Shikihime escrita por Ms Saika


Capítulo 5
IV - Amanhecer de incerteza




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Denhaar

Os fragmentos daquela lembrança lhe invadiram os sonhos de forma truculenta, misturando-se em sua mente ao som de vozes, gritos e sussurros que fizeram Yuna despertar arregalando os olhos de uma só vez, assustada. Respirou fundo ao se sentir de volta na realidade, olhando para o teto enquanto tentava entender o que havia acabado sonhar e só então, cerrando as sobrancelhas em estranheza, se deu conta que não conhecia o lugar onde estava. Congelou.

Ergueu-se lentamente e viu-se numa grande e confortável cama cujos lençóis tinham perfume de lavanda. Olhou ao redor e percebeu o quarto de decoração rica, embora um tanto rústica; Havia tapeçaria e os móveis eram de madeira bruta com uns poucos entalhes decorativos. As janelas eram enormes e cobertas por cortinas que deixavam os primeiros raios da luz do sol penetrar no quarto. Mas que lugar era esse? Parecia que havia sido transportada no tempo para algum lugar medieval europeu.

Levantou-se da cama lentamente, cuidadosa, e só então percebeu num canto do quarto que uma garota de branco dormia deitada num divã. Surpresa, ela ia se aproximando devagar, e apesar de toda a situação estranha, não sentia daquela figura que parecia tão jovem e inocente qualquer sensação de perigo. Quando já próxima, tocou-lhe um tanto hesitante o braço na intenção de acordá-la.

A garota que dormia era Niccolai, que depois de muito esforço conseguiu entregar-se ao sono, tamanha sua ansiedade e entusiasmo. O toque a fez despertar abrindo os grandes olhos azuis lentamente e encontrando diante de si a figura que antes dormia na cama. Um sorriso alegre e aliviado lhe iluminou o rosto e ela levantou tão rapidamente que fez Yuna assustar-se e dar um passo pra trás.

-Quem é você?! – A garota de cabelos negros perguntou nervosa, apontando-lhe o dedo.

-Meu nome é Niccolai, senhora. Sou uma de suas servas. – A loira uniu os punhos e a reverenciou longamente, fazendo Yuna olhá-la ainda mais confusa.

-Minha o que?! – A cada segundo tudo aquilo provava ser capaz de se tornar ainda mais estranho. Senhora? Serva? Qual era o problema daquela garota?

-A senhora dormiu por um bom tempo, deve estar faminta depois de toda energia que gastou! Venha comigo. – E dizendo isso, Niccolai aproximou-se e tentou segurar a mão dela, mas a outra afastou-se nervosa. A jovem sacerdotisa a olhou sem entender.

-Que lugar é esse?!

-Está em Denhaar, não se preocupe, ficará segura aqui conosco.

-Segura? Eu não sei que lugar é esse, eu não sei quem você é, eu quero voltar pra casa! – Ela exclamou quase aos gritos. Niccolai estava surpresa, não sabia como agir, aquela situação toda era completamente inesperada.

-Mas a senhora está em casa agora! – E tentava se aproximar em vão, a outra novamente se afastava até acuar-se em uma parede.

-Não, eu não estou! E fique longe! – Yuna não entendia nada. Acordara ali, naquele lugar desconhecido, com uma garota estranhamente vestida que se dizia sua serva e lhe tratava por “senhora” como se ela fosse alguém especial, nada fazia sentido. Estava assustada, sentia seu corpo fraco, parecia que tinha dormido por vários dias a fio. Nesse momento, a porta do recinto abriu-se e dela surgiu um homem alto de longos cabelos claros, que pareceu olhá-la com surpresa.

-Mestre Lune! – Niccolai o chamou e ele pôde sentir o nervosismo na voz de sua aprendiza. O sacerdote voltou seu olhar a uma assustada Yuna, acuada na parede. Ele não entendeu inicialmente, mas respirou e tentou falar-lhe. Curvando-se respeitosamente, começou a lhe falar.

-Minha senhora, que bom que está acordada. Perdoe se minha pupila fez algo que a desagradou. – Ele disse ainda curvado, fazendo com que Niccolai baixasse a cabeça resignada.

-Mais um louco...! – A jovem colegial pareceu desesperar-se, era como se ninguém conseguisse ouvi-la. Observou enquanto o desconhecido ergueu-se e começou a se aproximar, fazendo-a olhar para os lados nervosa, pegando sobre uma cômoda próxima o que parecia ser um mexedor de lareira bastante rústico. Apontou-o ameaçadoramente ao homem, que estancou seus passos e arregalou os olhos erguendo os braços em rendição. –Não se aproxime!

-Por favor, mantenha a calma, ninguém aqui vai lhe fazer mal. – Lune tentava argumentar calmamente por mais perplexo que estivesse com aquela situação inesperada. Mas bastou um passo adiante para que Yuna o atacasse num reflexo, fazendo com que a ponta áspera do objeto cortasse o ar e rasgasse levemente a túnica branca que o sacerdote usava, sob os olhos atônitos dele. Lune estava extremamente confuso. Se se tratava da encarnação de uma Deusa, por que ameaça-lo com um mexedor de lareira? Por que não usar seu enorme poder contra ele?

Ela por sua vez arregalou os olhos, surpresa consigo mesma, mas manteve a postura ameaçadora e foi avançando lentamente, fazendo Lune e Niccolai recuarem.

-Fiquem longe! – A garota continuava a dizer enquanto erguia sua “arma” contra aqueles que pensava ser uma ameaça. Quando viu a porta próxima a si, ela rapidamente a abriu e correu para a saída sem pensar duas vezes, mas qual não foi sua surpresa quando esbarrou em alguém que estava do lado de fora interrompendo seu caminho. Por pouco ambos não foram ao chão, o impacto fez com que a pessoa desequilibrasse dando alguns passos para trás e a segurasse pelos ombros num apoio mútuo. Yuna olhou rapidamente acima e deu de cara com um jovem rapaz que a olhava tão atônito quanto ela própria. Aquele rosto, ela o conhecia. De repente, teve a mesma sensação do sonho que acabara de ter, inúmeros flashes de lembranças invadiram sua cabeça de uma única vez ao ver aquela figura e só então pareceu lembrar-se de onde o conhecia. Em meio a tantos flashes teve uma lembrança clara do momento em que, diante da árvore, estava de mãos dadas com ele e então, desapareceram. Ela arregalou os olhos e afastou-se tão abruptamente que foi ao chão, olhava-o assustada, mas com ele não era diferente.

-O que tá acontecendo? – Ela perguntava sentindo seu coração disparado enquanto os olhos pareciam encher de lágrimas. Aos poucos toda aquela emoção tão súbita e a fraqueza que já sentia foram fazendo com que suas forças fossem desaparecendo. Ouvia o som baixinho de uma voz que falava palavras incompreensíveis, era a voz daquele homem que a pouco atacara dentro do quarto e que agora saía pela porta olhando-a. Ela assistia tudo confusa enquanto sentia seus olhos pesarem rapidamente, aquela voz entrava por seus ouvidos e ecoava em sua mente como um mantra. –O que está... Acontecendo... - E logo sua vista foi ficando cada vez mais escura até ir ao chão, entregando-se a um sono intenso que entorpecia seus sentidos.

...  

Yuna despertava lentamente. Sentia-se tonta, sua cabeça girava, era como se estivesse saindo do efeito de algum tipo de sedativo. A vista ia ficando mais nítida pouco a pouco embora ainda sentisse o corpo levemente entorpecido enquanto implorava internamente para que toda a situação que lutava para conseguir lembrar totalmente tivesse sido apenas um sonho. Não foi. Logo percebeu que estava sendo observada pela mesma garota loira e o estranho homem cuja voz emitira um som hipnotizante logo antes dela adormecer.

-Ah não... – Ela disse um tanto nervosa, fechando os olhos e respirando fundo. O homem fez um som para que ela não falasse e lhe sorriu com ternura.

-Por favor, a senhora não precisa ter medo, ninguém aqui lhe fará mal. – Ele lhe disse num tom que a lembrou de seu pai quando ela era pequena e tinha medo de dormir no escuro. Isso, juntamente a sensação de afago que a outra garota lhe fazia nos cabelos, a fizeram se sentir mais calma pouco a pouco embora não entendesse nada do que estava acontecendo.

-Por favor, me diga por que eu estou aqui... – Ela pediu em voz fraca. Lune não demonstrou, mas estava surpreso pela pergunta, esperava que a pessoa trazida já devesse ter total ciência de sua missão em Mithera. Mas ignorou sua confusão, a mocinha diante de si parecia muito mais assustada agora e ele não deveria pressioná-la.

-Eu explicarei tudo, não se preocupe. Mas por agora é melhor que descanse um pouco, ainda está fraca. Dê-me um minuto e virei busca-la para que faça o desjejum, mas Niccolai ficará aqui lhe fazendo companhia. – E ao ouvir tais palavras, Yuna lançou um olhar à garota que lhe sorria, sentada a seu lado na cama enquanto afagava seus cabelos. Depois, voltou sua atenção ao rapaz que a olhava fixamente, encostado ao lado da porta de braços cruzados com uma expressão misteriosa. Era ele, o rapaz que viu quando retornou à árvore naquela tarde. Mas quando isso havia acontecido mesmo? Sua mente estava confusa, a lembrança lhe era tão longínqua que era como se tivesse acontecido há anos.

Enfim o homem levantou-se e lhe deu as costas, caminhando até a saída.

Lune encarou Heero com um olhar nada satisfeito e saiu do recinto, fazendo o rapaz suspirar antes de segui-lo. Fechou a porta atrás de si e seguiu alguns passos pelo corredor até o sacerdote.

-Você nos trouxe a pessoa errada! – Lune esbravejou-lhe num sussurro, fazendo o rapaz olhá-lo insatisfeito.

-Não me culpe! Eu fiz exatamente o que me disse para fazer! – Defendeu-se.

-Você deve ter errado em algum momento, essa claramente não é a garota! – O sacerdote apontava em direção ao quarto enquanto falava, seu tom de voz era um misto de raiva e decepção.

-Você não viu o que eu vi! Ela era a única pessoa lá, ela olhou pra mim, ela chamou o meu nome sem que eu me apresentasse! Ela estava lá esperando por mim como disse a sua maldita profecia e sabia exatamente o que fazer sem que eu precisasse dizer nada! – O rapaz respondeu-lhe com raiva por estar sendo injustiçado. Lune o olhou perplexo, nunca se sentira tão confuso e de fato, provavelmente era a primeira vez em anos que Heero via seu mentor tão fora de sua aura de austeridade e controle.

-Mas então... Por quê?! – Lune perguntava a ele e a si mesmo apoiando-se na parede com os punhos cerrados enquanto tentava entender o que acontecia.

-Talvez tudo isso não passasse de uma lenda, talvez a Shikihime não queira descer ao nosso mundo para nos redimir, ou talvez você tenha interpretado mal as profecias, já cogitou essas possibilidades? – O rapaz disse-lhe áspero. Heero também estava bastante decepcionado com toda a situação.

-Não se atreva. – Lune o olhou ameaçador. O mais jovem deu-lhe as costas impaciente enquanto o outro tentava organizar suas ideias e pensar mais racionalmente. – Ela provavelmente não... Despertou ainda a consciência de seu poder. Talvez a Deusa ainda não julgue ser a hora certa para vir ao nosso mundo por que ela tem que ser preparada.

-Pensei que tinha dito que ela ia estar “pronta para ser trazida”. – Heero disse-lhe um tanto alterado.

-Eu pensei que ela fosse estar! Mas talvez... Talvez ainda falte alguma coisa.

-E se não for isso? E se toda essa história de profecia for só uma lenda?!

-Não é uma lenda! – Lune cerrou os punhos falando com extrema convicção.

-E se ela jamais for capaz de despertar essa tal consciência, como vai manda-la de volta?

-Ela vai despertar. – O sacerdote virou o rosto, estava extremamente sério, Heero aproximou-se antes de novamente perguntar-lhe em tom desafiador.

-Vamos supor só por um momento que nada disso aconteça. Se ela não atingir suas expectativas, como vai manda-la de volta?

-Eu não sei! – Lune respondeu alterado, quase interrompendo a fala do mais jovem. – Eu não sei... Eu não sei como manda-la de volta. – Dizia sem encará-lo num misto de nervosismo e desengano. Heero suspirou insatisfeito. –Eu não pensei que teria que manda-la de volta, eu... Eu achei que ela fosse querer ficar entre nós ou que voltaria por si mesma com seu poder onipotente, eu não sei... Eu não sei como manda-la de volta sem que o portal esteja aberto, eu não sei como abri-lo por mim mesmo... – O sacerdote, a cada palavra que dizia, começava a se dar conta do quão precipitados haviam sido seus atos. Baixando a cabeça ele punia-se em pensamentos por ter-se deixado cegar por sua crença absoluta e colocado tanto em risco, sendo que as coisas não saíram como planejado e agora havia a grande possibilidade de ter cometido um enorme erro.

Heero por sua vez olhou-o. Estava alterado sim, mas deu-se conta do quão mal Lune se sentia naquele momento e apiedou-se dele. Afinal aquele homem o havia ensinado boa parte de tudo o que ele sabia, lhe estendera a mão quando ninguém mais o fez e devia a ele grande parte do caráter e dos valores que trazia consigo agora. Aproximou-se e tocou-lhe o ombro de forma afetuosa, fazendo-o olhá-lo resignado.  

-Vai ter que confiar em sua fé agora mais do que nunca.

...

Lune desceu sozinho pelas escadas. Seu semblante estava pensativo, parecia perdido em suas divagações e agora já mantinha novamente o seu porte austero de sempre. Seguindo pelos corredores adornados de grandiosos quadros e candelabros ele chegou ao grande salão onde se faziam as refeições. Uma enorme mesa se colocava ao centro com grande fartura de alimentos  sobre ela. No momento em que ele adentrava o lugar, notou a mulher que se levantava da cadeira á esquerda da cabeceira e pareceu assustar-se levemente ao vê-lo. Os dois se entreolharam por alguns instantes, mas logo o sacerdote voltou à realidade, reverenciando-a respeitosamente.

-Majestade. – E então ergueu-se, voltando a olhá-la. A mulher nada disse, apenas desviou o olhar e afastou-se da mesa como se nada tivesse ouvido. Ela era uma mulher bonita por trás do olhar pesado que possuía. Os cabelos castanhos trançavam-se alinhadamente sobre o ombro direito enquanto o símbolo de sua posição social lhe circundava a testa; a coroa era linda em sua simplicidade de adornos e seu brilho iluminava o rosto quase inexpressivo dela.

-Percebi a movimentação diferente no castelo ontem à noite e também esta manhã. – Ela falou em voz baixa ainda sem olhá-lo. – Ouvi os criados comentando que você trouxera alguém para cá, uma garota.

-É verdade, senhora. – Lune respondeu-lhe simplesmente. –Mas essa pessoa não representa qualquer tipo de perigo, se é com isso que se preocupa.

-Me preocupo com o motivo que a trouxe. – A rainha então o olhou diretamente. – Minha filha mencionou-me algo sobre a Shikihime. – E ao ouvir tais palavras, Lune suspirou revirando os olhos levemente.

-Niccolai é um pouco entusiasmada demais. Mas em fato, é disso que se trata. – Ele lhe disse sincero, fazendo a rainha olhá-lo com surpresa, sem parecer muito satisfeita com o que ouvia.

-Não me diga que essa garota tem a ver com a profecia da encarnação da deusa. – O sacerdote não lhe respondeu, apenas a olhou de forma que nenhuma palavra seria necessária para confirmar sua suspeita. –Como pode dizer que ela não representa um perigo se a simples presença dela aqui nos expõe a um grande risco?

-Ela é a esperança de todo o nosso mundo para trazer a paz.

-Ela talvez seja essa esperança. – A mulher enfatizou, enquanto permanecia séria. Havia um misto de frieza e rispidez em sua voz. –E mesmo que assim seja, logo esse boato pode se espalhar e gerar desconfianças, os olhos do mundo poderão recair sobre Denhaar, o rei nãi irá aprovar sua atitude.

-Eu me entenderei pessoalmente com o rei e cuidarei para que essa informação ou qualquer coisa a respeito não saia dos muros do castelo. Mas acho que a senhora deveria ter mais confiança nesta verdade. – Ela simplesmente respirou ainda contrariada, mas nada respondeu. Estava claramente desconfortável e sem nada dizer, deu as costas, caminhando até a saída.

-Annia, por favor. – Lune a chamou, fazendo-a estancar com surpresa ao ouvi-lo chama-la pelo nome. –Depois de tantos anos, não haja tão friamente comigo. – Pediu com sinceridade, mas tudo o que recebeu dela foi o silêncio. A rainha respirou fundo e retomou seus passos, deixando o sacerdote sozinho.      

Não demorou mais que alguns segundos para Niccolai aparecer, seguida por uma confusa e cautelosa Yuna que, calada, observava tudo o que encontrava pelo lugar. Lune as olhou surpreso, mas aliviado ao ver que a garota parecia bem mais calma que antes. Aproximou-se com cuidado para não assustá-la novamente enquanto sorria. A jovem o olhou dos pés a cabeça como quem tentava entender um ser alienígena. E de fato era o que sentia daquelas pessoas e daquele lugar, pessoas estranhas com assuntos estranhos num lugar estranho. Tão confusa estava que só o que queria naquela hora era fazer com que seus pensamentos e a realidade em que se encontrava fizessem sentido.

-Por favor, pode se sentar aqui! – Niccolai falou-lhe sorridente enquanto puxava uma daquelas enormes cadeiras para que a outra se sentasse. Ela hesitou inicialmente, mas então se aproximou e sentou-se com cuidado. Era como se qualquer objeto ali presente pudesse ataca-la a qualquer instante. Mas ao contrário do momento de susto inicial, agora ela já não sentia tanto medo daquelas pessoas, estavam-lhe sendo gentis e atenciosos e não pareciam querer fazer nenhum mal. A situação é que a deixava chocada.

Niccolai rapidamente se sentou ao lado dela, sendo seguido por Lune, que se acomodou do outro lado, de frente à recém-chegada.

-Por favor – Lune ergueu as mãos apontando-lhe a comida – Não tenha medo e se sirva do que quiser. Deve estar com fome. – De fato Yuna sentia o estômago roncar e aquela mesa farta lhe era bastante convidativa. – Acho que ainda não me apresentei devidamente. Meu nome é Lune, sou o alto-sacerdote de Denhaar. – Yuna o ouviu mas estava mais concentrada na mesa diante de si. Não conseguia reconhecer uma boa parte do que estava sobre ela e não sabia exatamente o que fazer enquanto via os outros dois se servirem.  Eles a olhavam como se esperassem que ela fizesse algo, o que a fez se encolher por um instante, confusa. Percebendo o desconforto dela, Niccolai tomou de um pedaço de algo que se assemelhava a um bolo com qualquer tipo de creme no interior e colocou em seu prato.

-Prove isso. É delicioso! – A jovem lhe disse num entusiasmo que incentivou Yuna a obedecer. Tomando do alimento em mãos ela deu uma mordida e mastigou lentamente, ainda temerosa. Mas qual não foi sua surpresa ao perceber o quão saboroso era aquilo, de fato. Mordeu outro pedaço, desta vez maior e o engoliu rapidamente. Em uma fração de segundos já havia devorado tudo. Lune sorriu satisfeito ao vê-la, ainda que cautelosa, servir-se novamente.

-Não sabemos que tipo de comida estava acostumada a comer no mundo oculto, mas espero que se agrade das especiarias que temos a lhe oferecer aqui. – Ele lhe disse e ela o olhou confusa.

-Mundo oculto? – Perguntou.

-É, o lugar de onde veio. – Respondeu, fazendo com que Yuna olhasse a ele e depois a Niccolai bastante confusa. Mundo oculto? Então se o seu mundo era o “mundo oculto”, que mundo era esse em que estava? Aquilo não parava de ficar estranho. Mas ela respirou fundo e tentou agir racionalmente. Deixando de lado a delícia que estava comendo antes, acomodou-se na cadeira e pôs-se a falar.

-Tenho perguntas.

-Responderemos todas que estiverem ao nosso alcance, senhora. – Niccolai lhe respondeu fazendo Yuna suspirar com certa impaciência.

-Primeiro, chega desse negócio de “senhora”. Eu sou uma colegial, só tenho 16 anos, quero que me tratem por “você” e me chamem pelo meu nome. – Decidiu, fazendo Lune e Niccolai entreolharem-se um tanto confusos.

-Então... Por qual nome devemos chama-la? – Ele perguntou.

-Sou Akihiri Yuna. Mas já que estamos falando nisso, por que estavam me chamando de “senhora” assim o tempo todo?

-Por que a senhor-... Por que você está aqui para ser a representante da deusa no mundo. – Lune respondeu como se fosse a coisa mais natural, mas Yuna nada disse, simplesmente o olhava piscando os olhos por algumas vezes.

-Você é louco de verdade ou está brincando comigo? – Ela perguntou simplesmente e qual não foi a sua surpresa ao notar que tal questionamento pareceu chocar de verdade seus ouvintes. O silêncio tomou conta do salão por alguns instantes até que Lune, desconsertado, resolveu quebra-lo.

-Uma antiga profecia anunciou a sua chegada, há muito tempo. Anunciou que você seria trazida à Mithera para receber o espírito da deusa mãe e restituir o equilíbrio que foi quebrado em nosso mundo. Nós... Esperávamos que você tivesse ciência disso. – Lune respondeu-lhe, embora a tua última frase tenha sido dita em voz baixa, como se falasse para si mesmo. Yuna o olhava incrédula no que ouvia. No intuito de ter uma conversa racional ela tentou ignorar tudo o que acabara de escutar e voltara o foco para coisas mais concretas.

-Que lugar é esse? – Ela perguntou.

-Você está no castelo de Denhaar, um grandioso país de nosso mundo, Mithera. – Novamente a garota achou melhor seguir o mesmo raciocínio que usara anteriormente e jogou outra pergunta.

-E como eu vim parar aqui?

-Bom... Você foi trazida através da árvore sagrada ontem à noite, quando a estrela indicou que o portal estaria aberto.

-Sim – Niccolai intrometeu-se – Foi o Heero quem viajou pelo portal até mundo oculto e trouxe você!

-Estrelas indicando portais abertos em árvores sagradas... – A jovem baixou a cabeça sobre os braços apoiados na mesa em nervosismo. Todas as suas tentativas de tornar aquela situação maluca em algo que pudesse ser ao menos um pouco racional para o seu entendimento estavam falhando. Ela não sabia o que fazer, sentia-se rodeada por loucos que não falavam nada que fizesse algum sentido. – Eu quero acordar desse sonho maluco, por favor...

O sacerdote e sua aprendiza por sua vez também estavam tão confusos quanto ela, embora numa outra situação. Lune suspirou pensativo enquanto olhava a jovem diante de si que não correspondia às expectativas que tinha da pessoa que reencarnaria a deusa. Cada fibra de seu corpo temia a possibilidade de ter se equivocado.  

Yuna ergueu-se novamente e olhou o prato diante de si, mas embora ainda estivesse com fome sentia seu estômago embrulhado perante tantas dúvidas.

-Quando eu vou poder ir pra casa? – Ela perguntou numa última tentativa de entender alguma coisa do que se passava ali. Lune engoliu em seco e desviou o olhar.

-Mas Yuna, não pode nos deixar agora, foi muito difícil trazê-la. Você precisa despertar o espírito da deusa que dorme dentro de você! – Niccolai lhe disse, mas ela simplesmente balançou a cabeça como se quisesse expulsar da mente tudo o que ouvia.

-Eu não sei do que você está falando, eu só quero ir pra casa! Por favor, me leve de volta!

-Mas...

-O fato, Yuna – Lune interrompeu quando Niccolai pensou em dizer algo, fazendo as duas jovens o olharem – É que, para lhe ser franco, eu não sei como você vai poder ir pra casa agora... – A resposta fez a garota arregalar os olhos, sentindo um frio na espinha. Mas logo enrijeceu as faces e ergueu-se da mesa num súbito.

-Você está mentindo! Se soube como me trazer, sabe como me mandar de volta! Não pode me manter prisioneira aqui! – A garota apontou-lhe o dedo falando alterada.

-Infelizmente eu não estou mentindo, Yuna. Eu não sei como manda-la de volta. – Ele respondeu olhando-a nos olhos, fazendo-a assustar-se ao sentir que ele realmente lhe dizia a verdade. - Tampouco quero mantê-la aqui como prisioneira. Quero que seja nossa convidada, e agora nessas circunstâncias... Minha pupila. – Ele lhe disse gentilmente, mas ela não queria ouvi-lo. O choro tingia a expressão zangada de vermelho fazendo-a esfregar os olhos bruscamente para enxugar as lágrimas e o olhou com raiva.

-Não! Eu vou sair daqui com ou sem a sua ajuda! – E dizendo isso ela deu as costas aos dois e saiu correndo do salão, mesmo sem saber para onde estava indo. Tudo o que queria era se afastar, não importa para onde fosse. Niccolai levantou-se surpresa e tentou segui-la, mas Lune a interrompeu.

-Deixe-a ir.

-Mas ela vai acabar se perdendo no castelo!

-Ela precisa ficar um pouco só para se acalmar. Além do mais, ela não pode ir muito longe sem conhecer, não vai se perder. – Ele disse à princesa relutante em obedecê-lo enquanto observava a saída por onde Yuna havia corrido. Rezava internamente para que as coisas não se tornassem ainda mais difíceis do que já estavam.

–x-

Oran

Pouco sobrara da visão do que um dia foi um país alegre. O céu nublado parecia ter sido tingido pela fumaça escura que provinha da madeira queimada daqueles espaços destruídos.

Os soldados acabavam de recolher os corpos que ocupavam o campo de batalha e os enterravam em grandes valas conjuntas sob uma cerimônia simples, numa tentativa de levar paz a seus espíritos inquietos. Uma grande lamúria se espalhava pela cidade que agora velava seus homens que morreram lutando para defender sua terra. Não havia nada a se comemorar naquele dia para nenhum dos lados, exceto para o comandante das tropas invasoras que sorria satisfeito enquanto observava o cenário ao redor. Afinal, embora fosse o rei comandante, não foram seus amigos e familiares que haviam partido naquele grande embate. Tudo o que pensava era que agora aquela terra morta pertencia a ele, não importava sob que preço.

Seu olhar perverso dirigiu-se até uma cabana específica do seu acampamento. A entrada desta era guardada por dois soldados fortemente armados e atentos. Ele aproximou-se, sendo recebido com uma longa reverência por eles e entrou. Lá, encontrou a figura de Alina, amarrada de costas a um poste de madeira que servia de sustentáculo no centro da pequena barraca. A visão dela ali o agradou profundamente.

–Olhe só pra você... - Ele disse-lhe com um leve tom de ironia na voz, deixando desenhar em seu rosto um sorriso leve enquanto fitava a garota que estava de cabeça baixa, sentada ao chão. -Nem parece a princesa altiva e presunçosa que estava acostumado a ver. – dizia enquanto se aproximava devagar, caminhando ao redor dela como um abutre sobrevoa seu alimento sem vida antes de devorá-lo. Ao ouvir tais palavras, a garota ergueu um pouco a fronte revelando uma enorme fúria no olhar, mas permanecia silenciosa. – Ah, eu realmente não gostaria de ter que trata-la como uma simples prisioneira, mas você não me dá escolha... - Ele se mostrava falsamente desolado. Suspirou. – Não posso ser bondoso enquanto você não mostrar um bom comportamento, ou meus súditos vão pensar que sou um rei sem pulso.

–Rei? - Ela o olhou desafiadora - Meu pai era um rei. Você nunca... Nunca vai conseguir ser metade do soberano que ele foi. – Tais palavras fez com que Horen lhe lançasse um olhar cortante.

–Você não cansa de me desafiar. Até quando vai testar a minha boa vontade? - Ele abaixou-se e lhe sorriu com ironia enquanto a fitava de perto. Alina desviou o olhar e mirava, inexpressiva, um ponto qualquer no chão da cabana.

–Meu senhor! - Um soldado o chamou no momento em que abriu a cortina, curvando-se. -Está quase tudo pronto para voltarmos a Uhr.

–Ótimo. - Horen respondeu-lhe satisfeito antes de fazer um sinal para que seu soldado saísse e voltou a olhar Alina. -Você será levada para Uhr e será minha prisioneira, o meu troféu por essa vitória. E então decidirei o que vou fazer com você. - Ele levantou-se, mas antes de sair da cabana, estancou e a olhou mais uma vez. – Quem sabe possa me ajudar a tomar essa decisão começando por me agradecer devidamente por ter poupado sua vida. – Disse malicioso antes de finalmente sair. Alina, que até então estava de cabeça baixa, ergueu a fronte com um olhar decidido.

–Oran voltará a ser o que era, pai... É uma promessa.

C.O.N.T.I.N.U.A...


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