Screaming escrita por caiquedelbuono


Capítulo 16
Muralhas pessoais




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Logan nunca tinha comido um macarrão à bolonhesa tão delicioso quanto aquele que estava saboreando. Ele não percebera antes, mas os últimos acontecimentos sinistros tinham anulado totalmente a sua fome. Incrivelmente, naquela tarde de quarta-feira ele estava assustadoramente faminto. Talvez fosse simplesmente o seu organismo pedindo por comida. Nem mesmo a ameaça macabra que rondava os corredores de Shavely poderia impedir um organismo de funcionar.

Mel e Helena estavam sentadas na mesa com ele. A menina de pele escura estava compenetrada em seu prato: ela parecia ainda mais faminta que Logan, devorando o macarrão como se a sua vida dependesse disso. Já a menina de cabelos ruivos estava mais devagar, ela tinha acabado de sugar um fio de macarrão cheio de molho quando disse com a boca cheia:

— Logan, vá com calma. Você não pode querer contar duas histórias ao mesmo tempo. — ela deu um gole no suco de laranja — Engula esse macarrão e fale sobre o sangue.

Logan suspirou. Estava com a cabeça cheia e queria contar para as meninas, — que agora eram as únicas pessoas dentro daquele internato que poderia chamar de amigos, — tudo o que tinha acontecido no dia anterior. O sonho macabro que tivera com a guerra entre os zumbis e os estudantes, as duas poças de sangue e suas suposições de que tinham mais dois zumbis dentro do colégio e também que terminara o relacionamento com Sophia. Mas ele acabou se atropelando e tentou contar as três histórias ao mesmo tempo.

— Eu já disse. Eu encontrei duas poças de sangue bem ao pé da escada.

Helena e Mel se entreolharam.

— Encontrar poças de sangue nesse internato é tão clichê — resmungou Helena, revirando os olhos. Ela engoliu mais uns fios de macarrão e seu buço ficou completamente vermelho. Passou a língua por ele para limpar o excesso de molho.

— Na verdade, eu diria que isso está ficando fora de controle — comentou Mel, que praticamente já havia comido todo o seu macarrão. E não fazia nem cinco minutos que ela tinha se servido. — Sheeva, Pierre e agora mais duas poças de sangue. Mais dois zumbis.

Logan não pôde deixar de sentir o tom de amargura na voz da garota quando ela nomeou os zumbis. Ela realmente sentia muito ódio por essa raça amaldiçoada. Mas ele não podia culpá-la. Ela não era a única.

— O que você sugere que façamos?

Mel não respondeu de imediato. Ela olhou para os lados, talvez checando para ter a certeza de que ninguém estava ouvindo a conversa deles. Logan aproveitou para fazer o mesmo: a cantina estava bastante cheia e as pessoas conversavam como se estivessem a quilômetros de distância. Não viu nenhum rosto conhecido. Não viu Sophia. Nem Tommy e Kelsey. E muito menos Ian. Não pôde deixar de questionar onde eles poderiam estar.

— Precisamos agir com cautela. — ela respondeu, por fim — Sheeva não cometerá o mesmo erro que cometeu com Helena. E ela está enfraquecida. Perdeu uma das mãos. Suponho que ela não tentará atacar mais nenhum de vocês, pelo menos não por enquanto. Ela está mais preocupada em montar esse maldito exército.

— É isso que mais me preocupa. — confessou Helena — Aliás, como é que você consegue falar isso com essa calma? A idéia de ter mais de um zumbi em Shavely é mais do que perturbadora.

Logan acenou com a cabeça, concordando com a amiga. Mel encarou o olhar de Helena. Tinha certeza que estava tentando transparecer confiança. Logan tinha ciência disso porque sabia que podia confiar em Mel de olhos fechados

 — Pode ser perturbadora, mas é Sheeva quem deveria estar com medo! Ela se meteu com a caçadora de zumbis errada.

Logan não soube explicar o tamanho do orgulho que sentia por Mel. Ouvi-la falar assim realmente dava forças para continuar e ele sabia que ela iria protegê-los de todo o mal que estava por vir. Mel tinha sido uma das melhores coisas que tinha acontecido na vida dele, isso ele não podia negar.

— Bom, já que temos uma heroína de história em quadrinhos entre nós, devo dizer que me sinto bem mais confiante. — disse Helena, que tinha acabado de comer e estava reunindo os pratos dos amigos em uma pilha única — Até acho que sou capaz de dar uns sopapos em Sheeva! Mas Logan estava querendo nos contar outra coisa também...

Logan estava torcendo para que Helena não dissesse aquilo. Não sabia se queria continuar a contar para os amigos sobre o término do relacionamento com Sophia. Doía dentro dele se lembrar de como Sophia estava diferente, agressiva e intransponível. Era como se ela tivesse construído uma muralha em volta de seu coração, um muro de pedra tão grande que nenhum canhão ou tanque de guerra seria capaz de destruir. Ele suspirou.

— Você está desesperada para ouvir isso da minha boca, Helena, eu sei, então lá vai: Sophia e eu terminamos. Ela não parece a mesma Sophia de sempre.

Helena deu um sorrisinho amarelo, Logan não pôde deixar de notar. Havia bastante sarcasmo mascarado naqueles lábios.

— Ah, é claro que ela não parece. Ela começou a andar com Kelsey, você não sabia? Está trilhando o mesmo caminho de Tommy...

Ela se interrompeu e mordeu o próprio lábio inferior. Logan notou que Helena parecia menos derrotada nos últimos dias, mas falar em Tommy ainda era dolorido. Términos realmente doíam no fundo da alma. Agora Logan entendia a dor que Helena sentiu. Entendia porque ela se demonstrava tão frágil, como se pudesse quebrar ao mínimo toque.

— Mas por que vocês terminaram? — perguntou Mel, com um tom de voz bem inocente — Quero dizer, o que aconteceu?

 Logan sentiu o rosto arder em escarlate. Sentia vergonha pelo o que tinha acontecido na festa e mais vergonha ainda por aquela cena ainda continuar martelando em sua cabeça. Olhou para Helena e viu que ela o olhava com olhos interessados, olhos que já sabiam o que tinha acontecido, mas que queriam saber mais detalhes, principalmente dos sórdidos. Mel estava com um brilho estranho nos olhos e aquilo fez o estômago de Logan revirar. Ele suspirou e reuniu coragem:

— Vocês se lembram de Ian? Mel não deve conhecê-lo direito, talvez apenas de vista, mas você, Helena, sabe muito bem quem ele é. Lembra da pergunta indecente que fez a ele?

Naquele momento, Helena começou a gargalhar. Ela se divertia em deleite por se lembrar da brincadeira de mau gosto que fizera com o pobre garoto.

— É claro que eu me lembro! — ela exclamou, com a voz ainda embalada aos risos — Não tem como esquecer aquele episódio. Mas não estou entendendo o que ele tem a ver com o seu término com Sophia.

— Ele estava muito bêbado e me beijou à força. E Sophia viu tudo.

As duas meninas engasgaram com a própria saliva. Helena tossiu algumas vezes, enquanto Mel emitiu um ruído estranho pela garganta.

— Você é gay, Logan? — a ruiva parecia indignada.

Logan apenas revirou os olhos.

— Mas que coisa, Helena, você adora perguntar isso para as pessoas, não é mesmo? E não, eu não sou gay. Que parte do “ele me beijou à força” você não entendeu? E nem sei se aquilo pode ser considerado um beijo, eu nem coloquei a língua para fora.

Helena deu de ombros.

— Bom, acho que Sophia discorda de você.

Logan ia abrir a boca para responder quando ele olhou para o lado e rapidamente se calou. Viu que uma pessoa estava se aproximando da mesa em que estavam sentados. Ela parecia com pressa e olhava para os lados freneticamente, como se estivesse sendo seguida ou algo parecido.

Sophia parou ao lado da mesa e ela parecia cansada. Havia uma mancha roxa enorme sob os olhos, os cabelos louros não estavam perfeitamente alisados como sempre estavam e ela trajava uma roupa que não combinava com o modo Sophia de ser, tinha muito preto ali. A camiseta, a calça, os sapatos. Parecia que ela havia sido engolida pela noite mais escura que já existira.

— O estilo Kelsey está fazendo sucesso por aqui. — disse Helena, enquanto tentava tirar um pedaço de macarrão no dente com os dedos — Já é a quinta pessoa que eu vejo vestida totalmente de preto no dia de hoje.

Sophia apenas a ignorou, revirando os olhos. Ela nem sequer olhou para Logan, era como se ele estivesse invisível para ela.

— Preciso falar com você — ela disse, olhando para Mel.

A garota foi pega de surpresa, pois arregalou os olhos, incrédula.

— Comigo?

Sophia anuiu com a cabeça.

— Sim. E é um assunto particular. Você sabe. Sobre tudo o que vem acontecendo nesse internato.

Logan e Helena se entreolharam. A garota ruiva fez um gesto de desaprovação com a cabeça.

— Não quero ser rude e nem nada disso, — disse Mel — mas Logan e Helena são de total confiança. Se quiser falar comigo sobre o que vem acontecendo dentro desse internato, terá que falar na frente deles.

Sophia bufou. Ela parecia uma criança birrenta quando a mãe nega uma barra de chocolate ou diz que já está muito tarde para continuar assistindo televisão. Olhou para Logan com desprezo e para Helena com algo que Logan não conseguiu descrever. Parecia um ódio mascarado. Algo que ela não queria deixar que a ruiva percebesse.

— Você não entende. — outro bufo — Eu deveria ter esperado você se separar deles. Foi uma péssima idéia.

Sophia já estava virando o corpo para ir embora, quando Helena segurou em seu braço. Ela parou e olhou para trás, com raiva em seu olhar. Mel pareceu agradecer internamente e falou novamente:

— Sophia, agora não é hora para isso. Há uma ameaça pairando nesse colégio e ameaçando a todos nós. Se for algo sobre os antropomórficos, algo que pode nos ajudar, não seja tão egoísta a esse ponto. Você sabe que Logan e Helena estão correndo perigo de vida, tanto quanto eu, você, Tommy e todos os outros. Eles têm o direito de saber o que quer que você queira me dizer. Estamos todos juntos nessa.

Logan não conseguiu disfarçar o sorriso que escapuliu de seus lábios. Sophia pareceu perceber, pois ela amarrou ainda mais a cara. Helena já tinha soltado o braço da garota e estava com um olhar relaxado, como se a qualquer momento pudesse começar a lixar suas unhas. Sophia não soube como relutar e nem como responder à altura, então lançou os braços para o alto e se deu por convencida. Sentou na cadeira à frente de Helena e encarou Mel.

— Aconteceu ontem de madrugada. — ela começou a narrar — Eu estava com insônia, não conseguia pregar o olho. Abri a janela do meu quarto e comecei a olhar o horizonte. Estava muito silencioso e eu consegui ouvir barulhos de folhas secas sendo amassadas no pomar. Também vi uma agitação, sombras passando bem na frente dos meus olhos, galhos farfalhando. Tinha alguma coisa lá, tenho certeza disso.

Logan, Helena e Mel mantiveram-se em silêncio por algum tempo. Logan não pôde deixar de pensar que seria no mínimo estranho estudantes estarem andando pelo pomar às altas horas da madrugada. Ele olhou para Mel e conseguiu enxergar as engrenagens do seu cérebro trabalhando a pleno vapor. Entretanto, Helena não se deu por convencida:

— Acho que você enlouqueceu. O que foi? Kelsey te deu muita bebida e você ainda está sob o efeito do álcool? O que isso tem a ver com a tal ameaça que vem pairando sobre nossas cabeças?

Se fosse a velha Sophia que estivesse ali parada, Logan tinha certeza que ela não iria falar nada, já que sabia que não era páreo para Helena. Mas, agora, ela inflou o peito e disparou:

— Cale a boca. Pare de pôr Kelsey no meio de tudo. Ela não tem nada a ver com isso e você sabe muito bem. Apenas está com ciúme já que eu...

Basta! — interrompeu Mel e Logan nunca tinha a visto falando em um tom tão autoritário. Sophia imediatamente se calou e Helena a olhou com olhos assustados. — Seremos derrotados num piscar de olhos se continuarmos desse jeito. — ela suspirou — Sophia, eu acredito em você. Acredito que os zumbis possam estar infiltrados no pomar do colégio. Aquele ambiente é bastante grande e seria um esconderijo perfeito.

— O que você sugere que façamos? — perguntou Sophia, que agora parecia amedrontada, já que Mel tinha cortado seus quinze minutos de fama.

— Amanhã à noite. Nós quatro iremos até o pomar e iremos espionar. Ficaremos de olho, tentaremos ouvir qualquer conversa que pareça suspeita. E vocês têm que prometer que vão separar a vida pessoal e irão trabalhar juntos para que nossa missão surta efeito. Precisamos ter vantagem sobre eles. 

Logan, Helena e Sophia se entreolharam. Tudo estava tão estranho. Eles nem pareciam mais os amigos que eram. Não havia mais confiança e muito menos companheirismo. Sophia nem sequer o olhava e parecia odiar Helena. Parecia que eram inimigas mortais. Um arrepio lhe subiu à espinha quando pensou no que poderia acontecer com toda aquela instabilidade rondando os três adolescentes. Entretanto, ele estava disposto a tentar. Queria lutar por Shavely, queria erradicar aquela raça maldita que andava pelas sombras destruindo tudo ao redor.

— Eu prometo. — os três disseram em uníssono.

 

A hora do jantar já tinha acabado há algum tempo e Helena estava sozinha na sala de estar, sentada em um dos sofás macios. Tinha comido apenas para não morrer desnutrida porque ela não estava com um pingo de fome. Os acontecimentos do almoço tinham mexido com o seu interior. Não conseguia parar de pensar no olhar de Sophia, em como ela parecia um poço de rancor. Em como ela estava deixando se influenciar pela companhia de Kelsey. Ainda não tinha caído a ficha de que agora elas eram melhores amigas. Não podia deixar de sentir uma pontinha de ciúme, mas a raiva era maior. Seu sangue borbulhava só de pensar em quanta coisa ela havia perdido para aquela garota odiosa.

Ela respirou fundo. Tinha prometido a si mesma que não ia passar mais tempo algum chorando pelos cantos, se remoendo por causa de Tommy ou por causa de Sophia. Não havia nada que ela pudesse fazer, ambos estavam foram de qualquer alcance. A única coisa que podia fazer era se lamentar por terem sido tão influenciáveis e por estarem jogando a vida no lixo. Helena tinha que pôr a cabeça no lugar, ainda mais agora, em que estavam prestes a fazer algo importante, agora que agiriam, dariam o primeiro passo na batalha sobrenatural que estava se aproximando.

O estômago se embrulhou ao pensar nisso e ela sentiu um frio na barriga. Estava com medo, não podia negar. As imagens de Sheeva tentando matá-la ainda estavam fresquíssimas em sua mente, ela jamais conseguiria se esquecer daqueles olhos negros como túneis infinitos a fitando, sedenta para devorar o seu coração. A zumbi queria que ela acreditasse que tudo aquilo foi uma alucinação, mas ela tinha plena consciência do que tinha acontecido. E isso era uma arma e tanto.

Uma agitação chamou sua atenção. Helena olhou para os lados e percebeu que tinha outra pessoa ali. Uma brisa gélida percorreu o seu corpo e eriçou os pelos do seu braço quando notou o vulto amarelado bem próximo. Os olhos verdes pareciam estar tristes e eles piscavam repetidas vezes, como se algo estivesse preso em meio àqueles cílios que incrivelmente eram bem delineados.

Helena bufou quando Paul sentou ao seu lado.

— Olá. — ele cumprimentou. Seus lábios tentaram esboçar um sorriso, mas ele não conseguiu.

Ela apenas acenou com a cabeça. Poderia ter gritado com Paul, tê-lo xingado por ter roubado aquele beijo que foi responsável por ruir com a sua vida, mas ela sabia que não valeria a pena. Quem diria, a boa e velha Helena desperdiçando uma chance de xingar uma pessoa que ela não nutria nada além de raiva.

— Sei que você me odeia e você tem toda razão em odiar. — disse Paul e sua voz estava embargada. Ele parecia prestes a chorar a qualquer momento. — Sei lá, eu só queria encontrar alguém para conversar.

Helena encarou novamente aqueles olhos verdes. Eles pareciam uma floresta densa, que encobria qualquer coisa que se escondesse entre as árvores. Ultimamente, parecia que todas as pessoas ao redor dela construíam muralhas pessoais.

— Acho que procurou a pessoa errada.

Paul emitiu um ruído que parecia um choramingo. Ela viu o brilho nos olhos dele e percebeu que ele estava fazendo força para não chorar. Suas pálpebras inferiores carregavam lágrimas que ele estava segurando para não escaparem.

Helena era durona, mas ela não era desumana. Mesmo com toda a raiva que sentia de Paul, ela cedeu.

— Ok, por que você está tão triste?

Era tudo o que Paul precisava ouvir. Ela viu a vegetação em seus olhos tornar-se um pouquinho menos densa.

— Eu fiz uma coisa horrível.

Helena acenou com a cabeça.

— Ah, sim, isso eu sei. Você me beijou à força e destruiu meu relacionamento. Uma coisa bem horrível mesmo.

Os lábios de Paul se enrijeceram e ele soltou um suspiro.

— Eu sinto muito por isso, mas fiz algo pior.

Helena jogou as mãos para o alto.

— O que pode ser pior do que isso?

Paul demorou um pouco para responder. Ele olhou para os lados, tentando se certificar de que ninguém além dos dois estavam naquele ambiente. Quando encarou Helena, ele até tinha um ar inocente no rosto, como se ele fosse uma criança de dois anos de idade que acabara de receber um algodão doce.

— Eu não sei se você será capaz de me compreender. Ninguém é. Minha família não foi. Meus amigos também não. Abandonaram-me. Desistiram de mim e me jogaram nesse internato.

Helena queria entender porque Paul tinha escolhido justamente ela para desabafar. Ela já tinha tantos problemas, tantas coisas se passando pela sua cabeça que não sabia se teria condições de ouvir as lamúrias de Paul. Mas quando ela olhou novamente para seus olhos, percebeu que não teria escolha. Eles eram quase como que hipnóticos. Então, ela deu corda a ele.

— Não acredito que você está prestes a revelar o motivo de ter vindo para Shavely! Oh, meu Deus, todas as pessoas por aqui guardam a sete chaves o motivo de estarem aqui dentro e você irá confiá-lo justamente a mim? Sabia que eu tenho fama de fofoqueira?

Paul não pôde deixar de sorrir. Nada que fosse algo comparado a uma risada ou a uma gargalhada, mas pelo menos ele elevou os lábios.

— Eu não tenho mais ninguém com quem conversar. — disse Paul, tristemente — Não tenho amigos aqui dentro. E tudo está me sufocando, me deixando agoniado demais. Eu preciso pôr para fora meus sentimentos porque se não eu sei que vai acontecer de novo.

Helena apenas assentiu com a cabeça. Agora ela estava começando a sentir pena do garoto, como se ele não tivesse feito nada para ela, como se ele não fosse o culpado de tudo.

Talvez ele não seja mesmo. Talvez a culpada de tudo seja você mesma.

A voz na sua mente falou tão alto que ela teve que controlar o impulso de tampar os ouvidos. Concentrou-se em Paul. Ela fez um sinal com a cabeça, encorajando-o a contar o que quer que seja que ele estava prestar a contar.

— O que eu fiz com você naquele dia é algo que eu simplesmente não consigo controlar, é mais forte do que eu, domina todos os meus instintos internos, me faz ser uma pessoa que eu não sou, que eu não quero ser. Depois de ter percebido que eu destruí o seu relacionamento, eu fiquei muito triste, muito decepcionado comigo mesmo e acabei fazendo algo pior. Eu tinha bebido alguns drinques de álcool na festa, uma menina com um piercing no septo me deu — Helena estremeceu à menção de Kelsey, mas se concentrou em prestar atenção na história — e eu acabei dando em cima de um menino. Ele não me deu bola e dois dias depois eu acabei tentando abusar dele. Eu não sei explicar onde eu estava com a cabeça, mas eu senti uma vontade incontrolável. E quando as pessoas me rejeitam fica pior. E tudo se agrava mais ainda porque estou preso aqui dentro.

Quando Paul terminou de falar, Helena estava boquiaberta. Ela não sabia o que falar, não sabia o que pensar, não sabia o que sentir. E quando ela estava assim, seu cérebro não tinha controle algum sobre sua boca, por isso ela deixou escapar:

— Você tentou abusar de um menino? Eu achei que você fosse heterossexual.

Paul lançou a cabeça para trás e emitiu um pequeno risinho.

— Eu sabia que você não iria entender. A questão não é a minha sexualidade. Isso não tem nada a ver com o fato de eu sofrer de satiríase. E antes que você me pergunte o significado dessa palavra, deixe-me esclarecer. Satiríase é a versão masculina para ninfomania. Esse nome vem de Sátiros, que na mitologia grega eram espíritos da natureza famosos por sua beleza e sexualidade exacerbada.

Helena arregalou os olhos. Achou que não tinha entendido direito o que ele estava falando. Tudo bem que Paul parecia meio psicótico, que ele tinha roubado um beijo de Helena completamente do nada, mas daí a ser um ninfomaníaco? Ou, melhor dizendo, um sati-sei-lá-das-quantas.

— Você é viciado em sexo?

Paul balançou a cabeça.

— Viciado é uma palavra muito fraca. Eu tenho uma obsessão compulsiva por sexo. Penso nisso o tempo todo. Minha família sempre me achou uma aberração por causa disso. Começou quando eu tinha por volta dos doze anos de idade. Eu estava descobrindo o meu corpo, me tocando e descobrindo novas sensações e eu simplesmente não conseguia parar de fazer isso. Eu saía para a rua e rapidamente tinha que encontrar algum banheiro público para me satisfazer. Na escola eu pedia toda hora para ir ao banheiro porque não aguentava ficar sem. Era quase como uma droga.

“Mas tudo piorou num dia quando meus pais saíram de casa para visitar um parente doente e me deixaram sozinho com a minha irmãzinha. Ela é dois anos mais nova que eu. Eu comecei a sentir aquilo de novo e quando ela entrou no meu quarto pedindo para que eu pegasse um pote de biscoitos que estava no armário mais alto da cozinha, eu não me aguentei. Eu toquei nela, abusei do corpo dela, mas ela foi rápida do que eu. Ela se assustou e saiu correndo, gritando e berrando para quem quisesse ouvir que eu era um tarado aproveitador de moças indefesas.

“Quando meus pais chegaram e descobriram o que aconteceu, nada mais foi o mesmo. Eles tentaram me internar várias vezes em clínicas psiquiátricas porque achavam que eu era louco, que eu tinha problemas mentais e psicóticos. Eu sempre acabava fugindo e voltava para casa apenas para descobrir todas as portas trancadas. Passei vários dias na rua, dormindo ao relento, até o dia em que eles decidiram que o melhor era me trazer para cá, me trancafiar dentro dessas paredes de pedra que me assombram todos os dias.”

Quando Paul terminou de falar, Helena percebeu que um peso de mais de quinhentos quilos tinha saído de suas costas. Ela notou que ele tinha relaxado, que tinha deixado de lado pelo menos parte da tensão que fazia seus ombros doerem. Entretanto, ela parecia tê-la absorvido. Sentia-se estranha, agora que sabia do segredo do garoto. Não podia mais culpá-lo. Paul precisava de alguém ao lado dele, alguém que pudesse apoiá-lo. Nunca conheceu o amor, nunca teve ninguém que pudesse lhe dar carinho, que compreendesse seus mais profundos sentimentos.

Foi por isso que naquele instante ela não mais o odiava. Encarou aqueles olhos tristes e pidonhos e suspirou. Eles eram parecidos, afinal. Helena também estava em Shavely porque seus pais achavam que ela era louca, porque nunca tiveram uma boa relação com ela, sempre a classificaram como a ovelha negra da família. Sentiu compaixão por Paul, sentiu vontade de acariciá-lo.

Ela não disse nada em resposta. Apenas sustentou o olhar dele e ele percebeu que ela estava sendo solidária, que ela compreendia o sofrimento dele e que não o julgava.

Pensou em como Tommy havia se jogado nos braços de Kelsey momentos após o término do relacionamento. Por que Helena não poderia fazer o mesmo? Por que ela tinha que sofrer enquanto o outro estava se divertindo a todo instante? Paul havia confiado nela para contar o seu mais obscuro segredo e agora ela confiava nele. Agora ela gostava dele e sabia que ele não tinha feito o que fez por mal. Ele era doente e precisava de ajuda e de tratamento. E ela estava disposta a fazer isso por ele. Estava disposta a fazer as coisas certas dessa vez, sem mágoas, sem ressentimentos, sem corações partidos. Estava disposta a dar o carinho que nunca soube compartilhar.

Ela estendeu a mão para Paul e ele a pegou. Ele apertou com força e um sorriso escapou dos lábios dele. Helena olhou para os olhos dele e o verde lá dentro não era mais uma mata densa. A vegetação se abrira e ela jurava que conseguia ver um raio solar iluminando todo o ambiente. 


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