Invidia escrita por Yuui C


Capítulo 1
Invidia




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Eu só queria saber

Porque aquele sentimento

Estava me corroendo tanto...

                – Yo, Rei idiota. – Brinquei, o queixo apoiado na mão, um sorriso sádico desenhando o rosto. E me dava ainda mais alegria ao ver a expressão de desespero no rosto daquele homem. – Surpreso em me ver?

                – Judal! – Ele praticamente rosnou, franzindo o cenho, apertando os punhos. Cocei a orelha, olhando para o lado, indiferente. – Como... Como você conseguiu...?!

                – Entrar em Sindria? Hah, não me faça rir. Acha mesmo que eu não consigo passar por essa barreira? – Sinbad afastou-se um passo, apesar de já estar bem longe de mim. – Ora, vamos, não se faça de chocado! Você realmente acreditou que eu não conseguiria transpassar aquilo?

                – Bom, isso não interessa agora. O que você quer aqui?

                – AAAAAh, que chato. – Revirei os olhos, mudando a mão a qual apoiava o rosto, fitando-o extremamente entediado. – Eu vim fazer uma pequena visita para você, Rei idiota. Ou deveria chamá-lo de “Grande Idiota dos Sete Mares”? – Comecei a rir, quase histericamente, adorando o apelido. – É, certamente combina com você, Sinbad!

                O moreno relaxou a expressão, mas todo o seu corpo continuava tenso, apreensivo. Limpei o canto dos olhos, retirando as lágrimas que haviam se acumulado lá, parando de rir aos poucos. Deite-me de lado no parapeito da janela, ainda com um sorriso debochado.

                – O que foi? Tem medo que alguém nos veja aqui, às sós?  – Brinquei, pulando para dentro do quarto, aproximando-me dele. Consegui tocar seu peito, acariciando-o de leve, jogando charme para cima de sua pessoa. – O que será que os outros vão pensar quando virem o grandioso Sinbad, rei de Sindria, junto com o sacerdote do Império Kou, huh?

                Passei os braços por seus ombros, abraçando seu pescoço, o rosto bem próximo ao seu. Conseguia sentir claramente os seus músculos retesados, adorando a forma como ele estava cauteloso, apesar de não negar o meu toque.

                – O que é isso? Por um acaso gosta dos meus toques? – Ele não respondeu, tão pouco mudou o olhar sério que me lançava. – Será que o grande Rei dos Sete Mares não resiste a uma pequena... Sedução...? – Levei os lábios até bem próximos dos seus e, um instante antes que eles pudessem se tocar, o moreno pegou-me pelos pulsos, me afastando em um tranco. – Uou!

                – Já chega de brincadeira, Judal. Diga logo o que você quer! – Disse imperativo. Fechei a expressão, detestando o tom de voz dele.

                Soltei-me de seus braços, afastando-me um pouco. Caminhei e me atirei contra a grande cama que ele tinha em seu quarto, encarando-o com seriedade:

                – Onde está o pirralho? – Perguntei, direto.

                – “Aladdin”, você diz? – Sinbad pareceu surpreso. Fiz uma leve confirmação com a cabeça. – O que você quer com ele?

                – PÉÉÉÉ! Resposta errada! – Fiz um sinal de negação com os braços. – Isso não é da sua conta. Somente me diga onde está o pirralho e caso encerrado.

                – Como se eu fosse dizer, logo para você, onde o Aladdin está! Ainda mais sem ter ideia do que você possa fazer!

                – O que eu tenho a tratar com ele não é da sua conta. – Mostrei a língua, só para ver a expressão de desgosto de Sinbad ficar ainda pior. – Vamos, diga logo onde ele está!

                – Por um acaso... – O brilho em seus olhos havia mudado, fazendo um arrepio passar pela minha espinha. – Isso tem a ver com o que ocorreu em Balbadd?

                Apertei as colchas da cama com força, quase sentindo as unhas transpassarem o tecido e atingirem a palma da minha mão, qualquer vestígio de deboche desaparecendo da minha expressão no mesmo instante.

                – Já disse que não é da sua conta, idiota. – Repeti, extremamente irritado. Podia sentir o Rukh ao meu redor se abalar conforme a raiva crescia dentro de mim.

                – Acertei em cheio então. – Agora fora no rosto dele que surgira o ar de domínio, soberania.

                – Está feliz com a descoberta? Pois bem. Agora me diga logo onde está o pivete e encerramos esse assunto. – Sinbad abriu a boca para falar, mas fora interrompido por leves batidas na porta, seguindo-se da abertura da mesma.

                – Sin, eu sei que eu não deveria, mas eu preciso que você... – O das sardas apareceu, derrubando todos os pergaminhos que tinha em mãos ao me ver bem ali, sentado na cama do Rei. – Você...  – Ele rugiu, parecendo um animal.

                – Ja’far, espere um momento...!

                – Ora, ora, se não é o sardento! – A felicidade voltou ao meu rosto, o sorriso passando de orelha a orelha. – O que foi? Ficou incomodado de ver que o seu rei queridinho está com outro homem no quarto dele? Será que está com medo de perder o posto de puta favorita? – Debochei, adorando ver a forma como aqueles olhos cinza entediantes ganharam um tom dourado e um formato animal.

                Ah, ele queria me matar. Vejam só se pode uma coisas dessas.

                – Seu... – Foi tudo o que ele conseguiu rugir, antes de tentar avançar contra mim.

                Mas, uma vez mais, Sinbad estragou a brincadeira, agarrando-o fortemente pela cintura.

                – Já chega, Ja’far! – Ordenou, apertando mais os braços em volta do corpo dele. – Não caia nas provocações dele.

                – Mas Sin! – O sardento ainda tentou retrucar, mas pareceu desistir ao olhar para o moreno.

                – Olha só que putinha obediente nós temos! Sequer retruca quando o cafetão manda! – Bati palmas, achando tudo extremamente divertido. Principalmente a forma como ele apertara as adagas nas mãos, louco para querer avançar em mim. – O que foi? Quer me bater, quer? – Ele trincou os dentes. Como era divertido!

                – Basta, Judal! – Sinbad interveio, fazendo minha expressão fechar de novo. Como o senso de humor dele era antiquado.

                – Sin, o que diabos ele está fazendo aqui? – Ja’far indagou, fazendo-me revirar os olhos, entediado.

                – Ignore. – Sinbad disse, aproximando mais o rosto do dele, sussurrando alguma coisa em seu ouvido, a mão indo até sua nuca e acariciando-a de leve.

                Um flashback veio como uma pontada na minha cabeça, fazendo-me fechar um dos olhos.

“Você não deveria se importar com isso”, dizia a voz em tom calmo, um sorriso doce aparecendo nos lábios daquele que eu não conseguia ver direito, enquanto acariciava meus cabelos.

                De repente uma sensação de mal estar atingiu a boca do meu estômago, fazendo-o revirar. A cena a minha frente também não ajudava em nada.

Por quê?

Por que tenho tanto ódio de vê-los assim?

Por que me incomoda tanto vê-los assim?

Como eu desprezo tudo isso.

                – Muito bem. – Anunciei, em alto e bom som, passando por cima da cama e pulando para o parapeito da janela, descendo para o tapete mágico que trouxera comigo do Império, um dos itens das dungeons que eu criei. – Podem ficar aí nesse melo enjoativo. Eu vou embora antes que acabe vomitando. – Tanto Sinbad quanto o outro imbecil me olhavam com desdém, parecendo desconfiar do que eu realmente faria.

                Sentei no tapete e deixei que ele ganhasse altitude, afastando-se da janela do quarto. Ainda pude ver o vulto do que parecia ser Sinbad se esticando para ver aonde eu iria.

                E ele tinha boas razões para ficar preocupado mesmo, porque eu não voltaria  ao Império. Ao menos, não agora.

                Ainda queria falar com aquele pirralho idiota, mesmo que fosse caçá-lo sozinho.

                Não sei onde estava com a cabeça para ir perguntar àquele idiota do Sinbad. Como se ele fosse realmente me dizer onde estava escondendo a criança.

                Quando já estava alto o suficiente, o tapete parou e eu suspirei. O “X” da questão agora seria saber onde diabos ele poderia estar. Claro que eu estava delimitado à área do castelo, pois duvido muito que o Rei idiota fosse deixar convidados em alguma hospedaria na cidade.

                Deitei-me, olhando para o céu noturno. Os Rukhs negros começaram a passear ao meu redor, planando, às vezes batendo as asas.

                Como o pivete também era um Magi, seria fácil encontrá-lo enquanto estivesse acordado. Mas duvido muito que o Rukh fosse fazer tanto alarde enquanto ele estivesse dormindo.

                – Mas que droga, viu? – Reclamei, bocejando. Quando abri os olhos novamente, percebi uma presença curiosa ali. – Ora, ora.

                Era um pequeno Rukh branco, passeando entre os meus negros. Não era de se estranhar eles estarem por perto, afinal toda essa terra estava infestada por eles, ao ponto de me deixar enjoado.

                Mas o que me deixou realmente curioso era ele passeando sozinho por ali. Cutuquei-o com o dedo, vendo-o bater as asas e se afastar.

                – Hey, você sabe onde está o pivete? – O Rukh continuou batendo asas, voando entre os meus, parecendo querer se enturmar. – Ei, ei, nada disso. – Cutuquei-o de novo, fazendo-o se assustar. – Vamos, me mostre onde está o pivete. Aquele Magi chato. Eu sei que você sabe onde ele está.

                O pequeno pássaro planou por um tempo, depois começou a bater asas e descer, parando poucos metros abaixo, como se estivesse esperando para que eu o seguisse.

                – Oh, bom menino. – Sorri, fazendo o tapete descer, seguindo o caminho que o Rukh branco fazia.

                Ele contornou praticamente todo o palácio, chegando a uma parte mais afastada de onde eu estivera pouco antes. O pequeno pássaro continuou planando e batendo asas, até pousar em uma janela. Aproximei o tapete dali e pulei para o parapeito, sorrindo satisfeito.

                O pivete estava ali deitado naquela enorme cama, junto com os outros dois amiguinhos. Parecia extremamente feliz agarrado ao lourinho, puxando a ruiva com as mãos e os pés. Rodei os olhos para a cena, ficando ainda mais enojado.

                Como se já não tivesse me bastado o rei idiota com o sardento, agora tenho de aguentar as criancinhas agarradinhas na cama.

                Quando percebi, o pequeno Rukh branco havia voado da janela, pousando no rosto do pivete babão. Aos poucos ele pareceu despertar, levantando-se e esfregando os olhos. Virou o rosto para o lado, surpreendendo-se ao me ver ali. Sorri, sádico.

                – Yo, chibi. – Cumprimentei-o, mas ele não fizera o mesmo, encarando-me sério, da mesma forma que Sinbad fizera.

Por quê?

Por que tamanho ódio?

Por que esses olhares tão frios?

Eu merecia mesmo tudo isso?

Esse desprezo infinito?

                – O que você quer? – Ele perguntou, baixo, provavelmente para não acordar os outros.

                – Conversar? – Levantei as mãos, como quem alegava inocência. – Eu juro que dessa vez é só para isso!

                O pivete ainda ficou uns bons minutos encarando-me, analisando, aquela expressão séria e imparcial, fazendo-me bufar de irritação.

                – Então, vai ou não conversar comigo, pirralho? – Cocei de novo a orelha, impaciente.

                – Não aqui. – Disse finalmente, ainda em tom baixo, saindo bem devagar da cama para não acordar os outros. – Eles podem nos interromper caso acordem.

                Fiz um gesto afirmativo com a cabeça, vendo-o se aproximar de uma bancada e pegar o turbante de lá de cima. Ativou-o e, logo, ele estava planando na mesma altura do tapete que eu usava.

                O moreninho pulou ao meu lado no parapeito da janela, depois passou para seu turbante. Imitei-o, subindo novamente no tapete. Ele apontou para umas duas janelas depois daquela.

                – Aquele é um outro quarto de hóspedes, mas está vazio. – Explicou. – Lá ninguém poderá nos interromper.

                Com uma ordem, nós colocamos os itens para se moverem, guiando-nos até o local para onde ele apontara. Chegando lá, assim que pisei no chão do quarto, constatei que era praticamente idêntico ao outro, tirando uma ou outra mudança de mobília. Cocei a nuca, vendo o meu tapete e o turbante do moleque se dobrarem em um canto.

                Ele caminhou até a cama, subindo nela, ficando de pernas cruzadas no colchão. Continuava com aquele olhar imparcial, agora menos rígido, parecendo esperar minha manifestação.

                Perdi ainda algum tempo analisando-o, reparando em seus cabelos desarrumados, nas roupas de dormir amassadas, a maneira despojada de sentar e, também, a forma como ele mantinha um ar sério sem deixar o corpo retesar, diferentemente de Sinbad minutos atrás.

                – Então? – A voz fina quebrou minha linha de raciocínio, fazendo-me piscar umas duas vezes. – Eu... Acho que sei sobre o que você quer conversar. – O pivete disse, baixando um pouco o rosto, a expressão tornando-se mais... Complacente. – É sobre... Aquilo, né?

                Aquilo...

                O que ele me mostrara em Balbadd.

                Naquele momento, eu fiquei imobilizado pelas imagens. De fato, grande parte de tudo o que ele havia me mostrado – mortes, guerra, destruição, ira – nada disso me incomodava. Mas em especial, um pedaço que era extremamente vago, quase inexistente no meio de toda aquela carnificina.

“Está com dor?” a voz perguntava, acarinhando meu rosto.

“Você parece ser bem mimado” dizia ela sorrindo.

“Vamos, vamos, não chore! Isso é totalmente o oposto do que você me mostrou minutos atrás, não é mesmo?” consolava-me com afagos, terno.

                – É isso mesmo, não é? – Sacudi a cabeça, não prestando atenção no que ele havia dito. – Você parecia perdido em uma memória agradável.

                – Tsc. – Virei o rosto de lado, saindo de perto da janela e indo até o canto do quarto, próximo a uma cômoda, encostando-me ali. – Você não sabe de nada. Pensa que pode ler meus pensamentos?

                – Não posso. Mas sua expressão suavizou bastante por alguns instantes. – Fiz uma careta para o sorriso que ele deu. Por alguma razão, as atitudes daquele garoto me irritavam.

                Não eram somente o jeito despreocupado, as esperanças infundadas, o carisma com os outros ou mesmo esse seu ideal tosco de que “todos devemos viver em paz”.

                Tinha... Algo mais...

Alguma coisa me irritava.

Não sabia o que era.

Incomodava tanto que chegava a sufocar.

Apertava meu peito com força, fazendo minha cabeça rodar.

Mas o quê?

O que era aquilo?

O quê?

O quê?

                – Daquela vez... – Ele começou, cortando meus pensamentos uma vez mais. – Eu não pensei que as memórias chegariam tanto tempo atrás...

                – O que você quer dizer com isso, pivete?! – Dei um passo à frente, apertando as mãos. – Você sabe o que eu vi, por um acaso?!

                – Mais ou menos. – Ele coçou a nuca, parecendo sem jeito. Senti minhas veias pulsarem, tamanha era a raiva que eu estava sentindo naquele momento. – Eu acho que... Acabei mostrando além do que eu deveria.

                – NÃO BRINQUE COMIGO, PIVETE. – Voei para cima do pescoço dele, apertando-o firmemente com os dedos, ao ponto de fazê-lo engasgar. – Você conhece aquela pessoa? Então me diga quem ele é! E por que ele está na minha mente! – Rosnei, fazendo mais um pouco de força.

                – Se... Você tiver... Paci-cof-paciência e... Me soltar... –Disse, apertando os olhos, levando as pequenas mãos até meu pulso. Fiz um muxoxo e soltei-o, sentando-me de pernas cruzadas no colchão à sua frente. – AAh, aaah, bem melhor. – O chibi massageou o pescoço, aliviado por eu o ter soltado.

                Ainda ficou alguns minutos tocando a região, agora com as marcas vermelhas dos meus dedos. Fiz um “tsc” pelo exagero de força. Se eu o tivesse matado, não saberia a resposta.

                Respirei bem fundo para me acalmar e não fazer besteira antes da hora.

                – Bom... – Ele retomou, ajeitando-se na cama, encarando-me nos olhos. – Eu não sei exatamente o que você viu, mas bem provável que seja algo relacionado àquilo...

                – Aquilo o quê?! Seja específico, pirralho! Eu não sou tão paciente quanto seus amiguinhos, caso não saiba.

                – Eu sei, eu seeeei! Acalme-se! – Ele fez gestos com as mãos para que eu ponderasse minhas ações. – Aquilo ao qual me refiro, na verdade, é só um fragmento de memória. Eu também não sei do que se trata.

                – COMO VOCÊ ME CITA ALGO QUE NEM VOCÊ SABE? – Rosnei e o pequeno levantou as mãos, pedindo calma da minha parte.

                – Sabe... Grande parte da minha memória ainda está defasada. Eu passei muito tempo trancado naquele castelo com o Ugo-kun... – Ele pôs a mão no peito, como quem procurava a flauta, mas ela não estava lá. – Depois do incidente de Balbadd, eu consegui me lembrar de muita coisa. O que eu te mostrei foi a parte que está mais vívida agora. – Voltou a me encarar, sério, com uma profundidade no olhar que me assustava um pouco. – Mas... Existem alguns fragmentos que eu não tenho certeza do que são. E, ao que me parece, você também tem esses fragmentos de memória. Estou enganado?

                Desviei o olhar do seu, focando no canto do quarto, só para não ter de encarar aquelas íris azuis profundas. Ainda demorei um pouco, quando enfim pronunciei:

                – Não está.

                Ficamos longos e longos minutos em silêncio, refletindo. Eu evitava ao máximo encará-lo, com medo do que seu olhar me diria. Não gostava da forma como ele me encarava na maior parte do tempo.

                E a forma como ele me olhou quando questionou aquilo foi assustadora de certo modo.

                Só voltei a olhar sua face quando ele começou a rir, sem motivo aparente, desviando o rosto para o lado quando eu me virei.

                – Do que está rindo, palhaço?! – Questionei, mas ele só riu mais ainda. – Oe! Qual a graça?!

                – Sua expressão! – Disse, sorrindo quando voltou a me encarar. – É a primeira vez que eu te vejo com uma expressão assim.

                – Você... – Peguei-o pelas bochechas, puxando-as para os lados. – É bem abusado, não acha?! Eu não sou seu amiguinho pra você ficar falando asneiras pra mim. – Ele se debateu um pouco, fazendo-me soltá-lo.

                – Eu sei, eu sei. Mas... Não é como se eu te considerasse um inimigo. – Novamente aquele olhar complacente. Não entendia por que ele me olhava daquela forma. – Ao menos agora você não está aqui como meu inimigo. – Sorriu aberto, fazendo-me bufar. – Então... Não quer me contar? Das suas memórias, digo.

                – Não. – Disse, fitando-o com irritação. O pivete piscou duas vezes, arregalando os olhos, assustado pela minha resposta. – Você acha mesmo que eu tenho que me abrir com você? Eu quero respostas, só! Essas memórias não estavam ali até você vir e bagunçar minha mente. – Estreitei o olhar, fazendo a expressão do menor se fechar.

                E, novamente, ele estava me olhando como Sinbad. Crispei os lábios, incomodado.

                – Bom... – O pirralho abaixou o rosto, uma expressão triste tomando conta de sua feição. – Se você não quer compartilhar, não posso fazer nada. – Fechou os olhos e suspirou. – Sabe... Depois que eu me separei do Ugo-kun, eu... Comecei a pescar alguns fragmentos... Com... Alguém...

                Ele parou, fitando os próprios pés, batendo-os um contra o outro. Apoiei o queixo na mão, olhando injuriado para ele. Depois de alguns segundos, retomou:

              – Eu não consigo ver o rosto dele direito, mas eu sei que ele era bem pequeno. E... Eu parecia mais velho também... – Ele começou a sorrir bobamente. – Ele era extremamente fofo, sabe? A sua forma de agir... Eu gostava de dar atenção para essa criança.

                Ele continuou a falar. Em vários momentos ele sorria, como se cada pequena lembrança fosse algo valioso e que lhe trouxesse extrema felicidade. Por inúmeras vezes também ele desviava do assunto, falando dos dois amigos, falando de outras pessoas que conheceu, falando do Djinn...

                Minha vista estreitava mais e mais conforme ele ia pronunciando as palavras. Apertei os punhos com força, as unhas ficando na pele.

Por que me incomodava tanto?

Por que só ele parecia merecer a felicidade?

Eu não tinha nada disso.

Eu queria ter também.

Eu queria ter o que ele tinha.

                O que me faltava para ter esse entusiasmo dele? O que eu precisava fazer para conseguir fazer o que ele faz?

                Sorrir, falar dos outros como se fossem preciosidades... O que faltava em mim para sentir isso? Eu era capaz de sentir isso...?

                Fechei os olhos, sendo embalado pela voz dele. Aos poucos, os fragmentos de memória apareciam à medida que eu os buscava dentro da minha mente.

                Por mais que eu me esforçasse, eu não conseguia identificar o rosto daquela pessoa. Mas era bem vívido o tom da sua voz, o toque de suas mãos em meu rosto, nos meus cabelos; a forma como ele ria de quase tudo o que eu contava.

                Aos poucos eu senti meus lábios se curvarem no que eu suspeitava ser um sorriso. Era... Aconchegante e agradável me lembrar daquelas coisas. Mesmo que eu não conhecesse a pessoa.

                Era algo meu, unicamente meu, sem a intromissão de ninguém...

Eu queria que fosse sem a intromissão de ninguém.

                – E, sabe, eu consigo me lembrar de como ele, às vezes, era mimado! Eu consigo lembrar quase nitidamente a forma como eu o consolei uma vez, quando ele chegou chorando para mim... E pensar que, antes, ele se mostrava todo altivo e independente. Era engraçado! – O menor dizia, fazendo com que eu abrisse os olhos, arregalando-os.

                A felicidade estampada no rosto dele parecia sugar a minha aos pouquinhos.

                Meu peito, bem devagar, começou a apertar, um nó subindo até a minha garganta.

                – O que... Você disse? – Questionei, sentindo minhas veias nos braços saltarem.

                – Huh? Oh! Eu disse que... – Ele continuava sorrindo bobamente, o que me deixava ainda mais irritado. – Teve uma vez que aquela criança veio chorando até mim. Ela sempre se mostrou muito corajosa, se dizia capaz de aguentar tudo, mas... Quando ela chegou chorando... Eu achei tão fofo. – Riu, o olhar terno, carinhoso. Sentia minha garganta secar a cada palavra que ele pronunciava. – Eu me lembro de tê-lo consolado, mas ele ficou ainda mais irritado e chorou mais. Só se acalmou quando eu afaguei seus cabelos e o encostei contra meu peito...

                – OE! – Esbravejei, estreitando perigosamente os olhos, sentindo-os começarem a arder. O pequeno me fitou, assustado pela minha alteração no tom de voz. – Como... Como você... – Cerrei tão forte os pulsos que já sentia as palmas das mãos serem cortadas pelas minhas unhas. – Como você...

                O Magi mais novo arregalou os olhos, parecendo perceber o quanto eu havia ficado irritado. Minutos se transcorreram conforme nós nos encarávamos. E a cada momento eu ficava mais e mais irritado.

                Não dava para entender. Por que ele sabia daquilo? Como ele sabia? Por quê...

Por que tinha de ser logo ele?!

                – Ah! – Aladdin exclamou de repente, meus músculos se tencionando. – Será que... É a mesma memória que você tem...? Isso quer dizer que aquela criança era...

                – CALA A BOCA! – Berrei, fazendo-o se assustar. – Não diga mais nada.

                – Mas, Judal, isso significa que...!

                – EU MANDEI VOCÊ CALAR A BOCA, SEU PIVETE MALDITO! – Eu mal tinha acabado de falar, já havia avançado contra ele, pressionando-o contra o colchão, fazendo-o tossir por conta do forte impacto nas costas. – Você não sabe de nada! Você não tem como saber de nada! ME OUVIU? VOCÊ NÃO SABE DE NADA!

                – Mas... Se as memórias são as mesmas... – Bati fortemente com os braços ao lado de sua cabeça. Ele me fitou extremamente assustado.

                – Não... – Sussurrei. Eu encarava seus olhos, mas eu não conseguia vê-lo. Algo em mim estava falando mais alto.

                Estava embaçando minha visão, fazendo minhas veias se tencionarem, o corpo ser tomado por uma sensação de raiva, um aperto inexplicável no peito.

Por que logo ele?

Ele que tem toda a felicidade do mundo.

Por que ele tem que compartilhar isso comigo?

Será que eu não posso ter nada para mim?

Ele me toma tudo.

Ele tem tudo o que eu não tenho.

Ele é tudo o que eu não sou.

Por que isso?

Por quê?

Por quê?

Por quê?!

                – POR QUÊ?! – Berrei, batendo novamente os braços ao lado de sua cabeça. Ele fechara os olhos, acuado. – POR QUÊ? POR QUE TEM QUE SER VOCÊ? POR QUE TINHA DE FAZER ISSO COMIGO? – Questionei, batendo mais e mais vezes no colchão, chacoalhando a cabeça de um lado para o outro, descrente.

                Não conseguia aceitar. Tantas pessoas no mundo, tantas coisas, mas por que ele? O que ele tinha de tão especial que eu não tinha?

                – POR QUE TEM QUE SER VOCÊ? – Rosnei. – O QUE VOCÊ TEM DE TÃO ESPECIAL? O QUE FAZEM PREFERIR VOCÊ A MIM? ME RESPONDA! O QUÊ?!

                Minha respiração saía descompassada, podia ver fios saindo da minha trança, a ponta dela desfeita, soltando o resto do cabelo também. Olhei para o rosto dele, os cabelos espalhados pela cama, uma vez que a sua trança também se desfizera. Ainda o encarei por mais alguns segundos antes de sentir a vista embaçar totalmente.

                O menor piscou quando a primeira lágrima caiu próxima de seus olhos, mas logo os abriu, me encarando-me assustado.

                – Você... Está chorando?

                Apertei os lençóis, mordendo os lábios.

Eu o desprezava.

Ele e sua maldita existência iluminada.

Como ele conseguia tudo isso?

Por que eu não conseguia nada disso?

                – Que... Ódio. – Sussurrei, fechando os olhos, sentindo meu corpo todo estremecer por conta daquele sentimento.

                Tudo era tão injusto. Por que somente ele podia receber olhares carinhosos? Por que todos me encaravam com desgosto?

                Eu não entendia.

                Eu achava injustiça.

                Assustei-me quando senti os dedos menores em minha face. Quando o fitei, ele estava com o rosto bem próximo ao meu. Tão próximo que eu sentia nossas respirações se misturarem.

                As íris azuis estavam tão perto que eu sentia meu ar ser sugado por elas, junto com todos os sentimentos que estavam conflitando dentro de mim.

                – Né... – Ele começou, não desviando o olhar do meu, lambendo discretamente os lábios. – Judal... Você... – Pude sentir seus lábios roçando nos meus de leve, suas íris me convidando para mergulhar dentro delas.

                E antes que eu pudesse retrucar ou ele continuar a falar, nossos lábios se encontraram.

                Congelei por um momento, sem saber o que fazer. Aquela era a primeira vez que eu tinha um contato íntimo com uma pessoa.

                Ter os lábios menores dele sobre os meus era tão... Reconfortante.

                Eles eram macios, quentes, meio úmidos...

                Foram se mexendo devagar, como se experimentassem minha boca, testassem o território. Imitei-o, também testando, experimentando. Meus olhos foram se fechando a medida que o beijo foi se prolongando e, quando eu menos esperei, abri os lábios, deixando que ele entrasse com a língua.

                Eu a senti se enroscar com a minha, explorando minha boca, esfregando-se, dançando. Passei os braços pelas costas do menor, inclinando meu corpo para trás, sentando-me de pernas cruzadas sobre a cama. Com um pouco de dificuldade, consegui fazê-lo sentar-se sobre elas, minhas mãos correndo até seus cabelos, terminando de desfazer a trança.

                Enrosquei os dedos ali, sentindo a textura de seu cabelo, adorando a forma como os fios lisos e macios se perdiam por entre os meus dígitos. Senti que suas mãos pequenas vieram e soltaram o resto da minha trança também, seus dedos massageando minha nuca, fazendo-me soltar um gemido baixinho por entre os lábios.

                Os lábios fizeram um barulho molhado quando se separaram. Seus olhos buscaram os meus e, naquele momento, a única coisa que passou pela minha mente foi continuar com tudo aquilo.

                Aparentemente, isso também passou pela mente dele, porque não demos nenhum segundo a mais para voltar a nos beijarmos.

                Seus lábios chuparam os meus e eu o imitei, as mãos entrando pelo seu pijama, enquanto as suas corriam por minhas costas, vindo para o meu peito.

                Separamos as bocas quando eu encostei a testa na sua, respirando em jorros, sentindo o rosto quente.

                – Você... Tem mesmo só dez anos? – Questionei, ainda sem fôlego.

                – Hehehe. – Ele sorriu daquela maneira idiota dele e eu fiz um bico, desgostoso.

                Mas por alguma razão, naquele momento, eu não sentia nada. Ele trouxe a mão até meu rosto e passou os dedos pela minha bochecha, fazendo o caminho que as lágrimas marcaram.

                Fechei os olhos e aproveitei a carícia. Aladdin usou do momento e beijou meus lábios, depois foi subindo-os para a minha bochecha e, por fim, subiu para a minha testa, seus dedos voltando até a minha nuca, acariciando-a em pequenos movimentos circulares.

                Tudo aquilo era tão bom que, ao meu ver, não poderia ser real.

                E, quando esse pensamento cruzou minha mente, a realidade veio bater à porta.

                – Oe! Onde está o Aladdin? – Ouvi a voz daquele lourinho nojento, lá do outro quarto. Também ouvi passos nos corredores, uma porta sendo aberta num estrondo.

                – Morgiana-chan! Alibaba-kun! Onde está o Aladdin? – Era a voz do sardento, o que me fez morder os lábios, irritado.

                – Ele estava aqui até agora há pouco! Não sei o que aconteceu! – Era a ruiva agora, o que me fez apertar os dedos nas costas do Magi nanico.

Era sempre assim.

Ele parecia ter o direito de ter todos ao redor preocupados com ele.

E, a mim, não restava nada.

Como eu odiava isso.

Como eu...

Como eu...

O invejava.

                – Tsc. – Crispei os lábios, separando-me dele. Aladdin não protestou.

                – Parece que... Nos acharam. – Pulei da cama, caminhando e pulando até o parapeito da janela, ignorando as palavras dele. – Judal!

                Parei, a mão apoiada na parede, olhando para o nada. Dei meia volta e, com um gesto, o tapete mágico se abriu, passando por cima  de mim e planando à altura de meus pés, um passo à frente da janela.

                Fiquei encarando Aladdin sentado na cama, olhando-me entristecido. Observei bem sua figura, da cabeça aos pés.

Não adiantava.

Eu... Não conseguia me livrar daquilo.

Eu também queria que alguém me enxergasse.

Queria que alguém me desse atenção.

Queria ter o direito à felicidade.

Por que somente ele?

Por quê?

                – Eu invejo você. – Disse, a voz pingando um rancor não compreendido. – Invejo você por tudo o que você tem, por tudo o que você é.

                – Tudo bem. – Ele disse, a expressão suavizando. E, de repente, um sorriso dominou seu rosto, fazendo-o ficar iluminado. – Se a sua inveja te fizer ficar perto o suficiente para eu te ajudar, então eu a aceito de bom grado!

                Arregalei os olhos, incrédulo com as palavras dele.

                Como ele... Podia dizer algo assim?

                O que o fazia querer aquilo?

                Bufei, pulando para o tapete. Virei-me novamente para a sua figura, apertando as sobrancelhas.

                – Muito bem então. – Foi tudo o que eu consegui dizer e, com uma ordem, coloquei o tapete para voar.

                Ainda pude ouvi-lo dizer bem alto da janela:

                – Eu só quero que você deixe eu me aproximar de você, Judal! É tudo o que eu preciso para te tirar dessa gaiola em que você vive!

                Virei o pescoço para vê-lo de pé no parapeito da janela. Seus olhos azuis me encaravam com desdém, mas não era a mesma que Sinbad me lançava.

                Ele não estava me desafiando. Ele estava decidido a cumprir o que havia acabado de dizer.

                Virei-me do lado oposto, deitando sobre o tapete. Não dei segundos para deitar-me de frente, escondendo o rosto entre os braços.

Ele era tão arrogante.

Profanando palavras bonitas.

Fazendo-me criar esperanças.

Bagunçando os meus pensamentos.

Se você realmente pode me tirar dessa escuridão,

Por que não faz isso logo?

Rápido!

Rápido!

Tire-me daqui rápido!

Antes que eu vá fundo demais

E não tenha como voltar.


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Notas finais do capítulo

Bom, para os curiosos, "Invidia" é "Inveja" em Latim. Ficou meio vago, porque a ideia principal também é muito vaga (se alguém souber me definir com palavras concretas o que é inveja... Q). Espero que tenham gostado! Segunda fanfic sobre Magi que eu faço. Adoraria ouvir opiniões!