O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 39
VII.3 Sonhos de grandeza.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/287113/chapter/39

No silêncio sepulcral do santuário de pedra escura, rodeado de teias de aranha, envolvido num cheiro a mofo e a cera queimada, Zephir era uma sombra escura que se debruçava sobre o altar. Abandonara as vestes brancas e imaculadas do Sumo-sacerdote e vestia agora um comprido hábito cinzento, com mangas largas e um capuz que lhe tapava a cabeça esguia e calva. Debaixo do hábito usava a túnica vermelha dos sacerdotes e no pescoço tinha as Insígnias Sagradas da Lua, porque achava-as indispensáveis para lhe conferirem poder e autoridade.

Planeava minuciosamente os seus próximos passos, calculando com cuidado o futuro, para evitar deslizes e desvios. Ele era um grande feiticeiro e não cairia nos erros dos outros que tinham ambicionado vencer e que tinham soçobrado. Socorria-se do “Livro de Babidi”, como sempre.

O super saiya-jin lendário era mencionado nas suas páginas preciosas, tal como lhe dissera o espírito de Babidi. Com o livro aprendera a convocá-lo, mas só ele não seria suficiente para conquistar o Universo. Sabia que Son Goku e os seus guerreiros viriam até ao Templo da Lua para o combater. Sabia que a batalha seria dura, longa e renhida. Sabia também que o super saiya-jin lendário não era garante de nada.

Uma das coisas que aprendera nos livros da Sala Sagrada sobre os guerreiros da Terra era a sua tenacidade. Num aspeto, todos os relatos eram peremptórios. Son Goku e os que o acompanhavam conseguiam sempre superar-se a si mesmos e vencer, mesmo que todas as probabilidades estivessem contra eles. Não importava a fortaleza, a habilidade ou a técnica do inimigo. No fim, retiravam forças e motivação nem se sabia de onde e, a custo por vezes das próprias vidas, combatiam-no, derrotavam-no e devolviam a paz ao mundo.

Durante aqueles dias que passara no santuário, procurara no livro uma solução que lhe agradasse. Buscava alguma coisa extraordinária que, em conjunto com o super saiya-jin lendário, lhe assegurasse a mais completa, total e avassaladora vitória. Encontrou-a, quando já estava a desesperar e disposto a queimar o livro. Rejubilou ao ler o nome pomposo do Medalhão de Mu.

Tratava-se de um amuleto mágico criado há muitos séculos atrás por um deus, chamado, precisamente, Mu. Esse deus tinha a capacidade de viajar entre dimensões, podia tomar as mais variadas formas e vivia diversas vidas paralelas nas dimensões que visitava. Quando estava prestes a morrer – Mu era um deus, mas não era imortal – decidiu deixar para as gerações vindouras a capacidade que possuía de conseguir visitar as várias dimensões do Universo e criou para esse efeito um medalhão.

Num passado remoto, após o desaparecimento do bondoso deus, houvera uma grande batalha pela posse do medalhão. Imperadores, reis, príncipes, governantes, sacerdotes, bruxos e guerreiros lutaram pelo amuleto numa guerra sem tréguas. Então, um grande senhor que velava pelos destinos do Universo e que decidira pôr cobro à guerra, sabendo que o Medalhão de Mu não podia cair nas mãos de gente ambiciosa e sem escrúpulos, apoderara-se deste e dividira-o em dois, separando as duas metades.

Zephir sentiu-se de imediato atraído por esse poder absoluto. Se conseguisse o Medalhão de Mu, seria mais do que sempre sonhara. Não apenas um senhor, mas um deus, intocável e invencível! Teria a faculdade de reinar não apenas no Universo da sua dimensão, mas nos demais universos de todas as dimensões possíveis.

Num apontamento rabiscado pelo punho de Babidi, Zephir leu que as duas metades do Medalhão de Mu estavam na Dimensão Z, o nome dado à sua dimensão, no planeta…

- Terra?!! Estão na Terra?

A emoção fez com que o coração batesse com mais força. Tudo se conjugava para o seu triunfo.

Havia mais, contudo. O grande senhor que dividira o medalhão, amaldiçoara-o de seguida, estabelecendo que ninguém o poderia tocar, quando voltasse a ser inteiro, a não ser alguém que pertencesse à…

- Dimensão Real.

Embrenhou-se na leitura com avidez. A lógica dizia-lhe que teria de abrir uma porta para essa dimensão e trazer alguém de lá para que pudesse usar o Medalhão de Mu num altar mágico que o grande senhor criara e que podia ser invocado com um conjuro. Ao aplicar-se o medalhão no altar, aquele que recebesse a luz emitida obteria a bênção de Mu, transformar-se-ia num deus e seria imortal.

Próximo problema, como trazer alguém da Dimensão Real?

Passou uma página, atrás dos rascunhos feitos por Babidi. O feiticeiro do Makai também estudara a existência do Medalhão de Mu e seguira-lhe o rasto, o que lhe era mais do que conveniente.

E ele leu que alguém seria transportado da Dimensão Real se interagisse com outro alguém da Dimensão Z. No processo de interação, uma brecha temporária iria abrir-se entre as duas dimensões e permitiria a viagem.

- Interagir? O que significará isso?

Mas para que isso acontecesse era claro que ele teria de enviar alguém dali para a Dimensão Real. Complicado, à partida. Simples, à medida que se aprofundava na leitura dos apontamentos coligidos por Babidi.

A Dimensão Real era um sítio remoto e inadequado. O tempo corria de maneira diferente, para começar. Um mês na Dimensão Real era equivalente a um dia na Dimensão Z. Ao fim de doze meses na Dimensão Real, doze dias contando o tempo como ele o conhecia, quem quer que tivesse entrado lá, já não poderia regressar. Por outro lado, perderia todo e qualquer poder que tivesse adquirido na dimensão de origem. Um feiticeiro perderia o seu poder mágico. Um guerreiro perderia o seu potencial de combate.

Questão seguinte: como enviar alguém da Dimensão Z para a Dimensão Real? A resposta estava ali, acompanhada do feitiço e de uma poção, como alternativa. Com sangue de amizade.

Adorou a solução e esboçou um sorriso pérfido. Teria simplesmente de conseguir sangue obtido de um combate entre irmãos e enviaria quem quisesse para a Dimensão Real por um período de tempo indefinido.  

Gradualmente, um plano perfeito, ambicioso e infalível desenhava-se na sua mente retorcida.

Fechou o “Livro de Babidi” e saiu do santuário, sistematizando cada passo do plano com uma frieza arrasadora. Naquele dia, começaria o lento, mas seguro, caminho até à glória eterna. Assim como escalava as escadarias sombrias dos subterrâneos até à luz do exterior, haveria de subir as escadarias até ao trono máximo que faria dele o senhor de todos os mundos, um pedestal mais altaneiro e magnífico que o Trono de Marfim.

O destino de Son Goku estava traçado. Seria ele o enviado para a Dimensão Real, juntamente com todos aqueles que lhe estavam ligados – filhos, amigos e inimigos. Livrava-se assim do seu maior empecilho. Se Son Goku permanecesse tempo demais na Dimensão Real, perderia os seus poderes guerreiros e não voltaria mais. Se regressasse à Dimensão Z, traria com ele aquele que Zephir precisava para unir o Medalhão de Mu e governar o Universo.

De qualquer maneira, a vitória seria sua.

No pátio, encontrou Kang Lo sentado numa coluna de pedra tombada, com um aspeto desolado. Tinha equimoses na cara e nos braços, a roupa estava esfarrapada. Se tivesse essa faculdade, poderia até sentir compaixão pelo lutador. A maldição do Makai, que lhe carcomia a alma em cada inspiração, fora talvez demasiada para aquele simplório suportar. Mas como sabia que Kang Lo era fraco, muito mais fraco do que Julep, Kumis ou ainda Son Goku, desprezou-o com um asco que lhe azedou o estômago. Contudo, continuava a necessitar daquele homem descartável.

Kang Lo ergueu os olhos mortiços.

- Sensei?

- Onde estão Julep e Kumis?

- Foram caçar… Quando não estão a treinar comigo, caçam animais.

- Não costumas ir com eles?

Abanou a cabeça violentamente.

- Não – respondeu, com a voz trémula. – Não gosto de os ver a comer os animais que caçam. Bebem o sangue, devoram a carne. Parecem… demónios.

- Os dois irmãos são demónios. Não sei porque te acanhas com eles. Afinal, não passam de dois ramos de árvore enfeitiçados.

- Pois, sim…

Zephir respirou fundo. Evitava aproximar-se do infeliz e Kang Lo estava tão fatigado que não considerava pôr-se de pé e receber o mestre com a deferência devida. Mas precisava de o ter mais perto de si se queria que o feitiço funcionasse na perfeição. Preparou o momento com cautela.

- Kang Lo, tenho a resposta à tua maior pergunta.

Uma centelha iluminou o olhar do lutador. Animou-se por um momento fugaz.

- Já sabes quem é ele?

- Disse-te que conseguiria sabê-lo, se entrasse no Templo da Lua.

- Então, diz-me.

- Chama-se Son Goku.

Kang Lo mexeu a boca sem articular qualquer som e repetiu, por fim, como se quisesse imprimir a fogo aquele nome no cérebro, para que nunca mais o esquecesse:

- Son… Goku.

- Conheces?

- Não, sensei. – E voltou a abanar a cabeça muito depressa, como se tivesse perdido o juízo. Zephir acreditou que isso tinha, de facto, ocorrido.

- Queres conhecê-lo?

Kang Lo hesitou. Depois, escancarou um sorriso apatetado que lhe iluminou novamente os olhos desprovidos de vida.

- Quero, sim, sensei. Faz-me conhecer o grande Son Goku!

- Levanta-te e aproxima-te.

Atabalhoado, Kang Lo conseguiu levantar-se e deu um par de passos mancos. Zephir reparou então que o sangue escorria de alguns ferimentos superficiais nas pernas e no torso, por baixo das costelas do lado direito. Contava que o feitiço que iria, em breve, aplicar lhe curasse aquelas mazelas, pois não precisava de um guerreiro ferido. Se não resultasse, decidiu, acabaria com a vida daquele inútil sem qualquer remorso e procuraria outro hospedeiro.

O sol punha-se e as sombras estendiam-se pelos cantos e pelas lajes negras do chão. Um par de kucris passou pelo pátio aos guinchos e Zephir sentiu na pele o arrepio que gelou Kang Lo ao vislumbrar as criaturas. Sentiu também como o medo o estava a afastar dele, a alma a fugir uivando, procurando refúgio, encurralada na prisão de maldade que construíra naquele corpo possuído pelo Makai. Não podia perder mais tempo.

Estendeu os braços e os dedos. As unhas compridas brilharam como lanças afiadas na direção de Kang Lo e ele recuou.

- Liberta a tua mente. Preciso que baixes essas defesas que insistes em manter quando falas comigo. Só depois, irás conhecer Son Goku.

- Tenho medo, sensei – lamentou-se, subitamente sincero.

Zephir sorriu.

- O que se passa? Deixaste de confiar em mim?

- Não sei. Tenho medo.

Vindo de nenhures, apareceu um vento que fustigou o pátio furiosamente. O hábito cinzento de Zephir esvoaçou e este tomou a imagem de um enviado do diabo. O capuz caiu-lhe para trás e mostrou a sua cara retorcida e lívida. Kang Lo teve ainda mais medo, pavor em estado puro, que o fazia ter uma vontade imensa de correr.

O feiticeiro entreabriu os lábios, a murmurar um sem fim de palavras numa língua estrangeira e desconhecida e à medida que a voz aumentava de volume surgiu-lhe nos dedos uma nuvem amarela de pequenas partículas brilhantes e irrequietas. Kang Lo começou a sentir um remoinho dentro de si, o corpo a agitar-se frenético, como se a terra tremesse com violência debaixo dos pés. Quando volveu o olhar embaciado para si próprio, viu que estava a derreter e a transformar-se numa papa indefinida. Contudo, não sentia qualquer dor, apenas uma dormência que o separava em dois, corpo e espírito. O medo tornou-se insuportável.

A nuvem dos dedos de Zephir envolvia-o totalmente, como uma mortalha. De um segundo para o outro, os pensamentos misturaram-se todos e Kang Lo gritou, agarrado à cabeça com uma mão, enquanto agitava a outra para afastar a nuvem. Tentava em desespero sair da influência daquele feitiço.

Os gritos de Kang Lo encheram o pátio. Sentia que se desfazia em mil pedaços, sentia que morria e que um outro tomava o seu lugar. Havia uma presença dentro dele que ganhava forma e peso. Havia uma outra alma…

- O que é que me estás a fazer, maldito feiticeiro? – Berrou aturdido.

Ouviu as gargalhadas de Zephir.

- És meu! Entregaste-me a tua alma no dia em que me salvaste e abrigaste na tua caverna. Apenas utilizo o que me pertence.

-Não!!!!

Se fosse rápido poderia atacá-lo. Não lhe seria difícil partir em dois o corpo esquelético daquele homenzinho horroroso. Kang Lo avançou, a tatear e a esmurrar o ar, rosnando e praguejando.

Zephir via as suas patéticas investidas, pensando como era curioso notar que, naquele momento final, a mente verdadeira do lutador se sobrepunha à mente que era controlada pelo Makai. Por instantes, o verdadeiro Kang Lo aparecera.

Mas fora apenas por instantes. Zephir controlava-o sem qualquer hipótese de reversão. Terminou o feitiço e baixou os braços, observando as convulsões do moribundo, os derradeiros minutos da existência de Kang Lo.

O lutador arquejou, desistindo do ataque. A cabeça pendeu, as costas dobraram-se, os braços caíram, as pernas amoleceram. Kang Lo sumia-se, espiritualmente. Havia um outro espírito que se imiscuía, preenchendo todas as cavidades, e empurrava o anterior espírito para um lugar inatingível.

Nisto, os cabelos ruivos ficaram pretos. A energia do corpo soltou-se numa onda avassaladora de luz, misturada com faíscas vermelhas e amarelas. Lançou um grito ensurdecedor, que prolongou até que aconteceu uma explosão brilhante e depois calou-se. Ouviu-se, na lonjura, um trovão. Caiu de joelhos nas lajes negras e enrolou-se numa bola, a tremer.

Zephir aguardou.

Passados muitos minutos, tantos que ficou noite, deu sinal de que despertava. Gemeu um pouco. Desenrolou-se, apoiou as mãos no chão e tentou levantar-se, mas não tinha forças. Tornou a gemer, frustrado, buscando conciliar a energia necessária para se equilibrar nas pernas fracas. Mas seria coisa normal não o fazer pois, afinal, tinha acabado de nascer.

Alguns kucris apareceram, postando-se atrás de Zephir, sem fazerem ruído. Alertados pela comoção do pátio, vinham ver o que estava a acontecer.

A segunda tentativa foi melhor sucedida e o guerreiro pôs-se de pé. Sacudiu a cabeça, agitando os cabelos negros e desgrenhados. Encarou carrancudo o feiticeiro. Rosnou, inquieto por se descobrir num sítio novo, que não reconheceu.

O tamanho do corpo diminuíra ligeiramente. Era mais pequeno do que Kang Lo, mais compacto e mais rijo. Mantinha na testa o “M” do Makai tatuado e o feiticeiro deliciou-se com esse detalhe. Perguntou-lhe:

- Quem és tu?

Ele abriu a boca e respondeu:

- Keilo.

Zephir sorriu.

- Sou um saiya-jin.

Zephir saboreou o doce sabor da vitória.

Keilo, o super saiya-jin lendário, acabava de chegar ao planeta Terra.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Uma vez que todos os saiya-jin têm nomes de vegetais, ou derivações, o nome de Keilo também tem essa origem - vem da palavra inglesa kale, que significa "couve" e que se pronuncia "queile"!
Próximo capítulo:
Os saiya-jin divertem-se



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.