Diário De Um Sobrevivente escrita por Allann Sousa


Capítulo 19
Causas


Notas iniciais do capítulo

Neste capítulo posso ter destruído totalmente minha obra ou tornado-a dez vezes mais original e emocionante, ou até mesmo os dois..
Espero comentários dizendo o que eu fiz XD



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Adicionando isso em honra ao moleque

Trecho acrescido do testemunho de Laylor

Eles dois entraram na van mais uma vez juntos, um depois do outro, tentando disfarçar, mas todo mundo percebia, éramos todos adultos. Encostada numa árvore, tentando limpar meu violão com um pano indubitavelmente mais sujo do que ele, e sem conseguir dormir eu vi Amélia entrando na van e Johan entrando logo depois, eles não eram tão silenciosos, afinal não tínhamos crianças no grupo.

Todos percebiam que quanto mais nos aproximávamos do tal porto, o qual depois de nossa insistência Johan resolveu falar sobre, ele ficava mais instável. Era óbvio também que nos movíamos ao passo de uma tartaruga por ele e a mãe do garoto manterem a esperança de que o menino apareceria. Mas o engraçado é como sentimos a falta desse prazer abstrato e como ele pode alterar nosso humor e nos ajudar a seguir em frente.

Por causa disso não os julgo, apenas observo. Afinal eu mesma tive esperanças ao ver aquele homem que parecia ter algumas coisas em comum, mas me decepcionei ao ver ele se enrolar com aquela mulher calada que tem cara de vadia.

Algo que eu poderia julgar sem sentir culpa era o modo como eles perguntavam sobre minha vida, a qual eu não tinha o mínimo orgulho de narrar e havia ocultado da maioria das poucas pessoas com que me relacionava antes de tudo isso.

Primeiramente eu fui concebida acidentalmente por um dos clientes da minha mãe que resolveu não usar preservativo e pagou a mais por isso. Isso mesmo, minha era uma prostituta e só resolveu me revelar essa história do meu “pai” quando eu alcancei uma mentalidade quase adulta já estava prestes a desistir de perguntar.

Eu aprendi a ser durona, jogava basquete com os garotos de gangue desde cedo por ter destruído ou ter visto sendo destruídas as poucas bonecas que tive. Ao invés do álcool escolhi a academia e depois de aprender a lutar muay thai ainda não estava satisfeita. Mas não consegui escapar do poder sedutor da maconha, afinal lutar desde criança para sobreviver vendo a mãe ser humilhada e chorar por não poder atender as suas necessidades abala a estrutura de qualquer um.

Antes de cair no abismo profundo das drogas mais devastadoras, conheci um garoto da igreja que por algum motivo desejava de todo o coração “se tornar meu salvador”. Ele ia quase todos os dias corajosamente à frente da minha casa com seu violão e tocava algum tipo de música romântica que parecia country e que eu odiava.

Por fim acabei reconhecendo que ele não era um louco de ir ao meu bairro cheio de marginais para tocar uma música tão gay e sim que era seu amor por mim que o fazia superar qualquer medo. Ele não foi meu primeiro namorado, mas eu cheguei a desejar que fosse, porém ele foi o primeiro a me descobrir totalmente. Depois de alguns anos nós nos casamos, eu já havia saído da casa da minha mãe há tempo e nessa época nós a ajudamos a mudar para um bairro melhor.

O que me impressionava era que mesmo depois de tantos anos aquele homem, que eu havia conhecido ainda garoto, guardava o violão com que tocara tantas músicas em frente à minha casa e com o qual me ensinou a tocar. Ele falava sobre o poder dos bens que nós estimamos e sobre colocar o instrumento numa redoma de vidro.

Mas nessa época algo terrível aconteceu. Noticiários falavam sobre ataques de criaturas misteriosas e sobre cuidados e precauções que devíamos tomar para ficarmos seguros. No entanto o número de ataques parecia só aumentar e poucas informações nos eram dadas. Assim continuou até o dia em que criaturas estranhas invadiram nossa casa durante a noite, meu marido foi ver o que estava acontecendo e não voltou mais.

Quando fui até a sala me deparei com a horrível cena de seres humanos de pele cinzenta devorando os restos do homem que eu amava. Quando me perceberam ali olhando para eles começaram a vir em minha direção, aparentemente insaciáveis. Eu teria aceitado ficar ali, sentia como se não tivesse mais nada no mundo, nada que me importasse. Então quando eles me agarraram eu me lembrei de minha mãe e meus instintos me guiaram, fazendo-me empurrar a cabeça da coisa que me segurava contra a parede e quebrar um vaso na cabeça de outra. Eu sentia terror e culpa ao vê-los avançarem, dentro da minha casa e na rua através da porta quebrada. Pareciam pessoas, homens, mulheres e crianças, no entanto o estranho era que eles não tinham calor, seus olhos eram secos e sem sentimentos, sua pele pálida e enrugada, seus cabelos ralos, eles estavam mortos.

Lembrei-me de outra coisa. Corri de volta até o quarto e peguei uma caixa ao lado do guarda-roupa. Eu não tinha armas, nem equipamentos, nem suprimentos, tinha que vagar por aí comendo o que encontrasse e usando o que tivesse à mão, menos uma coisa, o violão do meu marido, a última lembrança que eu tinha e teria dele e de todos os momentos felizes da minha vida.

Andei a cidade inteira, me escondendo em casas abandonadas e destruídas, em comércios saqueados e em escadas de incêndio de becos escuros. Quando cheguei à casa da minha mãe já era uma perfeita sobrevivente, entendia a “lógica” dos mortos-vivos e já tinha ouvido algumas vezes falar sobre Atlanta, lugar para onde eu tinha esperança de levar minha mãe.

Mais uma vez tive meu espírito puxado para fora à força, quando vi o condomínio para onde minha mãe tinha se mudado tomado por zumbis. Entrei correndo na casa apenas para encontrá-la vazia, marcas de sangue para todo lado, mas nenhum corpo. Talvez minha mãe tivesse morrido e devorada completamente ou despedaçada por essas criaturas asquerosas, talvez estivesse viva em algum lugar. De qualquer modo eu não conseguiria nem rastrear uma galinha numa granja, então minhas chances de encontrar uma senhora de meia idade num mundo apocalíptico eram zero.

Então permaneci naquela casa, sem vontade de viver até ser tocada novamente. Então comecei a tocar violão, comendo enlatados, depois alguns passarinhos que conseguia pegar com armadilhas no telhado e até mesmo ratos. Assim eu sobrevivi até ser encontrada por esse garoto e o tio dele. O garoto com olhos cativantes que me fizeram sentir vontade de viver e de fazer os outros viverem. O garoto que agora sumiu e que sua falta se faz ser sentida.

George

Estávamos entrando na cidade mais populosa do estado da Pensilvânia, Filadélfia, cortando através de ruas estreitas onde o grande rio Delaware não podia ser visto, evitando as avenidas por onde a multidão de zumbis fazia algo parecia com uma enorme procissão, ocupando o asfalto.

Helsin enfiou o Jeep através de um comprido parque, talvez por precaução, que eu não estranhei nem reclamei, pois mesmo depois de três dias ainda tinha a imagem daquela senhora abrindo os braços para os zumbis e servindo de sacrifício para que nós pudéssemos fugir. Eu fiquei apenas olhando pela janela fechada da nossa Troller T4 cabine dupla, encontrada à beira da interestadual do meu antigo lar, os galhos batendo contra o veículo. Depois de sair do parque, passar rapidamente por uma avenida com vários grupos de zumbis e cortar por mais algumas ruas paramos na grama no meio das árvores.

— Vamos sair aqui — o meu guia anunciou, saindo do carro.

— Onde fica o quartel? — perguntei, acompanhando-o para fora.

— logo em frente — ele apontou. De fato eu pude ver o prédio vermelho protegido com cercas elétricas onde havia várias placas azuis com a inscrição: “Propriedade do US” e do lado de dentro havia três caminhões, dois com uma lona camuflada do exército e outro metálico com a inscrição: “Guarda nacional” e a uma bandeira dos EUA num fundo azul.

— Por que não paramos logo em frente?

— Primeiro, se dermos de cara com uma manada quero que haja a possibilidade de distraí-los para outra direção para termos tempo de pegar o carro e fugirmos — ele fez uma pausa, como se hesitasse entre citar ou não o segundo motivo. — E segundo, se algum grupo de sobreviventes nos encontrar não quero que saibam que temos possibilidades tão claras de fuga. O melhor momento para agir é quando nossos inimigos nos subestimam, só é atacado por um zumbi aquele que considerá-lo lento e frágil demais. — Ele sorriu.

Nós atravessamos a rua agachados silenciosamente até encontrarmos alguns zumbis perambulando por lá. Helsin pegou uma pedra e atirou em uma lata de lixo metálica para atraí-los. Em seguida corremos até a grade, ele pediu que eu cortasse a grade e assim eu fiz. Então entramos pelo buraco aberto e atravessamos o estacionamento até a entrada do quartel.

— Creio que o lugar não está infestado de zumbis, com todas essas grades — Helsin propôs, segurando a maçaneta metálica das portas de carvalho. — Fique atento!

— De certa forma você está certo — uma voz de mulher tão grave que poderia facilmente ser confundida veio de algum lugar atrás de nós. — Agora nos diga o que vocês fazem dentro de uma área do exército, vocês não sabem ler?

Viramos-nos para cinco M16’s modificadas ao estilo das forças armadas americanas e para uma mulher branca de rosto bem maquiado com os cabelos negros presos em um coque.

— Incrível! Apenas um homem e um garoto conseguiram sobreviver todo esse tempo? Só vocês dois?

Nenhum de nós respondeu, Helsin parecia indignado, talvez até descrente.

— Você, encontre e feche o buraco que eles fizeram na grade! Não queremos esses bichos asquerosos aqui dentro não é mesmo? — ela ordenou a um dos soldados e depois se voltou para nós. — Então, pretendem falar alguma coisa ainda hoje?

Como nós não respondemos, eu ao menos sabia o que dizer, ela começou a perder a fingida calma.

— Tudo bem — ela resmungou, pondo a mão na têmpora que deveria estar latejando. — Entreguem suas armas com muita calma e vamos conversar lá dentro, não tentem nenhuma gracinha, tem dois atiradores de elite no telhado com as armas apontadas para suas cabeças.

Aparentemente aquela mulher era muito influente, pois seu escritório era enorme e parecia ser o principal, o que me fez supor que era a sala do general. Havia algumas armas e medalhas nas paredes e uma grande mesa sobre a qual foram colocados meu revólver, minha espada e o arsenal do Helsin, incluindo suas granadas.

— Agora que vocês estão mais confortáveis — ela brincou conosco, sentados em duas poltronas de couro de frente para a mesa cheia de armas e para a própria mulher, e ainda estávamos na mira de quatro fuzis. — Podem me dizer como vocês sobreviveram todo esse tempo lá fora? Vocês conhecem algum lugar onde haja mais gente viva? Dependo das suas respostas vocês poderão ficar aqui conosco.

Depois de um minuto de silêncio, em que Helsin olhava para todo lado, menos para a mulher, fingindo analisar a sala, eu resolvi perguntar algo.

— Então você é a general?

— Não, sou a primeiro tenente Taylor Clarkson, assistente do general Holmes Fazzer, o general está em uma reunião.

— Reunião? Como assim? Quer dizer que o exército está resistindo?

— Claro que está resistindo garoto, você é idiota? Acha que algumas criaturas podres seriam capazes de enfrentar nossas armas?

Eu estava me enfurecendo com o que ela dizia, Helsin apenas olhava para o outro lado, parecendo despreocupado.

— Quer dizer que o exército está vivo? E está deixando as pessoas morrerem lá fora?

— Alguns exércitos estão vivos sim, de alguns estados apenas. Aqueles que foram contra nosso propósito e eram fracos demais para lutar contra nossas armas já caíram, estamos agora resolvendo nossas diferenças contra alguns estados mais poderosos e influentes.

— Do que você está falando? — eu me levantei revoltado. — Quer dizer que vocês estão controlando isso?

Eu me levantei, mas uma mão forte me empurrou pelo ombro de volta à cadeira.

— Eu não disse nada disso — ela falou com um sorriso. — Você é muito imaturo para entender, mas você consegue entender nosso propósito, não coronel Jack Johnson?

Helsin finalmente resolveu se pronunciar, levantando-se e encarando-a com o olhar em chamas.

— Eu não achei que vocês seriam capazes de fazer isso.

— Pelo bem da nossa nação, somos capazes de fazer qualquer coisa — ela respondeu imparcial.

— Que nação? O país está em pedaços! A população foi dizimada!

— Nem toda população, nem todo o país. Ainda há estados que foram poupados até agora do nosso plano, e os sobreviventes dos estados atingidos logo serão resgatados.

— Você está falando de pessoas como se fossem objetos, milhares de pessoas foram mortas por causa desse seu plano!

— Sobrevivência do mais apto. Nosso país estava uma bagunça, o sistema estava falido, a crise estava nos despedaçando por dentro, a maior parte da população tomava um rumo contrário às leis que existiam desde antes da sua concepção, o governo não iria tomar nenhuma decisão firme que mudasse esse quadro aceitavelmente, então nós resolvemos tomar uma decisão, você ainda não compreende?

O homem que eu agora sabia chamar Jack Johnson caiu sentado na cadeira num nível extremo de assombro tal que fazia seus olhos tremerem vidrados encarando o vazio, a profundeza sombria a qual aquelas pessoas chegaram para chamar uma ideia de aniquilação, lenta e em massa, de plano aceitável.

Eu me levantei novamente e peguei meu revólver, apontando para a cabeça da mulher, no mesmo instante os quatro fuzis foram apontados para minha cabeça, um deles fez menção de me acertar com a coronha da arma, mas a tenente se interpôs.

— Deixem-no! O garoto tem coragem.

— Quando você diz “nós resolvemos tomar uma decisão”, o que você quer dizer quem isso? Quem é esse “nós”?

— Eu não te devo explicação garoto — ela virou-se de costas, para demonstrar sua despreocupação.

Eu engatilhei a arma.

— Não me faça de bobo e não banque o idiota, eu sei que você não vai atirar. Você tem alguém vivo que pensa em você, que espera que você sobreviva, que nesse momento deve estar procurando por você. E você sabe que no momento em que atirar em mim vai ser baleado e não vai poder ver essa pessoa novamente.

— Como você...?

— É óbvio, se não pensasse assim já teria atirado e danem-se as consequências, dado o ódio que está explícito em seus olhos.

Eu depositei o revólver de volta na mesa e caí sentado, derrotado.

— Agora a pergunta é: você quer ficar aqui conosco e sobreviver? Logo nós mandaremos equipes de busca para encontrar essa pessoa ou pessoas com quem você se importa, basta você nos dizer a localização, se souber. Afinal para terem sobrevivido tanto são todas pessoas muito fortes e é justamente isso que queremos, pessoas fortes.

Ela virou-se para mim novamente, encarou-me com aqueles olhos negros, onde eu podia ver meu próprio rosto tremendo de raiva e medo.

— Você aceita ficar e servir aos nossos propósitos? — ela ergueu a mão para mim.

Eu vi o reflexo de meu próprio rosto nervoso em seus olhos escuros, então tentei controlar minha ansiedade até restar apenas um pouco e apertei sua mão com o máximo de frieza que pude.

— Quero um treinamento de soldado.


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