tivesse feito. Talvez o doutor pudesse salvá-lo.

Voltando para o quarto, encontrei a porta de Dio fechada novamente, o que era muito estranho pois me lembrava claramente de não tê-la fechado antes de sair da galeria... Olhei pelo buraco na parede que ligava nossos quartos mas não o vi. Estranho.

Fiquei lá, sozinha acariciando meu cãozinho morto esperando o doutor voltar. No dia seguinte, apenas Maria veio.

"Onde está o doutor?" perguntei sem obter resposta "Ei, me responde!". Maria deixou minha refeição na mesa e olhou o cãozinho. Não parecia surpresa por estar morto. Confiava cada vez menos em Maria

"Ele virá em breve" ela disse ao se retirar, levando o cadáver consigo. Disse que precisava dele e que o devolveria em breve. Muito estranho.

Estava completamente sozinha outra vez. Não tinha meu cão, não tinha o Dio, não tinha ninguém.

Passaram-se três dias num silêncio doloroso. Maria não apareceu mais para me trazer comida. Perdi a conta de quantas vezes gritei por ela ou pelo doutor, que só apareceu mais tarde.

Veio sozinho, trazendo um enorme pacote. Fiquei feliz em vê-lo e corri para abraçá-lo quando chegou. Ele não me afastou, mas seu rosto não era nada amigável. Ele perdera a expressão que tinha quando vinha me ver, estava incomparavelmente mais frio. Revelou naquele pacote meu cãozinho empalhado dizendo que o animal fora inútil. "Inútil?" indaguei confusa. Recebi uma última injeção e ele se foi, parecendo decepcionado. Era mais um que nunca mais encontraria.

Mais tempo de solidão viera para mim. Eu não recebia mais comida ou água, sentia dores musculares terríveis sem saber porquê, o isolamento me tomava a sanidade. Lembro que em meus últimos dias gritava sem parar, debatendo-me contra as paredes frias, mutilando-me com minhas unhas. Não aguentava mais ficar sozinha.
Maria veio uma última vez. Eu vi a porta se abrindo mas não tinha forças para ir até lá. Sentia um terrível gosto de sangue na garganta, aparentemente rompi minhas cordas vocais de tanto gritar, minha pele acinzentada pela ausência de sol estava manchada pelo roxo dos hematomas que causei a mim mesma.

"Creio que já esteja ciente disso, mas vim avisá-la por pena. O doutor não precisa mais de você, parece que nenhuma das drogas que testamos em você surtiu o efeito desejado e nada no seu corpo é aproveitável. Você foi descartada pelo doutor Drevis."

Apesar de toda a dor que estava sentindo naquele momento, "descartada" foi o que me seifou. Senti meu coração parar e levei minhas mãos ao peito como se pudesse arrancá-lo para que não doesse mais.

"Mas... Ele era pra ser... Meu pai..." disse num fio de voz, vomitando sangue em seguida.
"Ela nunca o viu como uma filha, você foi apenas uma cobaia. A mais inútil de todas, nas palavras dele."

Maria se foi sem dizer mais nada, não sem antes me lançar um último olhar de nojo. Não sei por quanto tempo mais eu vivi depois daquilo. Algumas horas, minutos, um dia ou semanas. Fui abandonada pelo cãozinho, por Dio, pelo doutor e por minha própria vida. Apenas a morte e seu toque gélido me acolheram de verdade.


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Notas finais do capítulo

E o próximo é o Dio /o/