Gyles Tyrell: O Espinho Sangrento

Gyles mancou o mais rápido que pode para longe de seu adversário.

“É isso que ganho por ser educado?” perguntou-se com amargura “Maldito seja!”

A lembrança das preferências de Loras ainda era uma mancha escura e amarga sobre a honra de Highgarden. Um sorriso irônico tomou conta de sua face. De fato não sabia ao certo porque tinha se sentido insultado, o Cavaleiro das Flores havia sido um grande guerreiro, apesar de ser uma flor em todos os sentidos, mas Gyles não tinha nenhum amor por homens. Apenas o irritava lembrar-se de que...

– Então a cria dos Regicidas te deixou mesmo mancando, Erva Daninha? – ressoou uma voz zombeteira interrompendo seus pensamentos – Se soubesse que você iria humilhar-nos nesse maldito Torneio não permitiria que participasse. Já temos um aleijado na família, não precisamos de outro.

A fúria o inundou e Gyles teve que se controlar para não se voltar e esmurrar a face desprezível do irmão gêmeo. Apesar de terem vindo ao mundo juntos, Gyles e Gerold Tyrell eram tão diferentes como o sol era da lua. O primeiro era extremamente robusto, carregava traços típicos de um Tyrell. Cabelos meio lisos meio ondulados que descem até a altura dos ombros. Sobrancelhas normais na mesma tonalidade dos cabelos, que seguiam um castanho profundo herdados de seu pai, olhos na coloração castanho-escura, nariz longilíneo e grosseiro, de narinas elípticas espaçosas. Um cavanhaque de bigodes pontudos crescendo em sua face, assim como uma barba rala de cor aloirada e arruivada.

O segundo entretanto era fisicamente mais baixo e mais fraco que Gyles. Com cabelos de um castanho bem claro e seus olhos castanho mel, quase dourados. Usava atualmente os cabelos bem curtos, apesar de estes já terem sido mais longos que os do irmão. Tinha preferências por roupas finas e era sempre educado.

"Nunca na minha presença." pensou com ressentimento.

Gyles sabia que Gerold era na verdade arrogante e esnobe. Mas ainda assim sentia falta da amizade do irmão, que havia sido perdida anos atrás.

– O senhor seu pai se magoaria muito se o ouvisse falando assim, Gerold! – disse uma voz calma e melodiosa.

Gyles não precisava olhar para saber a quem pertencia, só essa voz em toda Westeros tinha o dom de acalmar seu forte temperamento. Voltou-se devagar, atrás de si estavam Alek Florent e Gerold, este de braços dados com a irmã de Alek, Rose Florent. Esta tinha cabelos ondulados e castanhos mel com olhos da mesma cor, sua face era agradável e bela, como toda lady deveria ser, era também a única garota que Gyles havia amado desde seus 15 anos. E fora justamente por conhecer esse amor que Gerold fizera tanta questão de casar com a moça.

– O senhor meu pai não está ao alcance de minha voz, Rose. – retrucou Gerold – E eu não disse nada mais que a verdade, não precisamos de outro aleijado na família.

– Eu não estou aleijado, Apreciador de Espadas. – disse Gyles com a voz calma e desprovida de sarcasmo ou raiva. – Apenas tive alguns arranhões na justa.

– Já foi ver um Meistre? – perguntou Rose com preocupação.

Mesmo sabendo que ela se importava apenas por considerá-lo um amigo, e nada mais, Gyles sentiu o coração acelerar ao ouví-la. Entretanto apenas assentiu bruscamente.

– Não foi nada demais.

Gerold franziu o cenho não gostando da atenção que o irmão recebia de sua noiva. Gyles sabia que isso não era por ele se importar com ela, ou por sentir ciúmes. Era apenas por desejar o sofrimento do gêmeo.

"E sempre o será. E pensar que houve um tempo que ele esfolaria qualquer um que pensasse em me fazer sofrer.” pensou com um sentimento que não saberia distinguir se seria raiva ou saudades.

Desde os 16 anos Gerold tornara-se frio e distante, mas a verdadeira mudança ocorrera havia um ano. Por algum motivo desconhecido, o gêmeo ficou enfurecido ainda mais com Gyles e toda palavra que saía da boca de Gerold era um insulto ou uma ameaça. Foi pouco depois disso que o noivado com Rose foi firmado.

– Rose querida, por que não procura minha irmã Lily? Tenho certeza que ela aproveitará mais sua companhia. – sugeriu Gerold com educação.

– Como o senhor meu noivo desejar. – respondeu ela com polidez – Acompanha-me meu irmão? – acrescentou para Alek.

Este apenas assentiu e lhe ofereceu o braço, o qual ela prontamente aceitou. Acenou então em despedida para cada um dos cavaleiros e se afastou. Assim que estava longe do alcance de suas vozes Gerold tornou a falar.

– Me diga, Rosa Negra, como se sente sendo derrotado por um cavaleiro três anos mais novo, um rapaz verde de verão? – provocou.

– Não fui derrotado, eu e o Leão de Tarth ferimo-nos mutuamente até nossos braços não poderem segurar uma espada. Não houve vencedor, todos os juízes concordam. Inclusive a rainha!

– O Leão de Tarth é um menino de 16 anos. Se não pode derrotar uma criança como superará lendas como Barristan Selmy, Brienne de Tarth ou mesmo Robb Stark?

Gyles estava perdendo a pouca paciência que já não tinha quando tratava-se do irmão. Mas Gerold não parecia nada disposto a recuar.

– Talvez o amor de uma mulher o desse maior incentivo, irmão. Soube que tem frequentado algumas casas de mulheres, mas garanto que nenhuma daquelas se compara ao calor de uma lady bem nascida. Essas são as melhores, tímidas – disse ele sorrindo com malicia – Às vezes um pouco desafiadoras, mas quando finalmente se entregam... Ahrr! – ele soltou uma exclamação de prazer – São muito melhores que qualquer outro tipo de mulher... Rose seria um bom exemplo... - Ele terminou a oração erguendo provocantemente uma de suas sobrancelhas.

As palavras de Gerold despertaram a fúria adormecida de Gyles. Este imediatamente sacou a espada. Os ferimentos na perna estavam esquecidos, Gerold mal teve tempo de desembainhar seu próprio aço antes que fosse atacado pelo o irmão.

– Não falará desse modo desonroso da senhora sua noiva! Não na minha frente! – vociferou quando as espadas de chocaram – Não o fará!

– O modo como falo da minha noiva, nossa relação, como trato-a na cama e todo o resto não lhe interessam, irmão! – rosnou Gerold revidando.

Gyles não achou que fosse possível, mas sua ira triplicou. As espadas se chocaram no ar outra vez, aço beijou aço. Gyles atacou pela direita e esquerda quantas vezes pode, sempre fora melhor que Gerold na esgrima e a ira o incentivava a prosseguir. Porém aos poucos perdia velocidade e o ferimento em sua perna doía violentamente. Aproveitando-se dessa fraqueza, Gerold deu uma rápida rasteira em Gyles, fazendo com que este caísse sobre a própria perna. O sangue fluiu novamente pelo ferimento do gêmeo, mas Gerold não se importou.

A perna de Gyles doía absurdamente, porém o quê mais o machucava agora era a humilhação. Gerold sorriu com satisfação e deu um passo em direção ao gêmeo caído.

– Rende-se?

É claro. Não bastaria derrotá-lo, teria que fazê-lo admitir a própria derrota.

– Nunca! – vociferou Gyles.

Gerold então colocou a ponta de sua espada na garganta do irmão. Não feriu-o, apenas encostou o aço em seu pescoço em uma clara ameaça;

– Rende-se? – perguntou outra vez.

Mas não havia um sinal de desistência no olhar castanho escuro de Gyles. Não havia uma brecha em sua determinação.

– Não.

Gerold então pisou na perna do irmão, próximo ao ferimento causado pelo Leão de Tarth. Sangue fluiu em abundância, maculando as vestes de Gyles, o qual cerrou os lábios se recusando a gritar. Sua face enrubesceu furiosa e seus dentes cerravam-se forçosos, pensou que poderiam trincar a qualquer momento.

– Rende-se?

– Não o farei!

– Com licença – soou uma voz melodiosa e quase infantil.

À poucos metros deles havia uma garota. Ela não devia ter mais que doze anos, pela estrutura de seu corpo que parecia tão frágil quanto qualquer rosa de Highgarden. Possuía cabelos longos num tom castanho, que variava para um loiro ou mesmo vermelho e olhos castanhos claros. Ela usava roupas estranhas, uma calça de montaria masculina e camiseta de pele de cervo, levava também uma pequena pedra translúcida em um cordão pendurado ao pescoço e uma espada imponente atada à cintura.

– Eu procuro por Brandon Stark... – começou ela.

– Você o está vendo aqui?! – rosnou Gerold – Siga o seu caminho camponesa, não há nada de seu interesse por aqui.

Ela franziu o cenho confusa, como se não entendesse a hostilidade, seus olhos amendoados se dirigiram para o sangue que maculava a calça Gyles numa mancha escarlate na altura da perna.

– Por quê está fazendo isso? – perguntou – Está machucando-o!

– Não é da sua conta, plebéia. – vociferou Gerold com o dobro de grosseria – Desapareça daqui! É uma ordem!

– Brynden nunca me deu ordens, nem Folha, nem Mãos Frias. Eu sempre faço o que quero. – não havia insolência ou desafio em seu tom, apenas informava um fato com toda a inocência de uma criança. Ela se voltou para Gerold. – Se não parar ele pode desmaiar devido à hemorragia. E se não estancarmos o ferimento isso pode trazer consequências mais graves como...

Aproveitando-se da distração do irmão, Gyles conseguiu empurrá-lo e se por de pé novamente. A luta recomeçou, os irmãos ignoraram os gritos e reclamações da estranha e continuaram com os movimentos cada vez mais perigosos e violentos. A força de Gerold parecia estar diminuindo, até que o mais velho caiu e Gyles encostou a ponta da espada na garganta do gêmeo.

– Rende-se? – perguntou ofegante.

– Gyles?!

O cavaleiro olhou para cima, à poucos metros estavam Alek e Rose Florent, acompanhados pela irmã mais nova, Lily Tyrell. Ambas as garotas pareciam horrorizadas.

– O que está fazendo?! – perguntou Rose correndo em direção de Gerold – Afaste essa espada, Sor! É uma coisa vil e maldita, aos olhos dos deuses e dos homens, levantar aço contra o próprio irmão!

Gyles embainhou a espada tentando entender o quê acontecera. Mas ao vislumbrar a expressão do gêmeo a compreensão lhe veio de imediato. Ele provavelmente vira os Florent e Lily se aproximarem, perdera de propósito para colocar Gyles em uma situação difícil com Rose.

– Oh, meu pobre noivo... – disse a Florent passando as mãos pelo rosto de Gerold – Está muito ferido? Venha, eu o ajudo a se por de pé. O quê diremos ao senhor seu pai?

Gerold se levantou, ele possuía alguns arranhões mas nenhum ferimento grave, a perna de Gyles por outro lado sangrava vertiginosamente, maculando ainda mais suas vestes, porém Rose parecia cega ante tal fato.

– Francamente, Sor! – disse ela se voltando para ele – Eu esperava mais de você, Gyles, atacando seu irmão como uma criança mimada!

– Rose, não foi assim...

– Não quero ouvir suas desculpas! – disse ela com firmeza – Só dirija a palavra à mim novamente quando tiver se desculpado com seu irmão. – ela pegou o braço de Gerold e acrescentou sorrindo para ele – Venha, senhor meu noivo, vamos assistir ao final das justas.

Eles se distanciaram, quando estavam a uma boa distancia Gerold virou a cabeça e lhe concedeu um sorriso de escárnio. Gyles poderia matá-lo por aquele sorriso.

A estranha menina, que assistira a tudo, se aproximou com calma. Gyles notou pela primeira vez uma bolsa de couro que ela trazia. Ela agachou-se e, antes que Gyles pudesse fazer qualquer coisa para impedí-la, rasgou a calça do jovem, na altura do ferimento. Da bolsa ela retirou algumas ervas e as colocou sobre o ferimento que quase instantaneamente parou de sangrar. Ele observou admirado enquanto a garota trabalhava com rapidez enfaixando, com trapos da própria calça rasgada, o ferimento.

"Ótimo, agora hão de chamar-me esfarrapado também!" Pensou com ironia, mas não era culpa da jovem.

Assim que ela acabou ele se levantou. A perna ainda doía, mas bem menos que antes.

– Tem minha eterna gratidão, milady. – disse com um cumprimento.

– Não foi nada. – sorriu ela com calma.

– Posso saber o seu nome?

– Melony.

Ele encarou-a por alguns instantes a mais, como se esperasse que ela terminasse a apresentação, mas o 'término' não veio.

– Melony de quê? - Indagou ele.

– Apenas Melony, deveria ter algo mais?

– As pessoas costumam ter dois nomes por aqui, Lady Melony. Como eu, tenho a honra de ser Sor Gyles Tyrell de Highgarden.

– São muitos nomes, mais do que dois. – disse ela com o cenho franzido.

Gyles riu. A garota era o cúmulo da inocência. De onde será que havia vindo?

– Disse que procurava Lord Brandon Stark? – perguntou – Ele, a esposa e o filho vieram para o Torneio. Provavelmente está assistindo a Final das Justas. Eu a acompanho até lá. Se for de sua vontade.

– É muito gentil de sua parte – sorriu ela.

Gyles lhe ofereceu o braço, mas a menina apenas franziu o cenho, como se não entendesse o quê ele queria em resposta. Ela era realmente inocente. Ele lhe tomou as minúsculas mãos entre as suas enormes e lhe mostrou como deveria segurar seu braço. Melony aceitou a ajuda sem reclamar e juntos eles seguiram para a Final das Justas, que já devia ter iniciado.

Porém o quê lá encontrou não foram dois cavaleiros disputando, mas sim uma multidão correndo desesperada de um monstro como Gyles nunca vira igual, ou sequer algo que se assemelhasse. Ele estava prestes a pegar sua espada quando escutou a voz infantil de Melony sussurrar num tom mudo e quase inaudível. Um frio percorreu sua espinha como um raio de gelo. Engoliu o seco e sentiu uma gota de suor percorrer por sua testa. Melony, estática e trêmula, repetiu com a voz ainda mais baixa e temerosa.

– Ele já está aqui.