A Chama Do Sul escrita por LudMagroski


Capítulo 3
Nos braços de Itris




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O soar dos cornos ainda ribombava no interior de seu crânio. Agora os gritos assustados do povo e as ordens apressadas dos guardas se uniam à sinfonia calamitosa. O rosto inerte de Lorde Adro fitava o céu azul, entre a conversa apressada de Advi e Mestre Anand. Adaia se aproximou, mas não ouvia. Haviam retirado sua armadura e cota de malha e o Mestre o examinava, procurando por uma fagulha de vida inexistente. Ele sequer conseguira falar, lembrou. Era uma marionete sem vida já quando atravessara os portões de Addaros. As lágrimas quiseram descer, mas foram interrompidas pela aproximação de Sir Tarlec. Um exército se aproximava com velocidade, dizia, os homens precisavam de ordens para seguir. O pátio era reinado pelo caos. Homens o atravessavam correndo, armando-se, enquanto outros se ocupavam de retirar os corpos do caminho. Criados tentavam controlar os cavalos e o povo jorrava em uma turba desorganizada que os guardas já não conseguiam conter pela ponte. Advi ergueu-se, afastando-se do corpo do pai, e encarou-a. Pela primeira vez em muito tempo enxergava medo em seus olhos. Seu rosto era pálido, mórbido. Só percebeu que chorava quando ele abraçou-a com força e as lágrimas quentes pingaram em sua bochecha. Sir Tarlec pôs a mão em seu ombro e os dois se afastaram para segui-lo.

Subiram pela escadaria recortada na rocha que levava até o alto dos muros que circundavam o castelo. Um pequeno número de arqueiros se organizava entre as aberturas e o comandante berrava tentando organizar o povo que se aglomerava para atravessar a ponte. Addaros se erguia no alto de uma colina circundada por campos lisos e uniformes, o que fazia com que do alto de suas torres e altos muros se pudesse ter uma visão privilegiada dos arredores, exceto das áreas cobertas por bosques, de onde eles surgiam. Uma centena de homens armados deixava a sombra das árvores para se juntar a uma coluna central, onde cavalgavam uma vintena de cavaleiros cobertos por armaduras pesadas e trazendo um aríete que parecia feito de rocha no centro. No lugar de cavalos, montavam criaturas enormes e encouraçadas. Rinocerontes, Sir Tarlec os lembrou. Não tinham símbolos em seus escudos nem ostentavam brasões. Avançavam rapidamente, gritando e brandindo suas espadas e lanças contra os grandes portões de madeira que – Adaia percebeu – não se fechariam a tempo. As flechas dos arqueiros sobre as muralhas eram como mosquitos sobre as peles rígidas dos animais e a armadura de seus cavaleiros.

- Senhor – o comandante que antes berrava ao lado da ponte aproximou-se deles – O povo está em alvoroço. Devemos subir a ponte?

- Não. – Advi respondeu com calma, sem tirar os olhos dos portões que já balançavam contra a força do aríete - Irei descer, preparem meu cavalo.

- Descer? – virou-se abruptamente - Não temos homens suficientes para enfrentá-los.

- Não pretendo enfrentá-los. Vou me render. – agarrou os dedos dela entre os seus.

- Está louco? – dominou o ímpeto de gritar - Se a rendição fosse uma opção não nos teriam enviado o cadáver de nosso pai! Vamos fugir e pedir ajuda. Lorde Gales, Lorde Ravi, Senhora Evanne... São todos nossos vassalos. Você é o Senhor de Addaros agora, eles têm de nos ajudar.

- E o que encontraremos quando voltarmos com um exército?  - Advi olhou desesperançoso para as pessoas que atravessavam a ponte - Corpos e cinzas para tomar de volta. Não posso deixar o povo sofrer e fugir como um covarde.

Sentiu as bochechas queimarem com a insinuação do irmão, mas não se deixou afetar. Não ia deixar que se arriscasse daquela maneira, não importava que nomes quisessem dar a suas ações.

- Vão trancá-lo num calabouço e o povo sofrerá da mesma maneira.

- Não. – ele segurou-a pelos ombros - Você trará os exércitos de nossos vassalos. Você e Sir Iras.

O cavaleiro havia se aproximado sem que Adaia percebesse. Parecia desconfortável, mas por fim disse:

- Senhor, se me permite, eu preferiria ficar ao seu lado.

- Alguém precisa proteger minha irmã, Iras, ela é a única família que me resta agora. – o jovem Lorde apertou seu ombro - Você é o único em que eu confio para isso. Leve-a em segurança até a fortaleza mais próxima.

- Eu não irei deixá-lo para trás. – declarou em voz alta, chamando a atenção. Nunca apreciara que tomassem decisões por ela e não seria nesse momento em que as coisas iriam mudar.

- Não vai estar deixando, irmã. Logo vai voltar para me buscar, tenho certeza. – Advi sorriu de seu modo reconfortante e galanteador e Adaia soube que ele estava tentando manipulá-la. Quis acertar seu nariz, mas a melhor forma de ganhar o jogo de seu irmão era fingir estar perdendo. Cruzou os braços sob o peito e deixou transparecer um muxoxo de resignação quando ele se aproximou para beijá-la no topo da cabeça.

-Não faça nada estúpido.

- Digo o mesmo para você. Leve-a Iras.

Os estrondos contra os portões se tornavam maiores à medida que descia as escadas atrás do cavaleiro. Já agora o pátio estava apinhado pelas pessoas que haviam conseguido atravessar a ponte: carroças, crianças, velhos, criados e soldados interrompiam seu caminho até o estábulo a todo o momento. Os cavalos estavam agitados como nunca vira, escoiceando e virando as orelhas a cada batida que indicava a proximidade da invasão. Crianças gritavam e choravam e os cães não paravam de latir.

- Vá aprontar os cavalos, sir. – ordenou assim que entraram na construção - Preciso pegar meus pertences no castelo.

- Penso que não há tempo, senhora. Devemos partir rapidamente, antes que percebam sua ausência.

- Já estou deixando muito para trás hoje, quem garante que voltarei a ver meu irmão? Não sou tola, sir. Deixe que leve o mínimo que posso, não me atrasarei, prometo.

Sir Iras pareceu não gostar muito da idéia, mas não havia muito que pudesse fazer além de concordar com a sua senhora. Por fim anuiu e voltou-se para os cavalos. Adaia deixou o estábulo e correu o mais rápido que pôde para o castelo. Ao entrar, passou pelo criado de seu irmão, Gen, carregando apressado a armadura do mesmo. Subiu a escadaria que dava para a torre de seu quarto e entrou, dando de cara com sua criada assustada.

- Senhora, o que está havendo? – Lina torcia as mãos com lágrimas nos olhos – Essas trombetas horríveis zurram sem parar e vi Mestre Anand passar com o senhor seu pai todo ensangüentado!

- Estamos sendo atacados e o senhor meu pai já descansa nos braços de Svart, mas não há tempo para chorar. Preciso que me ajude. – tirou os sapatos e se pôs a desfazer os laços do vestido enquanto falava – Vá ao armeiro e me traga uma armadura leve. Tente não ser vista e se a virem, invente uma mentira. Não esqueça do elmo.

- Mas senhora... – a jovem menina balbuciou.

- Vá!

Lina abriu e fechou a boca antes de correr apressada pela porta. Adaia terminou de se despir e alcançou os calções e camisa que usava para montar no baú ao lado da cama. No fundo descansava a espada com que treinava. Não era muito boa nem bonita, mas estava afiada e era conhecida de sua mão. Advi tratava seus treinos como um capricho, por isso não tinha uma lâmina tão trabalhada com a dele ou a de seu pai. Guerra não é diversão, Adaia. Se eu for um bom irmão, lhe arranjarei um marido bom e adequado e assim não terá necessidade de usar isso. Lembrava de ter corrido até seu pai e reclamado da arrogância e estupidez do irmão em encontrar uma espada adequada, ao que seu pai respondera dizendo que quando fosse boa o suficiente ganharia uma tão bonita quanto a sua. Nunca ganhara a nova lâmina, apesar de ter derrubado os homens com quem treinava uma porção de vezes. Talvez não fosse boa o suficiente para os pardões de Lorde Adro, mas hoje só o que importava era ser boa o suficiente para, quem sabe, salvar seu irmão. Lina retornou, ofegante, fechando a porta trás de si com os pés. Trazia o que Adaia havia pedido nos braços esguios.

- Qonne diz que eles passaram pelos portões. – comentou ajudando sua senhora a se vestir. Seus dedos sujos tremiam – O povo se desesperou na ponte e algumas pessoas caíram no fosso, mas Sir Tarlec conseguiu fazer com que se acalmassem e abrissem espaço pra seu irmão passar.

Adaia prendeu o cinto da espada à cintura e colocou o elmo na cabeça. Não estava acostumada com o peso, mas não era algo que limitasse seus movimentos. Girou a lâmina no ar algumas vezes, percebendo como seus movimentos pareciam fracos e trêmulos. O que estou fazendo?

- O que vai acontecer conosco, senhora?

O rosto infantil e assustado de Lina fez com que tivesse vontade de chorar e se esconder daquilo tudo. Agora não, sua estúpida. Agora precisa ajudar seu irmão.

- Eu não sei, Lina. Se esconda. E se eles a encontrarem faça o que mandam.

Não era um conselho que daria a si mesma, mas a criada era uma jovem pequena e inocente e era mais fácil que fizesse com que a machucassem mais do que conseguisse se defender. Abraçou-a e desceu as escadas devagar, reunindo coragem a cada degrau. Quando saiu pela porta principal seu irmão atravessava a ponte levadiça, rodeado por cinco de seus mais confiáveis cavaleiros, Sir Tarlec carregando o grande estandarte com o garanhão vermelho sobre a campina verde. Advi havia colocado uma de suas mais vistosas armaduras e trazia a espada presa à cintura, mas ao seu lado Sir Fenard erguia o tecido branco que indicava a trégua. Atrás deles os poucos homens de armas que ainda restavam vivos dentro dos muros do castelo e não usavam arcos seguiam a comitiva, e Adaia apressou-se para se por entre estes. O exército inimigo esperava pacientemente a meio caminho dos portões, tendo interrompido o ataque ao perceber o símbolo de trégua. Ainda assim os sinais do ataque violento eram visíveis. Algumas carroças e barracas já liberavam colunas de fumaça, e os que tinham sido lentos demais para correr tinham seu sangue tingindo as pedras da rua. Quase todos os homens tinham traços de veusianos: pele morena e rosto comprido, coberto por barbas escuras e trançadas. Alguns tinham pinturas semelhantes nos rostos e outros estavam cobertos por armaduras pesadas. Os dois grupos por fim ficaram frente a frente e encararam-se em silêncio por alguns momentos até que seu irmão desceu de sua égua e aproximou-se.

- Sou Lorde Advi Saedan, Senhor de Addaros, Protetor das Campinas do Sul. Quem tenho diante de mim?

O cavaleiro robusto que estava à frente do grupo desmontou de seu rinoceronte e se aproximou do jovem lorde antes de tirar o elmo de bronze, revelando uma mulher sorridente com longos cabelos pretos. Era rechonchuda e possuía bochechas tão coradas que parecia mais alguém que se encontraria entre os nobres de uma corte do que portando uma armadura pesada e liderando um exército. Ela riu ao entregar seu elmo a um de seus comandantes.

- Fala como se estivesse em algum jantar cheio de pompa! Sou Dusana, futura Senhora de Addaros. Interrompe minha conquista.

- É nortenha.

- Sou nortenha, mas Cerusia e vosso amado Príncipe Eyon parecem não me achar boa o suficiente. É uma pena, pois não demorei a encontrar quem me desse utilidade em Veusios. Mas não estou aqui para contar minha vida. O que tem a me oferecer?

- Ofereço minha rendição em troca da vida de meu povo. – os lábios de Advi se abriram em um sorriso treinado, mas seus olhos permaneceram graves – Assim não perderá tempo e poderá se tornar senhora o quanto antes.

A mulher riu.

- O que o faz acreditar que matá-los seria perda tempo? Eu gosto da diversão.

- Já teve sua diversão. Matou meu pai e seus homens.

- E ainda assim vem me oferecer a rendição. – um dos comandantes, um homem alto e de grossas sobrancelhas, riu alto e Dusana sorriu satisfeita. A raiva pareceu deixar o interior de sua armadura mais quente e abafado. Sentiu que quase podia tocar a tensão que percorreu os homens de seu irmão, mas o jovem lorde permaneceu tão inexpressivo como antes.

- Enfrentá-la não trará o senhor meu pai de volta. Aprendi desde cedo a ser prático.

- Prático! – gritou, rindo, mas havia uma centelha de fúria em seus olhos – É um dos quatro grandes senhores do reino e escolhe ser prático?  Bom, sua conversa pomposa me aborrece, me permita ser prática.

Dusana fez um movimento com a mão e estacas rochosas e pontiagudas se levantaram do solo em um semi-círculo diante dela, derrubando alguns homens e empalando outros. O solo tremeu sob seus pés e o exército inimigo avançou aos gritos. Uma nuvem de poeira se ergueu com o mover das rochas, dificultando a visão. Advi! Gritou se desvencilhando dos homens em seu caminho, procurando por um sinal do irmão no lugar onde ele estivera antes. Corpos balançavam presos às estacas, mas ela não conseguia diferenciá-los de onde estava. Um rinoceronte passou correndo ao seu lado e ao desviar foi de encontro a um guerreiro que cambaleava em meio à poeira. Puxou com rapidez sua espada da bainha, brandindo contra seu inimigo, que se mostrou ser um homem alto, com grossas tranças e tatuagens cobrindo a face. Era fácil perceber que era um guerreiro forjado por várias batalhas, o que fez os dedos de Adaia tremerem agarrados ao cabo da espada. Seus golpes foram impedidos pelo seu escudo gasto e, depois de deixá-la arfando de cansaço, atirou o escudo para o lado, juntando as duas mãos no cabo de seu machado e girando-o agressivamente no ar. Os golpes vieram rápidos e fortes, forçando Adaia a dançar para trás a fim de esquivar-se deles. Seus pés já roçavam na borda do grande fosso onde o rio corria sob a ponta levadiça, indicando que o único caminho agora era adiante. O guerreiro estava confiante e sorria girando o machado mais uma vez ao se aproximar para um golpe final. O suor descia pela sua testa e nuca dentro da armadura quente, os músculos de suas pernas tremiam sob o peso do metal, mas mesmo assim agarrou a espada com força e desceu-a sobre o homem. Ele subiu o machado em sincronia, o grito de aço contra aço se juntando a tantos outros ao seu redor, mas Adaia deixou o braço deslizar para o lado e o machado foi incapaz de impedi-la. O sangue jorrou rubro sobre o ombro do guerreiro onde a lâmina deslizara, mas o golpe tinha sido fraco e impreciso demais para machucá-lo de verdade. Tudo que Adaia tinha agora era o momento de surpresa para acertá-lo novamente, mas quando erguia a lâmina uma segunda vez uma dor forte e dilacerante atingiu seu ombro e seu corpo foi jogado para trás com a força do impacto. Teve apenas tempo de encarar o besteiro que a havia acertado antes de seus pés tropeçarem sobre a borda do fosso e seu corpo ser envolto pela escuridão gelada do rio.


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Notas finais do capítulo

And here we are again. Depois de três capítulos de ação contínua o próximo será bem mais calmo e teremos personagens novos. Não vou garantir rapidez nem nada que não posso cumprir. Me sentir satisfeira com minha escrita e com o enredo tá sendo bem difícil, por isso a minha lerdeza... mas obrigada a todos que acompanham e comentam, me deixam muito feliz :)



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