We Found Love In A Hopeless Place escrita por Mari Kentwell Ludwig


Capítulo 33
Capítulo 33


Notas iniciais do capítulo

Coloquei mais um capítulo de brinde *-*



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Assim que somos liberados, Clove não hesita em agarrar o meu braço e me puxar até que cheguemos a nosso compartimento.

-Não vejo a hora de sair logo daqui. - Ela diz entre os dentes.

Tinha até me esquecido um pouco disso, para ser honesto. Mas então a ansiedade reaparece com força total.

-Ah, também não vejo a hora de comer ganso selvagem. - Digo relembrando do prato que meu pai fazia de vez em quando, nas vezes em que os gansos migravam.

-Acho que qualquer coisa que não seja nabo, pra mim estará perfeito.

Um homem alto aparece, trajando o uniforme militar e nos instrui a segui-lo. Entramos em um elevador e depois do homem apertar alguns botões, começamos a nos mover. De inicio apenas para cima, mas depois de uma ligeira parada e alguns cliques, continuamos a viagem seguindo na horizontal, o que é estranho. E ainda me dá uma nova perspectiva de o quão grande é esse lugar.

Quando as portas se abrem nos deparamos com uma frota gigante de aerodeslizadores.

-Ual. - Deixo escapar diante da visão de todas essas aeronaves magníficas.

-Por aqui. - Indica o nosso acompanhante. Ele nos direciona até um dos menores aerodeslizadores, onde um casal de soldados nos aguarda.

O homem logo vai embora e eu subo as escadas até me encontrar a bordo. Eu e Clove nos sentamos lado a lado nos assentos de frente aos soldados. Apertamos os cintos e em uma questão de minutos, já nos preparamos para decolar.

-Eu sou Prya - Diz a mulher com cabelos pretos, fazendo com que eu desvie o meu olhar da janela.

-E eu sou Otto. - Diz o homem logo em seguida, estendendo a mão para um cumprimento.

-Prazer em conhecer. - Respondo apertando a mão dele de forma amigável.

-Quem são vocês? - Pergunta Clove com um mínimo sorriso.

-Somos seus guarda-costas.  – Esclarece Prya. Me lembro vagamente de Coin ter mencionado a presença de alguns seguranças conosco na viagem. Mas não me incomodo muito com o fato, já que o que realmente importa é o fato de podermos voltar pra casa e estar bem longe do 13.

Clove me olha com um olhar de descontentamento e eu acabo soltando um risinho contido.

-Vai ficar tudo bem. - Cochicho pra ela enquanto Otto e Prya conversam entre si.

-Eu sei. - Responde Clove apoiando a cabeça em meu ombro e logo adormecendo.

Depois de termos passado por túneis ainda no subterrâneo e sermos levantados por um dispositivo parecido com um elevador, através dos níveis, finalmente encontramos a vastidão alaranjada do céu da tarde, com um lindo sol poente.

É perfeito. Me arrisco a cutucar Clove para que ela veja também. Ela abre os olhos ainda sonolentos, mas não demora para que comece a sorrir.

-Acho que essa é uma das coisas que eu mais amo na vida. - Ela comenta apoiada em mim, de modo que passo meu braço em volta dela e a envolvo em um abraço.

-O que? - Pergunto, maravilhado com a paisagem.

-O sol se pondo. É lindo. E saber que ele vai voltar no dia seguinte me dá uma sensação de esperança. É nessas horas que eu consigo esquecer os problemas e da tristeza. - Ela diz se aconchegando.

-Quando você vê o sol? - Pergunto novamente, de forma vaga, saboreando cada segundo desse momento, dessa felicidade que irradia de nós. Uma felicidade, uma vivacidade que não sentia há muito tempo.

Clove solta um riso debochado, mas logo responde:

-Quando eu vejo algo tão lindo ou quando estou assim, com você.

Um sorriso toma conta do meu rosto. Mas um sorriso de felicidade verdadeira. Quase posso sentir a brisa batendo no meu rosto, a sombra de uma velha árvore e só eu e ela. Nós dois, trilhando um futuro em nossas mentes, observando o sol também se pôr com a grama verde à nossa volta. Também posso sentir a nossa felicidade e despreocupação do que acontecerá no dia de amanhã. É tão maravilhoso que começo a imaginar que esse é o tipo de coisa que jamais vai acontecer. Pelo menos não consigo saborear dessa realidade nas atuais circunstâncias de nossas vidas.

Mas eu não quero me importar com os problemas, com a tristeza. Quero apreciar esse momento, independente de qualquer outra coisa. E é sob a tênue claridade da tarde que posso dizer que vivencio o melhor acontecimento da minha vida, enquanto os parcos raios de sol se esvaem, enquanto o céu escurece e eu adormeço com ela.

Quando Otto cutuca o meu braço, as estrelas já pontilham o céu. Ele informa que já estamos sobrevoando os arredores do Distrito 2 e que pousaremos em breve. Me espreguiço e acabo despertando Clove involuntariamente.

-Já chegamos? - Ela pergunta observando pela janela.

-Quase. - Respondo tentando identificar as montanhas enquanto sobrevoamos. - Onde nós vamos ficar? - Me arrisco a perguntar para Prya, que nos observa momentaneamente.

-Ficaremos em uma aldeia tomada pelos rebeldes. Não é na cidade principal, mas é perto. - Ela responde. - Chegamos.

Aquela ansiedade insuportável toma conta de todo o meu ser quando eu sinto o aerodeslizador tocando o chão. Otto abre a porta e meus dedos percorrem desesperados pelo cinto até que eu o solte e pule para fora do aerodeslizador, pisando no chão duro, na grama fresca do meu distrito. Encho os pulmões do ar fresco enquanto observo algumas casas há alguns metros de distâncias, com suas chaminés expelindo fumaça e a luminosidade aconchegante escapando pelas janelas. Clove logo salta para o meu lado, suspirando e sorrindo.

Alguém fecha a porta do aerodeslizador e o piloto desce, o que indica que a aeronave vai permanecer aqui. Deve ser uma medida de segurança, caso eu e Clove precisemos de um escape rápido.

Três dias parece muito pouco para poder aproveitar tudo isso. Poder provar de novo da liberdade, por mais que seja ilusão. Continuo a caminhada ao lado de Clove, largando Otto, Prya e o piloto para trás, com nossos passos ansiosos. Quando chegamos mais perto eu identifico as quatorze casas que circundam o local.

A porta de uma casa se abre e dela sai Lyme. Reconheço-a devido a sua fama com os Jogos, pelo fato de ela ser uma vitoriosa. E também me lembro de tê-la visto em um dos hologramas informativos da mesa tecnológica do Comando.

-Sejam bem-vindos. - Ela recepciona seguindo na nossa direção, com os braços balançando de forma despreocupada ao lado do corpo bem moldado.

-Obrigada. - Diz Clove dando um abraço nela como cumprimento e Lyme retribui.

-Espero que estejam com fome. Tem um banquete esperando por vocês. - Ela informa apontando para a casa da qual ela saiu.

-Oh, estamos sim! - Respondo já podendo sentir o aroma da comida. Eu e ela também trocamos um abraço e ela logo volta para a casa, acenando para que sigamos ela.

Quando entramos, olho logo de cara para a mesa farta que nos aguarda. Não é como um daqueles banquetes da Capital, dos quais saboreamos antes da arena. E sim um verdadeiro banquete das montanhas do 2. O que mais me chama a atenção é um enorme ganso silvestre assado no meio da mesa, esperando para ser devorado.

-Fiquem à vontade. - Anuncia Lyme, provavelmente percebendo nossa salivação diante do que chamo de comida de verdade. Quando se passa tempo demais comendo aquela comida do 13, isso é o que acontece com você.

Lyme se senta primeiro, e eu e Clove logo em seguida. Nossos guarda-costas e o piloto logo surgem pela porta. Eles têm aquele aspecto de eternos residentes do Distrito 13, mas não se preocupam em esconder sua preferência por qualquer comida que tenha mais gosto do que a de seus distritos natal.

Depois de me estufar de tanto comer ganso silvestre acompanhado de cozido de carne de coelho, Lyme caminha até a cozinha e volta trazendo um bule de chá consigo. Ela oferece, mas eu não gosto de chá.

-Fizeram boa viagem? - Ela pergunta botando pra dentro a bebida fumegante.

-Fizemos. - Responde Clove sem mais nenhuma adição.

-Espero que vocês se sintam melhores aqui, bem, mesmo depois do que aconteceu.

-Nós ficaremos bem, estamos felizes de estarmos de volta, mesmo depois do que aconteceu. - Respondo me apoiando na cadeira.

De repente um homem aparece na janela com respiração ofegante.

-Ligue a TV, tem transmissão oficial da Capital! - Ele informa e logo vai embora correndo.

Lyme franze as sobrancelhas com um olhar tenso em seus olhos verdes e se levanta para ligar uma pequena TV encostada na parede da modesta sala de jantar.

E lá está, através da estática da TV, a mansão imponente de Snow. Algumas luzes iluminam as janelas e um palco foi montado à frente. As luzes da rua iluminam as quatro figuras plantadas em cima do palco, todas com uma corda amarrada ao pescoço. Mais enforcamentos.

Começo a sentir o meu coração palpitar os meus olhos ficarem embaçados com as lágrimas. Essas cordas, essas malditas cordas que levaram embora aqueles que eu amava. Mas logo eu esfrego as mãos nos olhos, freando qualquer indício de dor e sofrimento.

E então ele aparece na sacada da mansão, com seu rosto esticado e lábios aumentados de forma ridícula.

-Boa noite cidadãos de Panem! - Diz Snow acenando para a multidão que agora consigo ver. Um amontoado de pessoas se espremendo para ver o sofrimento de outras. O mar colorido de aberrações vibra com o surgimento do presidente. O meu ódio e desprezo por aquelas pessoas só aumenta, de modo que me levanto e me encaminho para a porta, causando um estrondo na sala antes silenciosa. Mas eu paro subitamente quando Snow manda que revelem os condenados. Me viro a tempo de ver o close das câmeras nos rostos do que fora a minha equipe de preparação.

Os corpos horrendos, magros, maltratados e escondidos em trapos mal podem ser chamados de seres humanos. Nunca tive nenhum afeto especial em relação a eles, mas sinto repulsa em pensar no que fizeram com eles e no que estão fazendo agora. Snow começa a ler um discurso, acusando eles de traição entre outros crimes que eu não consigo crer que eles possam ter cometido.

Então os alçapões são abertos e flagro uma lágrima cortando o rosto de Zoe enquanto ela é enforcada. Mas a pior parte é que eles não morrem de primeira. Kennye gasta seus últimos minutos de vida se debatendo inutilmente enquanto seu corpo fica içado. Ele tenta infrutiferamente romper a corda com as mãos, mas depois de grunhidos estrangulados a tortura acaba e ele finalmente se rende, com os lábios roxos. Um homem sobe ao palco e cutuca eles para ter certeza de que estão mortos. Depois que seus corpos são retirados, mais quatro condenados sobem e as cordas são novamente presas em seus pescoços. Snow lê a condenação dos quatro que também foram julgados sob crimes parecidos com os da minha equipe. Quando o close das câmeras é dado em seus rostos Clove solta um suspiro e estreita os olhos para a TV. Agora os condenados são a equipe de preparação de Clove. Reconheço Leo no momento em que ele é enforcado.

-Vai ter uma assembléia hoje às dez. Se quiserem, podem dormir um pouco e eu digo pra Coin que vocês se saíram bem. - Diz Lyme verificando um relógio.

-Eu vou dormir um pouco. - Clove se levanta e segue com Lyme pelo corredor, indo para o quarto, provavelmente.

-Se quiserem dormir, tem dois quartos no final do corredor. - Avisa Lyme quando retorna sem Clove. Mas não estou exatamente com sono e quero adiar ao máximo a hora de dormir, para ver se consigo me livrar dos pesadelos. - Você vem? - Ela me pergunta.

Também não estou com humor para encorajar as pessoas a aderirem a nossa causa. Acho que eu mesmo estou precisando de encorajamento. De modo que apenas balanço a cabeça em negativa e ela vai embora em seguida.

-Estou exausto, vou dormir um pouco. - Diz o piloto seguindo pelo corredor.

-Eu também. - Diz Otto e também vai embora.

Penso em ligar a TV para não ficar muito sozinho depois que Prya também se rende ao cansaço e resolve se despedir e ir tirar uma soneca. Mas tenho a impressão de que tudo o que irei encontrar vão ser mais enforcamentos ou coisas parecidas.

Consigo ouvir a agitação ao longe, os gritos de guerra sendo ditos pela multidão que deve estar lá. As vozes alteradas, cheias de ódio e sede de vingança, como eu. Eu poderia ter ido com Lyme, ter descontado minha raiva gritando por liberdade. Mas tenho quase certeza de que isso só serviria para me deixar com a voz rouca depois, pois não vai ser gritando que eu vou conseguir derrubar a Capital.

Depois de muito tempo ouvindo a assembléia, sentado na cadeira, minhas pernas me forçam a sair, pois não aguentava mais ficar lá parado. Há uma trilha descendo em direção a cidade principal e consigo ver a inquietação proveniente da assembléia. Mas eu não quero ir pra lá.

Pego o rumo das sombras, caminhando entre as árvores com apenas a escuridão como companheira. O vento sopra fazendo um som sinistro enquanto eu caminho. Aqui bem que poderia ser a arena, com sua atmosfera medonha, com o perigo a espreita. Mas eu me forço a lembrar que eu não estou mais lá, e que consegui voltar para o 2 com vida mesmo depois de ter me oferecido na Colheita. O que teria me acontecido se não fosse o meu orgulho e vontade de me oferecer? Seria eu hoje um rebelde tentando lutar pela liberdade ou só mais um esperando toda a coisa se resolver? Só de tentar lembrar os acontecimentos que me trouxeram até aqui, nesse exato momento, eu sinto minha cabeça latejar. Mas eu não posso me render, não agora e não aqui. Continuo caminhando, tropeçando em galhos vez ou outra. Alguns barulhos da noite me deixam em alerta, mas nada realmente perigoso.

Quando dou por mim de novo, já consigo ver as luzes da cidade principal, mas tenho certeza de que não deve ter ninguém na rua há essa hora o que me fornece a oportunidade perfeita para vasculhar onde eu quiser. Vou deixando a floresta para trás e começo a vagar pelas calçadas vazias. Já consigo vê-la da esquina. Continuo seguindo em frente, até estar à frente da porta pela qual já entrei e sai tantas vezes.

Assim que eu girar a maçaneta, ele vai estar lá. Sentado no sofá vendo TV, me esperando chegar do treinamento. Eu vou lhe dar um abraço, o mais forte que eu puder. E então nós vamos jantar enquanto ele pergunta sobre o meu dia. Vou subir, tomar um banho e dormir, mas amanhã quando eu acordar ele ainda vai estar aqui, como sempre. Eu vou me encontrar com Joe no caminho da escola pela manhã e depois vamos para o treino durante e tarde. Lá no treino, Brutus vai estar me esperando com mais uma lição de esgrima. E vai ser assim. Bom, talvez fosse.

Mas é óbvio que quando eu giro a maçaneta mau pai não está lá. Ninguém estará.

Entro em casa, de volta a escuridão. Caminho pela sala até chega à velha cozinha, onde o cheiro de pão mofado impregna o ar. Eu abro a janela na esperança de que o ar se renove e logo deixo o lugar. Subo as escadas degrau por degrau, como fazia quando era criança. Algumas manchas escuras mancham o chão, mas eu continuo subindo até estar no segundo andar, de frente para o banheiro no qual eu me arrumei para a Colheita, com aquele sorriso de vencedor no rosto e olhar invicto. Me observo no espelho de volta mas o que encontro não se parece nem um pouco com aquele garoto de meses atrás. As sombras da noite marcam meu rosto e examino a cicatriz quase invisível que o bestante da Capital me causou.

Saio do banheiro e continuo seguindo com passos curtos e silenciosos como numa caça mortal. Quando passo pela porta do quarto do meu pai, paro por um instante para ver algo que eu preferia não ter visto. Agora eu sei o que eram as manchas na escada.

O lençol da cama desarrumada está vermelho, com os respingos de sangue pelo chão do quarto. Sigo os pingos pelo chão até que eles começam a descer pela escada. Uma arma teria feito isso, claro que a ordem não era matá-lo, afinal ele ainda poderia ser útil. Mas tenho certeza que eles devem ter atirado em meu pai antes de levá-lo.

O estrondo da porta batendo com força atrás de mim fazem com que eu volte à realidade, assim que eu invado o meu antigo quarto. Ele está exatamente do jeito que deixei, afinal eu já sabia que meu pai não seria capaz de interferir nesse cenário depois que eu o deixasse. E também sei que permaneceria assim se eu nunca tivesse retornado. Me jogo na cama e o choro retorna, retorna e perdura. Quase posso ouvir o barulho da arma, os gritos estrangulados deles enquanto morriam enforcados e as palmas dos espectadores que estavam em frente à mansão de Snow.

Acho que dormi. Quando observo pela janela, não vejo nenhum indício de manhã se aproximando. Então eu me lembro de como eu deixei o acampamento sem dar nenhuma satisfação e como todos ficariam loucos se dessem conta da minha falta. Me levanto e vasculho o meu armário velho. Encontro um roupa muito melhor do que o uniforme do 13 e não hesito em arrancá-lo aqui mesmo e logo repor com as minhas velhas roupas. Enrolo as roupas do 13 e jogo no fundo do guarda-roupa. Quando saio passo novamente pelo quarto do meu pai e algo faz com que eu pare novamente. Sob a luz fraca da rua, eu a vejo voando pelo chão de forma sutil. Me abaixo para pegá-la e me surpreendo. Meu pai e minha mãe, juntos e felizes e uma fotografia. Eu nunca soubera da existência dessa foto antes. Provavelmente meu pai deve ter mantido ela fora do meu alcance, enquanto eu tinha outras coisas com as quais me preocuparem. Aperto ela contra o peito, sabendo que eles estão aqui comigo agora. Minha mãe era linda, com longos cabelos negros e olhos azuis. Meu pai estava com um sorriso radiante que eu acho que nunca vira nele antes. Mas não há mais o que fazer aqui. Volto pelo mesmo caminho com os mesmos passos fraquejantes até estar de volta a porta de entrada. Me lembro de fechar a janela da cozinha, depois de jogar o pão fora. Mas depois que fecho a porta atrás de mim, sinto as lágrimas escaparem. Mas eu as ignoro e continuo pelo mesmo trajeto, seguindo pela floresta escura. Minhas lágrimas se tornas gélidas quando o vento da noite as alcança. Minhas pernas começam a doer e só então me dou conta de o quão longe é.

-Cato! - Ouço chamarem de algum lugar à frente, depois de ficar praticamente uma hora e meia caminhando. Também escuto os passos pesados correndo até mim, mas a única coisa que faço é parar e esperar.

Não demora até que Lyme apareça entre as árvores, ofegante, o que acaba me lembrando Marvel correndo até mim quando estávamos na arena e eu ouvi aquele canhão.

-Onde você estava? - Ela pergunta quase que desesperada.

-Fui dar uma volta. - Digo tentando justificar enquanto coloco a foto cuidadosamente no bolso de trás da calça.

-Que roupa é essa? - Ela logo pergunta estranhando o meu novo traje.

-Eu trouxe. - Respondo tentando esconder que estive em casa.

-Mas vocês não trouxeram bagagem. - Ela diz desconfiada. - Cato, onde você esteve?

-Eu fui até a minha casa e trouxe.

-Você o quê? - Ela diz prestes a explodir. - Cato você não faz ideia do risco que correu alguém pode ter visto você! Você ficou louco?

-Eu sei disso! Mas ninguém me viu, certo?!

-Eu espero. - Ela diz frustrada. - Se Coin soubesse disso te mandaria voltar agora mesmo. Mas você deu sorte de que foi Clove quem acordou e sentiu a sua falta.

-Ela contou pra Prya ou pro Otto?

-Não, para a sua sorte. Mas é melhor você voltar para lá rápido antes que alguém acabe percebendo.

-Você vai contar pra eles que...

-Não, mas se acontecer de novo pode ter certeza de que eu vou ser a primeira a ligar para Coin. -Ela diz me interrompendo e voltando para o acampamento enquanto eu sigo-a.

Quando chegamos Lyme me deseja boa noite e avisa que não me quer fora outra vez. Acho que ela está segurando a barra desse jeito porque ela precisa de nós ou porque sabe o quanto está sendo horrível.

Entro na casa que nos foi designada e Clove me recepciona com um soco leve no estômago.

-Você tem que parar de fazer isso, seu idiota. - Ela diz com as feições duras.

-Eu precisei sair daqui, precisei voltar pra casa de verdade. - Digo tirando a foto do bolso.

-Achei que você tinha fugido. - Ela diz tendo um ataque de soluços desesperados acompanhados pelas lágrimas.

-Eu nunca fugiria sem você, Clove. - Digo com a voz embargada percebendo que eu realmente nunca seria capaz de ir para qualquer lugar em que eu teria de viver sem ela.

Ela suspira de forma preocupada:

-Eu... eu tive um pesadelo no qual você tinha morrido e pode ter certeza de que foi a pior coisa que eu já vi na vida. Eu não quero que isso aconteça...

-Mas eu estou aqui. Estou aqui por você.

-O que vai acontecer se a gente perder a guerra? - Ela pergunta me olhando nos olhos.

-Aí sim a gente foge, pra bem longe e ninguém nunca mais vai nos encontrar. Eu prometo. - A promessa é a palavra de maior segurança que posso fornecer a ela agora.

Ela balança a cabeça em concordância e eu recoloco a foto no bolso, pois agora eu quero estar aqui quando ela for dormir e quando ela acordar. Me lembro de outra decisão que eu havia tomado, antes dos Jogos. Algo que envolvia fazer com que Clove ganhasse se o vitorioso não pudesse ser eu. Era uma promessa a mim mesmo, uma promessa de manter ela viva. Eu vou cumprir com a promessa.

Seguimos até o quarto onde Clove dormia. Ignoro Prya dormindo na cama ao lado e deito com Clove, sabendo que assim vai ser melhor para nós dois. Quando eu a envolvo com os braços e ela se aproxima mais.

-E se ganharmos a guerra? - Ela pergunta.

-Bom, então teremos tudo o que precisaremos para sermos as pessoas mais felizes do mundo. - Então é a minha vez de surpreendê-la com um beijo.

Depois de alguns beijos, o sono não demora para me atingir e quando o faz, eu finalmente tenho o que posso chamar de uma ótima noite de sono.

O dia começa cedo aqui na aldeia rebelde. Acordei quando o sol ainda se preparava para surgir. Eu, Clove, Prya, Otto e o piloto que descobri se chamar Enzer, nos encaminhamos para tomar café da manhã na casa principal da aldeia, onde tivemos a oportunidade de ver os demais rebeldes que residem aqui. Em sua maioria são mineiros, que arriscam a vida dentro das montanhas atrás de pedras preciosas e afins. O café da manhã me deixou animado, afinal eu adorei os sanduíches de pão e carne de ganso que sobrou de ontem.

Lyme nos deixou com o dia livre, para que pudéssemos esfriar a cabeça e saírem da rotina controladora do Distrito 13 contanto que não tivéssemos a audácia de tentar visitar a cidade principal outra vez. Observo um rapaz depenando um ganso, sentado há alguns metros. As penas dançam no ar e eu olho para o horizonte, o pico das montanhas sob o sol.

É reconfortante estar aqui, com a névoa da manhã ainda se dissipando. Clove foi tomar banho e eu estou aguardando ela sair para eu poder me encaminhar para o meu. Na noite passada os pesadelos não me assolaram. Depois de ter ido em casa escondido ontem e ter presenciado aquele ambiente de novo, eu esperava ser perturbado durante a noite pelos pesadelos envolvendo fotos felizes manchadas de sangue e cheiro de pão mofado. Mas nada ocorreu, de modo que me sinto mais leve e me lembrando daquele pôr do sol de ontem à tarde, uma pontinha de esperança surge.

Vejo Clove deixando a nossa casa depois do banho. Ela também largou o uniforme do 13 de lado e agora está usando uma blusa simples com calça dentro de uma bota.

-Isso sim é que é roupa. - Digo quando nos cruzamos, enquanto eu sigo para tomar banho.

-É isso aí. - Ela responde se virando.

Não há ninguém dentro de casa à uma hora dessas, Clove acabara de ir lá para fora e os provenientes do Distrito 13 devem estar tratando de assuntos na guerra e tomando conta de nós agora.

Me encaminho para o banheiro, no qual não há chuveiro, afinal estamos em uma das aldeias espalhadas nas montanhas do distrito, então seria preciso muitos canos de água para que tivéssemos a oportunidade de usufruir disso, mas muitos canos de água é algo do qual nós nunca dispomos nem antes e muito menos agora. Então me contento em usar alguns baldes cheios de água e uma caneca, o que soa engraçado.

Depois e ter gastado muito tempo e toda a água dos baldes eu finalmente termino e coloco uma roupa que estava dobrada e cima da que deveria ser a minha cama. Me visto e saio de novo sem pretensões de o que fazer pelo resto do dia até que Clove aparece com feições de insegurança:

-Podemos conversar? - Ela pergunta protegendo o rosto do sol com a mão.

-Sim. - Respondo sem compreender o porquê da pergunta.

Mas Clove não solta uma palavra sequer até que estejamos há certa distância da aldeia, penetrando na floresta agora iluminada pelos raios de sol, revelando sua grande beleza. Enquanto caminhamos em silêncio, e eu ouço com uma atenção especial o canto dos pássaros, me lembro de que possivelmente estaríamos encrencados se Lyme soubesse que estamos longe de seu olhar protetor.

-Não acha que estamos indo longe demais? - Pergunto parando por uma segundo.

-Lyme disse que podemos andar pelos arredores da floresta, se quisermos. - Responde Clove. - Plutharch ligou agora a pouco, do 13.

-Plutharch? O que ele queria? - Minha voz soa de forma alterada com a minha irritação em pensar que eles querem nos controlar mesmo que nem estejamos mais no 13.

-Ele nos convocou para uma viajem. - Diz Clove ignorando meu tom de voz. Mas de qualquer forma a minha irritação não está voltada para Clove, e sim para o 13 e seus governantes.

-Uma viajem? - Questiono tentando imaginar de que tipo de coisa que ela está falando.

-É, eles decidiram fazer pontos de propaganda com Katniss. Eles querem colocar Katniss numa situação real para que eles possam filmar o Tordo em ação e depois vão tentar fazer uma invasão durante a programação da Capital e transmitir como forma de incentivo para toda Panem. - Esclarece Clove. - E eles vão filmar isso no Distrito 8, onde a situação está bem crítica.

-E o que nós dois temos a ver com o Tordo?

-Nós temos que mostrar estar do lado deles, Cato. Ele disse que nos escalou para estarmos no grupo de seguranças que vão acompanhar Katniss, afinal a gente já consegue pelo menos atirar com aquelas lições do Quartel, certo?

-Na realidade, eu não estou do lado de ninguém Clove - Digo parando subitamente, pronto para cuspir algumas palavras que eu preciso colocar para fora. - Eu só quero sair vivo disso e quando acabar quero poder passar o resto da minha vida em paz. Só estou nisso por mim. - Digo, mas logo a adição surge na minha mente. - E por você.

-Eu também só quero que isso tudo acabe, mas nós temos que cooperar para eles colocarem a gente fora disso o mais rápido possível. Talvez assim que liberem a gente, se a guerra ainda estiver em curso, nós poderíamos fugir de verdade, como você falou.

E realmente poderíamos. Depois que nos tornarmos desnecessários, consequentemente estaremos nos tornando descartáveis. Descartáveis a ponto de eles nos largarem sem nenhuma proteção, diferente da que estamos recebendo agora, e nós acabarmos sendo pegos pela Capital. E isso é ser otimista, se os rebeldes ganharem. Pois se perdermos estaríamos completamente perdidos. Mas eu e Clove poderíamos muito bem sair na calada da noite e nunca mais voltar. Para onde iríamos? Eu não faço ideia, mas qualquer lugar onde não nos encontrassem e pudéssemos realmente viver, para mim estaria perfeito.

-Então nós vamos ter que ir para o 8? - Pergunto de forma conclusiva.

-Ele perguntou se queríamos ir, se concordávamos. Eu disse que sim. - Ela responde seguindo com a caminhada e me deixando ligeiramente para trás.

-Por que você aceitou? - Pergunto um tanto frustrado, porém retomando o ritmo e alcançando-a.

-Por que eu não quero que mais ninguém passe por isso! - Clove se vira e solta isso olhando de perto em meus olhos e eu vejo a fúria surgindo dentro dela. - Não quero ver nenhuma criança inocente tento que ver os amigos e irmãos morrerem na TV! Não quero que eles tenham a infância roubada. Se algum dia eu tiver um filho, eu não quero que ele passe por isso!

Durante esse tempo todo eu havia me dedicado a pensar e a me preocupar apenas comigo mesmo e Clove e os que eu amava, mas que se foram por causa de Snow. Enquanto isso Clove pensava em todos os próximos que nasceriam, em todos os que ainda teriam que pagar, que na realidade terão que pagar caso percamos. Aquele arrependimento bate novamente e eu tenho vontade de sumir, sumir de vez. Mas não fugir, e sim ir para um lugar onde não haja, mas nada nem ninguém. Me vejo em infinito obscuro, só eu e mais nada. Seria um bom lugar para ficar em paz até o final dos meus dias, penso.

Quando percebo estou sentado no chão, encolhido contra uma velha árvore.

-Você não queria ir? - Pergunta Clove se sentando ao meu lado.

Pondero um pouco até responder:

-Eu quero ir. - Respondo me levantando novamente e oferecendo minha mão para que Clove se levante. Ela aceita e voltamos a caminhar.

-O lado ruim disso é que teremos que voltar para o 13 amanhã cedo.

Nós caminhamos, andamos durante muito tempo. E quando resolvemos parar, nos sentamos debaixo de uma antiga árvore. Ao lado há alguns arbustos de amora, com as frutas escuras pendendo dos galhos. Nós recolhemos algumas e nos sentamos, por fim. À diante, a partir do morro em que estamos, há um vale que desce até as árvores. Atrás de nós está a floresta pela qual viemos e o horizonte à frente. O sol está alto e forte no céu, mas a árvore nos fornece uma boa sombra.

-Aqui seria um lugar perfeito. - Diz Clove.

-Para quê? - Pergunto.

-Para qualquer coisa. Talvez viver assim para sempre, nessa calma, embaixo dessa árvore, comendo amoras. - Ela responde rindo, a respeito das amoras.

-Seria realmente maravilhoso. - Digo enfiando algumas amoras na boca.

-Acho que ter acordado tão cedo e ter andado até aqui me deixou muito casada. Se importa se eu dormir um pouco? - Pergunta Clove, se deitando e ajeitando a cabeça na grama.

-Não me importo. Eu fico de vigília. - Respondo permitindo que minha mão se pouse na cabeça dela. Ficar de vigília soa como se estivéssemos na arena, protegendo um ao outro contra qualquer um que possa vir a aparecer. Mantendo aquela preocupação constante. Mas aqui eu não preciso disso, realmente, pois nós estamos protegidos, nós temos um ao outro e isso ninguém poderá nos tirar agora.

Um riso escapa de Clove diante da expressão.

-Confio em você para ficar de vigília. - Ela diz e logo adormece.

Gasto o tempo vago observando em volta e é claro, saboreando das amoras ao lado. Não demora muito até que eu me renda a deitar também e fechar os olhos um pouco. Pouco o bastante para adormecer também.

-Olha Cato! - Diz Clove cutucando o meu braço de forma insistente.

Me levanto sem saber quanto tempo dormi. E então meus olhos logo captam a imagem à minha frente. O pôr do sol de ontem, visto pelo aerodeslizador, se comparado a esse não era nada. Essa sim é a coisa mais linda que eu me lembro ter visto na vida. Admiramos o sol ir embora aos pouco e Clove se aconchega do mesmo jeito em mim, e eu a mantenho junto de mim da mesma forma protetora, com o intuito de fazer com que ela fique para sempre assim comigo. Me dou conta de que era esse o tipo de coisa que eu achava que nunca aconteceria, esse pensamento que eu havia alimentado no aerodeslizador ontem. Mas agora eu desacredito totalmente naquilo pois aquela felicidade, aquela despreocupação com outra coisa que não seja nós, está aqui e mais forte do que nunca.

-Sabe aquilo que você tinha dito sobre a sua esperança ser renovada com esses momentos? - Digo, relembrando.

-Sim, por quê? - Questiona Clove.

-Por que eu estou sentindo isso agora. - E realmente estou.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado e não deixem de comentar ;)