Diário De Um Sobrevivente escrita por Allann Sousa


Capítulo 11
Cada gesto é uma arte


Notas iniciais do capítulo

Em homenagem ao querido mano Chorão, Alexandre Magno Abrão, gostaria que, se quiserem, lessem o capítulo ouvindo "Meu Novo Mundo" que eu acho q funciona como uma trilha sonora bacana por ter um pouco a ver com o contexto..
Se não quiserem, bem, divirtam-se lendo normalmente XD
tá no top melhores caps e se fosse a série seria o fim da temporada.



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A mão gelada do meu tio me puxou com os galões e o pouquinho de gasolina para junto da parede do armazém e sua voz, tão fria quanto a mão, me tirou do meu devaneio.

— Se não vai atirar, ficar parado servindo de isca de zumbis não vai ajudá-la de forma alguma.

— Tio, o que aconteceu comigo? — perguntei amedrontado, mas com ainda mais medo de descobrir o porquê de não ter ajudado aquela pobre mulher.

— Está me pergunto sobre o porquê de não ter atirado? — escondidos sobre a sombra daquela imponente construção, meu tio parecia querer me dar algum tipo de apoio psicológico. Não recebendo resposta ele explicou. — Talvez seu instinto tenha agido. Talvez você tenha percebido que eram zumbis demais para você matar e que acabaria morrendo tentando ajudá-la.

— Isso é horrível.

— O mundo em que nós estamos vivendo é horrível. Você é um garoto esperto, sei que já entendeu que há problemas que estão acima de nossa capacidade de resolver.

— Mas você não me falou, quando saímos daquele armazém, que temos que preservar nossos sentimentos de humanidade? — perguntei, como que exigisse uma explicação por não basear seus atos em seus próprios preceitos.

Ele suspirou antes de responder.

— Espero que Deus nos perdoe por deixar para trás aqueles que não podemos salvar.

Ouvi um grito mais agudo e estiquei o pescoço para espiar. A garota tropeçou na corrida e caiu no chão, ela encontrou meu rosto triste observando-a.

— Por favor! — ela gritou estendendo o braço na nossa direção.

Não resisti e comecei a correr na direção dela, mas antes de dar um passo fui envolvido por braços fortes e imobilizado. Fiquei apenas olhando enquanto os zumbis caíam sobre o corpo dela, aqueles olhos apavorados e cheios de dor implorando. Comecei a chorar sobre os braços do meu tio.

— Vamos embora daqui!

Ele me conduziu por trás do armazém sem que eu percebesse, logo estávamos perto das árvores, próximos ao caminho por onde tínhamos vindo.

— George, me escuta! — Johan agarrou meus ombros e me sacudiu de frente a ele. — Preciso saber se você consegue continuar ou se temos que voltar...

— Têm zumbis em todo lugar hoje em dia. Vamos continuar.

— Porque se você conseguir prosseguir tem uma loja de conveniências com um... — meu tio continuou e só depois foi perceber o que ouviu. — O quê?

— Você não encontrou comida no armazém, não é?

— Nada, estava infestado... e, além do mais, parecia ter só móveis naquelas caixas — ele respondeu, sua expressão passou de choque à frustração.

— Ótimo. Isso significa que temos que continuar a procurar comida não?

— Sim, significa — ele concordou estressado, depois me olhou como se eu fosse um paciente e ele o psiquiatra e eu tivesse sido diagnosticado com traços de grande capacidade de convencimento —, vamos descer então.

Ele deu a volta para seguir através da garagem, por trás dos caminhões.

— Espera! — chamei-o quando começou a andar. — É melhor irmos pela avenida, a mulher chamou bastante atenção dos zumbis, não deve haver muitos agora na rua. Às vezes o melhor esconderijo é campo aberto, quando os inimigos estão concentrados em um alvo distante.

Ao falar isso para ele tive uma súbita visão de uma lembrança de um aniversário, o único em que meu tio estava presente. Apostei pela cara triste de Johan que ele também se lembrou da ocasião.

Eu estava correndo para me esconder. Olhava a todo o momento para o meu amigo que contava com o rosto escondido nos braços encostados em uma parede. Por olhar demais para trás acabei esbarrando em um homem forte com cicatrizes no rosto severo. Eu me preparei para ouvir uma bronca e para cuspir as desculpas, porém as broncas não vieram.

Foi quando ouvi aquelas palavras aparentemente não muito sábias, mas se utilizadas de maneira inteligente poderiam mostrar seu valor. Ele apontou para o garoto que contava e então eu fui até ele, fiquei esperando até que ele terminasse e no último momento antes dele se virar eu bati na parede.

Eu teria ganhado a brincadeira, mas ele quase chorou e então entre risos eu acabei aceitando repetir a partida.

— Está bem, você me pegou — ele falou com uma risada. — Vamos andar rápido.

Nós descemos a The Perimeter debaixo do sol já forte fazendo fumaça invisível subir do asfalto. Eu corri à frente ao ver dois zumbis. Subi no capô de um carro vermelho e me joguei sobre o primeiro, depois de derrubá-lo com meu facão de sessenta centímetros golpeei sua cabeça ainda três vezes mais antes de o outro se aproximar. Quando ele estava a dois metros de distância atirei uma pedra que peguei no concreto na sua cabeça e depois que ele caiu me joguei sobre seu corpo caído.

— George pare! — meu tio pediu baixinho, sua força emocional já não era tão grande quanto quando encontrara a mim e minha mãe. — Pare! — pediu ele mais uma vez puxando meus braços.

— Eles mataram meu pai! Mataram aquela mulher! Mataram Mirelly! Mataram Carlos! Desgraçados! Mataram o vovô! Com certeza mataram o vovô! Merecem a morte! — eu chutava o ar entre os gritos, era demais para uma criança, era demais para qualquer um.

— Eu sabia. Vamos voltar!

— Não! — eu parei de guinchar imediatamente. — Precisamos de comida, estou vendo a avenida “Pato Donald” logo ali.

— Tudo bem — meu tio falou com um sorriso. — Vamos ver se o posto ainda tem gasolina, depois descemos um pouco a avenida “Pato Donald”.

Depois de procurarmos gasolina nos carros conseguimos encher um galão, mas ainda tínhamos esperança de encher o outro. Mesmo sendo improvável decidimos procurar no posto.

— Nossa! Que incrível! Quem diria que teria gasolina no posto de gasolina! — falei sarcasticamente, mas estava contente de saber que nossa viagem teria uma duração prolongada.

— Isso pode não ser tão estranho. Talvez as pessoas, apressadas do jeito que estavam, passaram pelo posto achando que não deveriam perder tempo procurando gasolina por onde vários já teriam procurado.

— Faz sentido.

Procuramos em vão comida na loja do posto. Depois fomos até a loja de conveniência, como já esperávamos encontramos apenas prateleiras vazias. Antes de desistir, já que a loja estava aparentemente sem zumbis, descemos até o armazém da loja.

Caixas rasgadas, armários derrubados, objetos quebrados e recipientes de mantimentos vazios espalhados pelo chão, isso foi tudo que encontramos. Estávamos refazendo o caminho quando ouvi algo.

— Espere! — falei autoritariamente com razão pela segunda vez naquele dia.

— O que houve? — meu tio perguntou pondo o galão no chão, zangado e alerta.

— Eu ouvi algo, um barulho... vindo dali — eu apontei, quando focamos nossas lanternas fiquei decepcionado por encontrar uma parede vazia e inofensiva.

Aproximei-me da parede devagar, receoso de que algo pudesse se esticar e me atacar, ou um zumbi sair de um buraco, como o que atacou o meu pai. Deixei a lanterna pender na mão direita e esfreguei a parede com a palma da esquerda.

— Deve ter sido um rato ou algo assim, não deve ser nada — meu tio falou, mas na hora que ele desviou a lanterna virando-se para ir embora eu prendi a respiração de susto.

Um filete mínimo, perceptível só estando próximo, saía da parede, uma entrada secreta. Isso era muito filme de Steven Spielberg, mas eu resolvi tentar, não havia nada a perder.

— O que você está fazendo? — Johan perguntou, voltando-se para mim procurando o motivo de eu ainda estar ali.

— Tem algo atrás da parede.

— Atrás da parede?

— Sim, me ajuda aqui com...

No entanto não foi preciso nenhum movimento por nossa parte. A parede, algo tipo de madeira leve, deslizou para um lado. Instintivamente engatilhei e apontei minha metralhadora para a parede, meu tio fez o mesmo. À frente da luz já um pouco ofuscante meia dúzia de homens se encontrava mirando para nós, três semiautomáticas, um fuzil, uma escopeta e um revólver ponto quarenta.

— Quietos! Um movimento em falso e seus miolos estarão espalhados pelo chão! — uma voz carregada de idade falou e depois de alguns segundos eu pude ver o rosto do senhor que aparentava ter mais de sessenta.

— Vocês não perdoam nem crianças? — perguntei fazendo cara de inocente.

— Não, ainda mais uma criança esperta como você, são perigosas demais, infelizmente.

— Acalme-se! Vamos todos ficar calmos! Somos apenas dois, mas temos dois fuzis, se começássemos a atirar, vocês teriam muitas baixas. Não queremos isso, não queremos matar. Mas também não queremos morrer — eu me surpreendi com a frieza e o poder de convencimento do meu tio. Porém ele era do exército, deveria ter tido muitas experiências com inimigos armados e prontos para matar.

— Abaixem suas armas então! —o velho gritou, sua esperteza quase me fez soltar um palavrão.

— Vocês estão em um número três vezes maior que nós. Talvez fosse melhor que a metade de vocês abaixasse as armas, nós abaixaríamos e em seguida o resto.

— Não banque o espertinho comigo! Não seria melhor se vocês dessem a volta e fossem embora?

— Por favor, agora estou falando como um pai. Tenho mais uns amigos e outra garotinha esperando por nós na avenida, esperando por comida — eu quase não segurei o espanto quando meu tio pôs em prática essa ideia.

A mentira quase deu resultado, eles começaram a conversar entre si aos sussurros, aparentemente jogando a compaixão contra a realidade esmagadora.

— Não podemos ajudar vocês. Nós já estamos sendo bons em deixar vocês irem tendo descoberto nosso esconderijo — um homem mais novo falou, era alto e magro, mas tinha uma feição cruel e fria.

— Tudo bem, nós vamos. Não atire nas nossas costas, por favor — meu tio levantou a arma em sinal de rendição e me chamou para perto.

Johan me empurrou para frente dele e andamos rápido. Ter meia dúzia de armas apontadas para minhas costas fazia meus ossos gelarem, mas meu tio atenuou esse medo usando seu corpo como escudo.

— Esperem! — ouvi uma mulher gritar, me arrepiei ao ouvir seus passos vindo em nossa direção.

Ela pôs um saco grande e pesado do nosso lado e voltou.

— Obrigado — falou meu tio apanhando o saco, depois ele me empurrou e saímos correndo.

Depois de tudo conseguimos alcançar nossos objetivos, tínhamos uma saca de alimentos que poderia durar até um mês se fosse racionada e tínhamos dez litros de gasolina que podiam nos levar para bem longe. Porém algo inquietava meus pensamentos, não tínhamos um objetivo, não tínhamos um plano, apenas seguíamos para o sul sem destino.

— Tio, o que há no sul? —perguntei.

Novamente estávamos sobre o sol quente da tarde e meu tio ergueu os olhos para o horizonte antes de responder.

Antes de chegarmos à nossa querida caminhonete eu percebi uma inquietação e tive um pressentimento horrível, um pouco mais à frente meus medos foram confirmados. Dezenas de zumbis subiam de entre as árvores e atacavam nosso grupo, balas ecoavam para todo lado, eu larguei os galões de gasolina e meu tio soltou a saca de alimento no chão.

Aproximei-me mais um pouco e mirei. Errei meu primeiro tiro de fuzil e a arma me empurrou para trás, quase caí com a pressão dos tiros. Felizmente os tiros foram para o alto e não acertei nenhum de meus amigos. Já meu tio experiente acertou as cabeças de três zumbis seguidos e derrubou outros dois com tiros no peito e nas pernas.

Minha mãe mostrou uma expressão de felicidade ao acertar a cabeça de um zumbi e me encontrar ali parado no asfalto, tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe. Ela atirava de dentro da cabine da caminhonete, de pé do lado do passageiro, Eagle estava do outro lado usando um revólver e errando muito. Kátia e Bernard estavam um de cada lado do veículo, a Indy não estava lá.

Não vi a garota em lugar nenhum, ela não atirava bem, mas era uma situação de emergência, ela deveria estar na ativa. Comecei a correr na direção da caminhonete preocupado. Atirei nos zumbis que se aproximavam com a Glock, o fuzil era difícil demais, meu tio tinha razão. Falei com minha mãe na porta aos berros, desesperado.

— Mãe, cadê a Indy?

— Ela está lá atrás — ela falou estranhamente, parecia triste.

— Ela está bem? — perguntei com medo.

— Está viva — ela falou e depois deu um tiro num zumbi que se aproximava.

— Tio, pegue as coisas! Vamos embora daqui! Vou te cobrir — gritei para ele.

Ele correu até a onde tínhamos largado a saca e os galões enquanto eu coloquei meu olho na mira da M1 modificada e segurei firme o rifle de assalto pesadíssimo. Atirei, errei, gastei duas balas. Meu tio acertou um zumbi a dois metros dele na cabeça antes de se abaixar para pegar a saca.

Ele jogou a sacola no ombro esquerdo e se abaixou novamente para pegar os galões. Nesse momento um zumbi saiu de trás de um carro, ele não percebeu. Eu estava a mais de dez metros dele, pus o olho na mira mais uma vez. Atirei e errei, atirei até o recuo fazer a arma subir e meu ombro doer. Meu tio levantou com esforço, carregava muito peso, o zumbi avançou sobre ele e depois caiu. Não era fácil acertar com uma arma tão pesada, mas quando alguém que a gente ama está prestes a morrer nós fazemos coisas incríveis.

Andando o mais rápido que podia e sem armas meu tio voltou, fui até ele atirando nos zumbis que surgiam, as balas estavam acabando. Rapidamente ele colocou a saca atrás e pôs os galões perto do tanque, começou a encher.

— Droga! — ouvi Bernard gritar. — Sem balas!

Eu fui até ele, tirei o facão do coldre, arma de fogo de um lado, arma branca de outro, estilo justiceiro. Arranquei duas cabeças e Bernard seguiu ao meu lado. Minha mãe e Eagle ainda atiravam, ouvi Kátia gritar que também estava sem balas. Meu tio se irritou e tirou uma escopeta de combate W1200 da mochila.

— Kátia encha o tanque! — ele gritou para ela que se pôs rapidamente ao serviço.

Ele derrubava zumbis como se fossem feitos de papel com aquela arma, por um momento fiquei encantado. Mas logo o encanto se rompeu e a realidade veio à tona como um espelho estilhaçando.

—Terminei! — Kátia gritou erguendo os braços alegre, mas a alegria durou menos que a abertura de seu sorriso.

Um zumbi se aproximou por trás sem que ela ou meu tio percebessem e enfiou seus dentes podres em seu pescoço.

— Não! — é o que a gente sempre grita quando não quer acreditar em algo terrível que acontece e a gente não pode evitar. Foi isso que meu tio gritou ao arrebentar a cabeça do zumbi com a coronha da escopeta. — Kátia! — ele gritou apoiando-a nos braços e colocando-a no chão devagar.

Dei a volta no caminhão correndo para ver e com choque encontrei meu tio de joelhos segurando a cabeça de Kátia que sangrava pela ferida no pescoço e morria aos poucos. Olhei para trás, centenas daquelas criaturas dos infernos vinham do norte da avenida em nossa direção.

— Temos que ir — Bernard falou ao se aproximar, parou ao ver Kátia morrendo no chão e pareceu pesar na sua cabeça sua indelicadeza.

— Ele tem razão — eu concordei dando uma fungada. — Não podemos ajudá-la, precisamos deixá-la e ir embora.

— Vamos — ele me deu a escopeta e ergueu Kátia nos braços.

— Tio, o que está fazendo?

— Temos que nos despedir dela de uma maneira decente. — Ele entrou no caminhão com Kátia nos braços e eu e Bernard o seguimos.

Eagle pegou a direção e acelerou o veículo ao máximo olhando pelo retrovisor a cena horripilante. Minha mãe ficou no banco do passageiro ao seu lado. Quando entrei na traseira vi uma figura pequena encolhia junto à lona da caminhonete, me aproximei dela.

— Indy? — chamei esperançoso de que tudo o que a tinha feito ficar ali parada durante o ataque fosse o medo.

Ela não respondeu, as sombras escondiam seu rosto. Ela me olhou suplicante por baixo do braço e depois se jogou nos meus braços, eu a abracei e ela deixou suas lágrimas me molharem.

— Ela foi mordida — Bernard falou lentamente.

O tempo passou lentamente, cada sacolejo do caminhão parecia a força de uma alma que partia desse mundo, cada lágrima era um bem precioso que escorria por um rosto belo, cada palavra não dita era como uma mensagem para aqueles que nos deixavam, cada soluço era uma tentativa de convencer-se de que tudo aquilo não era real, uma tentativa de acordar de um pesadelo, uma vontade de ver o rosto de uma mulher bondosa porém estressada dizer que tínhamos aula, de encontrar novamente os amigos, os conhecidos, os parentes.

Ela abaixou-se e mostrou-me a mordida no tornozelo. A palavra que estava prestes a sair era inútil demais e por isso resolvi contê-la, tentei calar o mundo para fazê-la sentir-se bem, mas o mundo me calou, não havia como sentir-se bem ali.


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Notas finais do capítulo

Poisé, morte, morte, morte, tristeza, tristeza, tristeza..
Só queria passar uma mensagem para aqueles que achariam divertido um apocalipse zumbi, não é nada divertido, valorizem as coisas simples da vida XD



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