Last Letters escrita por AnyBnight


Capítulo 3
III: O Incompleto.


Notas iniciais do capítulo

Esse foi o capítulo mais difícil de escrever até agora, até porque, era o "zumbi" com menos informação dentre as minhas base. Tenho a sensação de que quanto mais difícil é escrever, mais longa a história fica.



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Era sempre vazio. Mesmo antes, mesmo depois. Sempre algo parecia errado, sempre algo parecia faltar. Nunca estava "completo".
Esse sentimento de imperfeição me fez sair de casa pouco depois de alcançar a maioridade. Bom, tanto faz, eu não pertencia àquele lugar mesmo.

Passei a viver nas ruas de uma cidade qualquer, praticando pequenos assaltos para sobreviver. Não tinha uma casa ou garantia de uma amanhã, mas estava vivo. Vivo e incompleto.

Ele foi só mais um pra quem apontei uma faca enferrujada, mas o único que foi capaz de ver através dela. De uma persuasão incrível, aquele homem conseguiu me fazer abaixar a lâmina e me rendeu com suas palavras. Pelo que me disse, era um médico que estava testando algumas drogas e precisava de cobaias. Coisas assim não são ditas de forma tão aberta, mas ele sabia que eu não tinha nada a perder com isso. Eu fui facilmente convencido a cooperar com seus estudos com a promessa de ser "completado".

Pra minha surpresa, eu não era o único quem o Dr. Drevis acolhera no subsolo de sua mansão. Haviam tantos outros como eu ali... Pessoas vazias, confusas, indiferentes, incompletas. Pessoas que buscam paz de espírito em remédios duvidosos criados pelo doutor. Ele nunca nos dissera que drogas eram aquelas, e não é como se a maioria se importasse. Eu mesmo não me importava.

Logo, eu havia me tornado um viciado. Experimentei diferentes tipos de "novos remédios" e seus efeitos colaterais. Já me senti bem, mal, depressivo, agressivo. Alguns causavam dores terríveis ao corpo, e outros eram como anestesias. Mas nada daquilo me "completava".

Algum tempo depois, o doutor diminuiu o ritmo dessa experiência. Muitos dos que conheci quando cheguei haviam morrido e parecia que nenhuma das drogas tinha o efeito que o doutor esperava criar. Ele começou a trazer outro tipo de pessoa para os dormitórios, pessoas que ele parecia estimar mais pois as deixava livre enquanto nós mais antigos, ficávamos presos em celas a maior parte do tempo.

Todos aqueles remédios, que agora eram menos, estavam me fazendo falta, me tornando ainda mais incompleto. Eu precisava de mais, o que eu recebia agora não bastava, tinha que ser logo ou eu perderia a sanidade em breve. 

Numa das raras vezes em que as celas ficavam abertas, eu dei um jeito de escapar do dormitório. Sabe-se lá pra onde eu estava indo, saí entrando em portas e corredores que via pela frente afim de achar a sala onde o doutor guardava as drogas. Cada nova porta que eu abria me levava a um lugar mais assustador. Tinham salas onde o escuro era total, e depois de algum tempo perdido, eu achei ter chegado onde queria.

Um laboratório escuro, com muitas estantes e prateleiras onde só conseguia ver um fraco reflexo nos frascos de vidro. Corri até uma das estantes e peguei um sem hesitar. Estava prestes a abri-lo quando me dei conta do que tinha ali dentro. Uma coisa pequena e rugosa imersa em líquido... Um feto. Pus o frasco no lugar imediatamente e peguei outro, e outro, e cada vidro que pegava me deixa mais enojado. Eram partes de corpos, olhos, dedos... Aí eu me lembrei que uma moça grávida que morava nos dormitórios havia sumido recentemente. Era ela ali, em partes!? E quantos mais tiveram o mesmo destino dela!? Acabei deixando o último frasco que segurava cair antes de sair correndo de lá. Tinha que fugir, de algum jeito, ou pelo menos voltar aos dormitórios e avisar aos demais. 

Enquanto corria, percebi que minha velocidade diminuía, e não era pelo cansaço. Minhas juntas de repente paralisaram e eu não saia mais do lugar. "O que está acontecendo!?" eu entrava em desespero, podia ouvir passos tranquilos ecoando no corredor atrás de mim. 

"Você não deveria estar num lugar como esses, meu jovem." era o doutor. Eu não consegui me virar para vê-lo, meu corpo não se movia mais. "Finalmente um resultado satisfatório, só preciso saber agora o que fez o efeito se ativar."

Foi tão frustrante, ele me arrastou até um outro laboratório sem eu poder resistir. Eu parecia um boneco em suas mãos.
No fim, eu estava deitado numa maca, apenas esperando sem poder fazer nada o que viria a seguir.

"Seu corpo está em estado fascinante! É um grande avanço em minha pesquisa!" ele falava como se estivesse maravilhado. Não conseguia ver bem o seu rosto, mas tinha certeza que sua expressão era mais assustadora que seu tom de voz. "Só é uma pena que você não seja um sucesso total. Se não fosse esse seu rosto... Seria um manequim perfeito!"

Um barulho ensurdecedor, o rangido irritante de um motor. Uma dor forte que durou apenas um momento. E instantes após, minha cabeça jazia no chão. Agora entendo que o vazio que me deixava incompleto estava o tempo todo...

Na minha cabeça.


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