A Chama Do Sul escrita por LudMagroski


Capítulo 1
A Noiva de S'tasad




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As chamas começaram a tremeluzir no centro da praça a medida em que o sol se punha no horizonte. Várias fogueiras estavam dispostas em círculo no piso de pedra, deixando um espaço central onde flores, grãos e feixes de trigo tinham sido deixados aos pés da estátua trazida do templo. Era a imagem de Davra, a deusa dos campos e florestas, uma donzela de olhar triste, cabelos trançados em flores e corpo vestido de folhas. As notas suaves do bandolim e da flauta se misturavam às risadas dos que ensaiavam os primeiros passos de dança e ao crepitar de um leitão assando. As sombras começaram a alongar-se, avisando que não demoraria muito até que a luz do dia os deixasse. Adaia afastou-se da janela ao perceber que a criada terminara de trançar seus cabelos e fez um sinal para que se retirasse, se dirigindo ao espelho. O vestido de seda verde que usava combinava com seus olhos e contrastava com os cabelos cor de ferrugem, arrumados em uma trança folgada adornada por flores brancas, as lágrimas-de-armin. Não era de uma beleza estonteante, mas se julgava apresentável. Seu irmão não teria do que reclamar desta vez. Depois de uma última olhada, prendeu a capa verde escura nos ombros e deixou o quarto, descendo as escadas de dois em dois degraus e atravessou a cozinha correndo, se esgueirando entre as grandes caldeiras fumegantes que os empregados carregavam. Cães vadios se coçavam preguiçosamente no pátio quando a garota entrou no estábulo, fazendo saltar o garoto franzino que ressonava de boca aberta na entrada. O cavalariço começou a balbuciar alguma coisa, mas Adaia já havia pego o cabresto e a sela e se dirigia ao outro lado do estábulo antes que ele pudesse lhe dizer algo. O cavalo na última baia relinchou com sua aproximação e ela acariciou seu focinho, entrelaçando os dedos no pelo macio e vermelho de Shada. O animal forte e jovem fora presente de mercadores do Sul, e recebera seu nome, que na língua dos andarilhos significava nascido da terra, em razão de seu pelo da cor de barro molhado. Tinha o escolhido para si entre os vários corcéis de seu pai porque pensava que vê-lo correndo nos campos era como ter a imagem viva do brasão da Casa Saeran diante dos olhos: o garanhão vermelho sobre o fundo verde. Depois de selá-lo e colocar o cabresto, montou e saiu devagar do estábulo, tendo o cuidado de puxar o capuz sobre a cabeça. Atravessou a ponte levadiça sem dificuldades, junto ao fluxo de criados que corria entre as duas direções preparando tudo e os convidados de seu irmão, que chegavam para a festa.

A Vila da Raposa, cujo nome não mais se adequava por ter crescido ao ponto de se tornar tão grande quanto uma pequena cidade, estendia-se ao redor do monte onde se erguia a fortaleza de Addaros. Os prédios maiores, que funcionavam como tabernas, bordéis e oficinas, serpenteavam ao longo do rio que atravessa a cidade e as casas pequenas se amontoavam por vielas tortas e esguias, todas desembocando na rua principal, onde ficava o mercado e a praça. Ao redor estendiam-se os grandes pastos onde criavam seus famosos cavalos e pequenos campos de trigo e algodão com pequenos casebres pontuados aqui e ali. A proximidade com a fronteira de Veusios tornara o lugar um ponto de parada para todos os mercadores veusianos e dos reinos do sul que decidissem atravessar o pequeno deserto que os separava de Odranis, dado que a capital ficava mais ao norte e o mercado da Vila da Raposa não deixava a desejar. Os estrangeiros eram parte comum do cenário, mas sua presença triplicava nos dias de feira: a grande rua principal, larga o suficiente para quatro carroças passarem lado a lado, era tomada por barracas e mais barracas de todas as cores e produtos imagináveis vindos de toda a parte sul do continente. De frutas e verduras, passando por pães e tortas, escudos e espadas, até tecidos e sapatos, dizia-se que se algo não podia ser encontrado no mercado da Vila da Raposa era porque não existia (ou talvez você não estivesse procurando direito). Ao final de cada colheita, fazendeiros das vilas próximas vinham até a cidade oferecer seus produtos, e era comum que trupes de artistas aparecessem por uma semana ou duas. Os grupos renomados costumavam fazer uma apresentação particular no castelo antes de se fixarem a uma hospedaria local, enquanto os mais humildes ou solitários se apresentavam nas ruas, na esperança de alguns trocados.

Adaia afundou levemente os calcanhares na barriga do cavalo o fazendo atravessar a vila a um trote ligeiro e se dirigiu para a borda do bosque que se estendia depois dos pastos. Afastou o capuz da cabeça para olhar melhor a pequena fogueira que queimava entre as tendas lá longe, no horizonte, onde se podia adivinhar pessoas dançando ao som de tambores. Qualquer que fosse o motivo pelo qual festejassem, certamente não era a colheita. O Povo Andarilho não semeava, viviam da caça e da troca de carne e peles pelo que for que desejassem. Às vezes sentia vontade de esgueirar-se até o seu acampamento e vê-los de perto, mas sabia que não era algo inteligente a se fazer. Os dois povos toleravam-se, mas havia muitos que se referiam aos andarilhos como selvagens e se ressentiam da sua presença nas cidades ou próximo a elas, o que já tinham acabado por gerar confusões na parte norte do reino. Além disso, sabia que Advi a faria ouvir uma hora de sermão sobre qual o comportamento esperado de uma senhora. Não que isso a tivesse impedido alguma vez, mas tinha planos melhores para o momento.

Esporeou o animal e avançou para o interior da mata, seguindo uma trilha quase invisível vinte metros adiante até esta desaparecer. Parou, imitando o canto de uma cotovia e não precisou esperar muito para ouvir a reposta vinda do interior das árvores. Desmontou e seguiu floresta adentro levando Shada pelas rédeas, cantando novamente quando perdia a direção e tornando a seguir quando a resposta ecoava entre as folhas. Ensaiou as notas mais uma vez quando chegou a uma clareira pequena, onde pequenos arbustos de frutas silvestres cresciam lutando pelos tênues raios de luz que conseguiam atravessar as copas frondosas das árvores acima. O rapaz de cabelos escuros levantou-se, limpando as mãos sujas de terra na camisa branca e respondendo-lhe o canto:

– Achei que tinha se perdido.

Adaia deixou um sorriso escapar, retirando o cabresto de Shada para que ele pudesse pastar livremente. Quando se virou para o amigo, percebeu o cansaço que transparecia em seu rosto junto às olheiras que começavam a se formar.

– Você não tem dormido. – deixou escapar antes que percebesse. Arrependeu-se no instante em que o sorriso de Tasnis se desfez em uma linha fina.

– O velho Jaden também sofre de insônia. Ninguém se importa muito com isso.

– Existe diferença entre a causa das suas noites em claro e as do cozinheiro.

– Verdade. – deixou um sorriso amargo trespassar-lhe os lábios finos – Ele gosta de falar das dele.

Adaia cerrou os dentes antes que deixasse escapar alguma coisa da qual se arrependesse. Em vez disso manteve-se encarando o rapaz, que desviou os olhos cinzentos para a camada de folhas no chão, como se fossem a coisa mais interessante do lugar. Um silêncio incômodo começava a se instalar quando ele por fim se aproximou, afastando uma mecha ruiva pra longe dos olhos dela.

– Mas você não se vestiu assim para uma caminhada na floresta.

Adaia não se moveu.

– Não finja não saber da festa da primeira colheita.

Tasnis sorriu.

– Eu sei. – voltou-se para o lugar onde antes estivera agachado e recomeçou a escavar a base das plantas – Mestre Anand acha que amanhã será um bom dia para me ensinar uns tônicos para bebedeira, depois da noite de hoje. Mas você não deveria estar no banquete de seu irmão?

A garota resmungou, se aproximando do arbusto e analisando as pequenas frutinhas douradas de perto. A idéia de passar a noite sentada ao lado dos convidados de Advi, soltando cortesias e sentindo seus bafos de vinho a fazia ter vontade de passar a noite ali, mesmo que isso significasse ter cada passo observado por alguém da guarda pela semana seguinte.

– Tive a esperança de que quisesse vir comigo. – comentou distraída, sabendo de antemão que o único modo de passar algum tempo com o amigo nos dias de banquete era esperar Advi dispensá-la do salão.

– Mesmo que eu fosse um escudeiro e pudesse participar do banquete, você estaria no tablado ao lado do senhor seu irmão e de Sir Dastan - arrancou um punhado de raízes e puxou a faca, cortando as folhas fora antes de guardá-las na pequena bolsa que trazia presa ao quadril - Reclama demais, Adaia. Poderia estar em um salão com música, se empanturrando de tortas de maçã e pedaços crocantes de leitão, e a única coisa que teria que fazer era deixar que os senhores apreciassem seu sorriso. Sir Dastan, um cavaleiro da Guarda Real, sabe que tipo de histórias ele deve ter para contar?

Adaia estourou uma das frutinhas na mão, vendo o líquido claro escorrer entre os dedos.

– Porque não vai no meu lugar, então?

– Não é má idéia. – Tasnis parou para lançar-lhe um sorriso – Ainda faria uma senhora melhor do que você.

A garota revirou os olhos e atirou um punhado das pequenas frutas na cabeça do amigo, que soltou uma reclamação antes de avançar para um arbusto próximo, de onde arrancou um cacho das mesmas frutinhas.

– O que vai fazer, me nocautear com elas? – cruzou os braços sob o peito, desafiando-o. O rapaz só sorriu antes de erguer a mão manchada de um amarelo viscoso na direção do rosto dela, proveniente das frutas que havia esmagado. O rosto impassível de Adaia transformou-se quando ela percebeu suas intenções.

– Não! – cambaleou para trás, tropeçando nos gravetos, tentando afastá-lo com as mãos – Se estragar mais esse vestido, Advi vai me trancar em uma das torres – antes que pudesse terminar, seu rosto já estava coberto pelo visco amarelo. Adaia acertou-lhe um soco no peito, fazendo o amigo gemer.

– Não sei porquê Lorde Saeran e seu irmão insistem tanto em te apresentar aos vassalos – resmungou Tasnis entre um sorriso, massageando o local da pancada – Eu te manteria escondida nos calabouços de bom grado. – soltou o arreio de seu burro do toco em que estava preso e verificou se os sacos de lenha estavam bem seguros antes repor o cabresto de Shada e começar a puxar os dois animais em uma direção diferente da qual tinha vindo. – Vamos, os festejos já devem ter começado... Pela trilha dos lenhadores, é mais fácil de caminhar por lá nessa luz, além de ser mais curta.

Adaia murmurou uma resposta, tentando desajeitadamente limpar os vestígios de visco do rosto, enquanto o seguia. Tasnis contou-lhe os últimos casos estranhos e constrangedores da clínica de Mestre Anand, e Adaia lhe falou sobre uma trupe de artistas particularmente bons que se apresentaram no castelo na noite anterior à partida de Lorde Adro para o Sul.

– Havia um arqueiro entre eles. Acho que o melhor arqueiro que já vi na vida. Atirou uma flecha de um lado ao outro do salão e acertou no centro do alvo que se movia!

Tasnis não pode esconder um sorriso descrente.

– Não vejo nenhuma habilidade em acertar um alvo móvel quando já se sabe para onde ele vai.

Avançando à frente dele, Adaia o fez parar.

– Está me dizendo que faz melhor? – seus lábios retos se abriram em um sorriso provocador. Tasnis a afastou gentilmente de seu caminho, seguindo em frente com os animais atrás de si.

– Se quiser mesmo saber o que é um arqueiro bom deveria vir caçar comigo qualquer dia desses.

– Não vai me surpreender acertando um coelho, se é isso que pretende. – Adaia apressou o passo para acompanhá-lo.

– E um coelho em fuga?

– Se o pegar entre os olhos. – sorriu quando Tasnis parou e estendeu-lhe a mão - Não vou facilitar as coisas pra você, garoto das ervas. Aceita ou não?

O rapaz parecia divertir-se com a idéia e finalmente apertaram as mãos, selando o acordo. Adaia tomou as rédeas de sua mão e as amarrou desajeitadamente em um tronco próximo, tirando o arco e aljava de Tasnis da sela do burro.

– O que está fazendo?

– Vamos pegar o seu coelho. Segure. – estendeu a arma para o amigo.

– Adaia, se há um lugar onde deveria estar é ao lado de seu irmão no salão. Além disso, escurecerá em pouco tempo.

– Melhor, uma proeza a mais para sua lista. – sorrindo satisfeita consigo mesma, deixou a trilha e enveredou entre as árvores altas, afastando os galhos mais baixos e erguendo a saia do vestido para que não prendesse em arbustos ou gravetos caídos no solo. Sabia que Tasnis a seguia, não só por conhecê-lo o suficiente, mas também porque seus passos sobre a folhagem caída o denunciavam. Avançaram uma boa distância no interior da mata (Tasnis já havia tentado convencê-la a voltar duas vezes e o sol poente penetrava entre os troncos em faixas douradas e compridas) quando os olhos treinados de Adaia caíram sobre os pêlos escuros de um gordo coelho. Tasnis aprumou a flecha na corda, esticando-a, quando a ruiva saltou entre as folhagens espantando o animal que disparou saltando sobre galhos e troncos apodrecidos enquanto o arqueiro xingava. Adaia riu e seguiu o animal, correndo entre as árvores, sem prestar atenção ao caminho ou se Tasnis ainda a seguia. Sua trança começava a folgar e os fios acobreados balançavam com o movimento junto ao seu rosto, as lágrimas-de-armin se soltando ao longo do caminho, os galhos finos espetando seu rosto e por vezes se agarrando ao tecido de seu vestido, mas Adaia só parou de correr quando o coelho sumiu de sua vista, a deixando na abertura de uma vasta clareira.

– Tasnis! – gritou, parando para recuperar o fôlego, mas não houve sinal do rapaz na floresta atrás dela. A clareira adiante era ocupada por uma construção circular, suas paredes com feridas feitas pelo tempo e ocupadas por ervas daninhas e arvorezinhas tortuosas que afundavam suas raízes na pedra antiga. A entrada era um arco alto enfeitado por arabescos esculpidos na rocha que pareciam seguir caminho por toda a lateral e em seu topo havia um círculo perfeito, preenchido por ouro branco e ouro negro. Adaia reconheceu de imediato o local como um templo e entrou para maravilhar-se com o modo como o sol deslizava pelos buracos no teto arredondado sobre o piso de mármore trabalhado. Na pedra havia sido escavado um grande aro formado por desenhos de heras entrelaçadas, chamas lânguidas, correntes de ar e cadeias de montanhas que um dia deviam ter sido preenchidos também por ouro branco e negro, mas que já haviam sido roubados por saqueadores que haviam passado por ali ao longo dos anos. Na borda externa do círculo estavam as estátuas dos seis deuses conhecidos, mas lhes faltavam pedaços e havia musgo crescendo sobre suas figuras. Havia pedaços de rocha amontoados no chão, restos de partes do teto que não agüentaram o peso dos anos e por onde agora uma árvore lutava para sair, com suas raízes grossas agarrando parte do piso e da parede. A luz dourada do sol entrava por um dos lados do templo, espalhando-se em faixas sobre as estátuas, o mármore e a árvore jovem, enquanto a penumbra da noite começa a se esgueirar pelo outro lado.

– Tasnis, venha ver! – suas palavras pareceram ecoar no que restava do teto e foram seguidas por passos do lado de fora do templo, mas no lugar da figura do rapaz o que apareceu a porta foi um homem alto envolto em uma capa esfarrapada. Em meio às rugas de sua pele maltratada pelo sol, olhos vívidos se escondiam, e percorreram Adaia com espanto antes de descansarem em seu rosto com satisfação aparente.

– Eles nos ouviram... – a voz esganiçada saiu como um murmúrio enquanto o velho caminhava para o centro do aro onde ela estava – Eles nos ouviram!

– Do que está falando? – perguntou para o nada porque o velho a circundava como um alfaiate que admira sua mais nova confecção enquanto balbuciava qualquer coisa. Mais três pessoas apareceram à porta do templo, também envoltas em capas e com o mesmo olhar de surpresa do velho ao porem os olhos nela.

– Tragam a lenha! Eles nos ouviram! – o velho virou para gritar aos seus companheiros, que desapareceram tão rápido como haviam surgido, e riu sozinho. Adaia segurou as mangas puídas das vestes do homem, finalmente ganhando sua atenção.

– Me responda, homem! Quem os ouviu?

– Os deuses! – sacudiu as mãos para alto – S’tasad em pessoa parece a ter escolhido! – o velho enxugou a lágrimas e deslizou os dedos ásperos pelos cabelos de Adaia.

– Me escolhido? – afastou as mãos do velho de si, algo estava errado naquele lugar, mas não tinha ainda idéia do que era.

– Nada nesse mundo vem de graça, menina. Para ter fogo é preciso dar-lhe a madeira, para ter grãos é preciso dar-lhe a água, para ter gado é preciso dar-lhe o pasto. E para um homem ter seus desejos ouvidos, é preciso dar algo aos deuses.

Adaia deu um passo para trás, começando a entender.

– Sacrifícios foram proibidos há muito tempo.

– Por um rei que não sabe de nada! Meus filhos, nossos filhos, seguiram Lorde Adro para o Sul, de onde os boatos de guerra e peste chegam junto a cada viajante! – os olhos negros do velho se esbugalharam e gotas de saliva voaram de sua boca – Por três dias e três noites oramos, pedimos aos deuses que nos dissessem como agradá-los para que nossos filhos continuassem vivos e aqui está! O deus da guerra nos ouviu e escolheu a sua oferenda – sua voz se ergueu em um rugido rouco à medida em que seus companheiros retornavam com os braços carregados de madeira e os depositavam no centro do círculo - A noiva de S’tasad, vestida de seda e com cabelos de fogo!

– Sou filha de Lorde Adro e noiva de homem algum. Pare com essa tolice ou meu pai vai encontrá-los e suas peles servirão de sela para nossos cavalos.

O homem parou para olhá-la, assim como os seus seguidores, e Adaia pôde ver que eram nada mais que camponeses, criadores de cavalos e lenhadores, que haviam juntado seu desespero pela falta de notícias boas vindas do Sul aos delírios da bebida.

– Vejo que há fogo não só em seus cabelos, mas em sua alma.

Sorriu, satisfeito, deslizando um punhal de dentro de suas vestes para o rosto de Adaia, a ponta da lâmina descansando perigosamente sob sua mandíbula. Um de seus homens se aproximou e amarrou os pulsos e tornozelos de Adaia com uma corda grossa antes de forçá-la de joelhos, com as costas viradas para a lenha amontoada no centro do círculo.

– Acendam as chamas, amigos! É hora de S’tasad receber sua oferenda!

A lenha seca foi tomada pelo fogo rapidamente, enchendo com o estalar da madeira sendo partida. À medida que as chamas cresciam a coluna de fumaça subia para escapar pelo buraco no teto e mais pessoas chegaram ao templo. Eram pessoas pobres, malvestidas, lenhadores, agricultores, criadores de animais, que possuíam em comum a perda de um filho para a guerra. Adaia achava que aquelas pessoas eram tolas demais ou alguém havia feito um bom trabalho plantando boatos por ali, pois seu pai levara os homens para o sul a fim de esclarecer a intenção e negociar com os exércitos que vinham se deslocando em direção a suas terras e aquelas pessoas estavam desesperadas como se seus filhos houvessem marchado para a perdição. Sentia as chamas dançarem atrás de si, formando gotas de suor que escorriam pela sua nuca e costas, quando um dos homens se pôs entre ela e a fogueira, descansando a lâmina gelada de um punhal sobre sua garganta. Fechou os olhos esperando o pior. Ao menos não morrerei queimada, pensou. Mas no lugar da dor veio um baque, seguido pelos passos vacilantes do homem que caiu sobre a fogueira espalhando brasas e cinzas pelo piso liso do templo. Uma flecha bem cravada entre seus olhos o poupara da agonia das chamas lambendo sua pele, mas não pouparia os vivos de seu cheiro. Uma mulher gritou apavorada enquanto os outros avançavam para a porta com seus machados e enxadas apontados para Tasnis que já pousava outra flecha no longo arco. Adaia poderia ter sorrido ao vê-lo, mas estava apavorada demais para isso e sabia que ele também. O arco era usado com tanta naturalidade como se fosse uma extensão de seu braço, mas ali, enquanto tentava afastar aqueles homens desesperados acertando seus braços e pernas, havia tensão em seu rosto. Eram homens demais contra um só garoto com um punhado de flechas que logo acabaria, Adaia percebeu. Apanhou o punhal que caíra em seu colo e prendendo o cabo entre os dentes começou a trabalhar nas cordas que a prendiam. O fedor da carne queimada e o suor escorrendo em seu rosto não estavam ajudando, mas por fim uma corda cedeu e depois a outra, libertando-a. Não tinha esperança de achar uma espada ali, mas um pedaço de madeira ou uma pedra teriam que servir para atravessar os homens que se aproximavam cada vez mais de Tasnis, vendo as flechas diminuírem. Adaia rastejava para longe da fogueira quando sentiu uma mão se fechar sobre seus cabelos, a erguendo com violência. Seu grito foi o suficiente para chamar a atenção de todos dentro do templo. O homem gordo a virou diante de seu rosto como uma boneca de trapos, descansando a lâmina de sua faca sobre a bochecha de Adaia ao encarar Tasnis.

– Largue o arco, moleque.

A ordem foi respondida um vento fraco que rodopiou no interior do templo, trazendo folhas secas, balançando os galhos da árvore e espalhando as cinzas da fogueira fraca. Tasnis pousou o arco no chão e tão logo o fez, recebeu um soco de um lenhador corcunda que chutou seu estômago quando ele caiu. Os outros se animaram a avançar, mas o que parecia ser o líder ergueu as mãos, pedindo que se afastassem.

– O rapaz será castigado, como deve, mas estamos aqui para ofertar a S’tasad e isso deve ser feito primeiro.

O vento dançou com mais força dentro do templo, sacudindo as saias das mulheres e afastando os cabelos de Adaia de seu rosto. O gordo a largou bruscamente no chão, ainda mantendo o aperto em seus cabelos enquanto os outros tiravam o que restava do amigo morto da fogueira e alimentavam o fogo para que se tornasse forte novamente. Adaia tentou chutá-lo ou mordê-lo, mas o gordo apenas riu, mostrando seus dentes afastados.

– Você trará meu filho de volta. Dirá a S’tasad e ele a atenderá porque a ama.

– Direi que deixe seu filho apodrecer no campo de batalha com os corvos comendo seus olhos e os cães suas tripas, é isso que direi! – cuspiu no rosto do homem, que rugiu de raiva e lhe acertou um soco no rosto. Adaia sentiu o sangue derramar do corte em seus lábios. Pela primeira vez na vida estava ansiosa para que Advi tivesse percebido sua ausência e mandado seus homens a procurarem. Se demorassem demais talvez só encontrassem suas cinzas, pensou com medo. O gordo segurou sua cabeça, apertando seu queixo com a mão grande. O bafo de bebida encheu as narinas de Adaia.

– Retire o que disse! – sua voz tremia e todos haviam parado para olhar. - Retire!

Um vento forte girava dentro e fora do templo, sacudindo as árvores e espalhando as folhas, impedindo a fogueira de crescer. O sol havia se posto e uma tempestade parecia se aproximar.

– A morte do seu filho será a primeira que pedirei. – respondeu, olhando nos olhos pesados do homem que tremia. A lâmina de um punhal brilhou em sua mão e Adaia soube que iria morrer. Afundou as unhas no pulso de seu captor em vão, pois o homem não parecia sentir mais do que cócegas. As lágrimas desceram, quentes, quando a ponta deslizou sob mãos trêmulas da maçã do seu rosto até o maxilar. O sangue começou a gotejar sobre seu queixo e o gordo forçou sua cabeça sobre a fogueira, deixando que pingasse ali. Adaia tentou se afastar das chamas que se aproximavam perigosamente de seu rosto, mas o aperto em sua cabeça era firme. A fumaça quente atingiu seus olhos, enchendo-os de lágrimas mais uma vez quando ergueu a cabeça para ver Tasnis lutando para se soltar dos homens que o seguravam. Assim que seus olhares se encontraram, aconteceu. Uma onda translúcida surgiu ao redor do rapaz e deslizou em todas as direções em questão de segundos, atirando e ela todos os outros contra a parede antes que tivessem sequer tempo de perguntar a si mesmos o que estava acontecendo. O ar foi expulso de seus pulmões com violência quando atingiu a parede. A lenha em brasa se espalhou pelo piso do templo, apagando a fogueira. Sentiu o gosto de sangue na boca e suas costas arderem enquanto esperava a queda que não veio. Uma força invisível parecia empurrar seu corpo contra a parede, mantendo seus pés a uma boa distância do chão, e ao seu redor os camponeses pareciam estar na mesma situação com exceção dos que jaziam imóveis sobre poças de sangue escuro. Abriu a boca, tentando gritar e respirar ao mesmo tempo, mas só um gemido estrangulado escapou de sua garganta. Teve a impressão de ouvir cascos do lado de fora, mas era difícil saber com os galhos sacudindo acima de sua cabeça. Tasnis olhava ao redor, apavorado, e o vento girava em círculos furiosos fora e dentro do templo, como se o rapaz fosse o olho de uma tempestade em formação. Sua cabeça tornou-se pesada e já se tornava difícil distinguir algo na escuridão quando um relincho alto a forçou a manter-se acordada por mais uns instantes. Uma égua de pêlo claro irrompera através da porta do templo e Adaia sorriu apesar das dores, porque seu irmão estava ali.


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Notas finais do capítulo

Depois de tanto tempo finalmente tomei vergonha cara para postar e espero não me arrepender disso. A história vai avançar lentamente, já aviso, porque sofro da síndrome da revisão eterna, mas quem sabe postando aqui eu me anime a não mudar (tanto) as coisas. Comentários, críticas, sugestões, tudo é bem vindo.



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