Mithra - Em Busca do Sonho escrita por Camille M P Machado


Capítulo 8
Pink


Notas iniciais do capítulo

Queria ter postado esse capítulo no dia 1º, mas alguns imprevistos aconteceram e eu não consegui terminar a tempo >.< mas aqui está.



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Quando ele acordou, já era manhã novamente. A árvore de Flora se retorcera toda ao redor dele, criando uma espécie de tenda com uma sombra fresca e suculentas frutas no teto esperando para serem comidas por ele. A tenda fora criada sob medida, ele podia ficar em pé em seu interior e não precisava esticar muito as mãos para alcançar as frutas. Apesar de estar bem quente do lado de fora, a areia de dentro da tenda estava morna como tudo lá dentro, uma temperatura constante e agradável.

Ele se levantou e pegou algumas frutas, depois se sentou novamente no centro da tenda, de frente para a porta. As frutas tinham um aroma levemente adocicado e um gosto extraordinário, apesar dele nunca ter visto aquelas frutas antes, em seu mundo não há árvores, há apenas o deserto e o desespero para viver. Foram cinco das estranhas e deliciosas frutas verdinhas para que ele se sentisse saciado.

Após devorar a fruta, ele abriu o mapa daquele mundo clicando na joia de sua pulseira. Ao lado do mapa, em um pequeno canto, estava a hora de Mithra e o dia, contado desde o começo da competição.

– Décimo dia. – leu ele – Estou dormindo há um dia e meio.

Sua luta com Flora terminara no entardecer do oitavo dia, ele dormira por bastante tempo. Todo aquele tempo dormindo significava que ele havia ultrapassado seu limite, o que era muito perigoso, pois esteve completamente vulnerável enquanto dormia, qualquer um poderia atacá-lo e ele não teria como se defender.

– Hora de levantar acampamento. – pensou alto.

Com uma de suas desert eagle, ele cortou várias tiras da árvore de Flora e as trançou para criar uma pequena bolsa, onde ele colocou as cinco frutas restantes. Quando ele deu dois passos para fora da tenda, esta imediatamente secou. O vívido verde da planta se transformou em um marrom morto e as flores murcharam enquanto toda a estrutura da planta entrava em colapso, desaparecendo aos poucos e de cima para baixo até restar apenas três sementes no chão.

Ele pegou as sementes e, antes de guardá-las, conferiu se sua bolsa não havia secado também. Estranhamente, a bolsa continuava intacta, o verde das tranças continuava vívido e forte. Após conferir, ele colocou as sementes dentro da bolsa e voltou a caminhar em direção a sudoeste.

A caminhada fora longa e desgastante, ele caminhou por dois dias debaixo do sol escaldante do deserto, onde não havia água ou comida direito. Caçava pequenos répteis que encontrava pelo caminho ao dia e dormia a noite, cactos também estavam em sua lista de caça. Ele retirava a água dos cactos e a bebia, além de guardar o resto da planta para improvisar uma fogueira.

A noite no deserto é muito fria enquanto o dia era muito quente, em seu mundo era comum as pessoas adoecerem por causa dessa variação constante, então o melhor era tentar se aquecer durante as noites. Ele retirou tudo o que tinha dentro da bolsa feita por tiras da árvore de Flora, era a única coisa que lhe restara, e colocou fogo para aquecê-lo.

As três sementes que Flora lhe dera ele guardou em um pequeno estojo em sua cintura, enquanto que a estranha iguana de seis patas foi frita na fogueira. Sua última comida e a última coisa mais próximo de madeira que ele tinha, ambos foram usados, estava sem suplementos e isso o incomodava. Tudo o que tinha agora era suas duas armas e três sementes de uma planta que ele não sabia nem para o que poderia usá-las, além do anel.

Pensar em tudo isso era desanimador, então ele se concentrou apenas em comer e depois deitar na areia gelada, fechou os olhos e só pensou em dormir. Estava quase conseguindo quando percebeu um movimentar estranho debaixo dele e acordou, levantou em um pulo brusco que o deixou por alguns segundos desnorteado e sem equilíbrio. Quando se recobrou da tontura, ele olhou novamente para o chão e se deparou, atônito, com a situação mais estranha que já vivera.

Toda a área em um raio de dois quilômetros estava cedendo, a areia escorria para baixo, em algum lugar, enquanto um grande monumento se levantava de um mar de areia. Era um monumento grande e feito de grandes blocos de alguma pedra de cor branca, havia pilares esculpidos em cristais de cor anil por toda a área externa e um chão de mármore. Nas duas torres, que foram construídas uma de cada lado, havia outra enorme estátua esculpida em pedra de cor anil, era uma para cada torre.

Enquanto a areia escorria e revelava o monumento, era difícil se manter em pé por muito tempo, a queda constante parecia inevitável. Ele tentou usar o anel para levitar e fugir daquele solo instável, mas isso se mostrou impossível devido à fraqueza gerada pela má alimentação. O jeito foi se segurar em um dos pilares enquanto a areia escorria e esperar, o que não demorou muito. Todo aquele volume de areia escorreu como água escorrendo pelo ralo até sobrar apenas a construção erguida no meio do deserto, ele pôde, então, finalmente soltar o pilar e andar.

Ele andava enquanto observava melhor aquele lugar, parecia um templo dedicado a algum tipo de divindade de várias formas, pois todos aqueles pilares do lado de fora tinha a forma de uma única mulher. Eram esculturas bonitas, apesar de tudo, o estranho cristal de cor anil resplandecia em tons azuis na presença de luz, os detalhes do rosto e de todo o corpo das esculturas eram também perfeitos e tinham como base uma mulher humana.

Pink observou que todas as esculturas tinham seus rostos virados para o lado de fora, mas cada uma se expressava de uma maneira única, além de ter também uma forma única. Havia uma de olhos fixos no horizonte e segurando um livro em seus braços; outra parecia destemida, empunhava um sabre, usava uma armadura pesada e parecia expressar um grito de guerra; havia uma terceira que representava uma simples mulher humana, sem nada de especial a não ser o aquele olhar caloroso em direção a qualquer um que vinha visitar o templo. Uma mãe, uma guerreira, sábia, líder, amiga, guardiã... A mesma divindade representada sob diversos aspectos, era o que cada pilar daqueles representava. Mas o que mais lhe chamou atenção não era um pilar que sustentava o segundo andar do templo, era a escultura que estava no interior do primeiro salão daquele lugar, de frente para a porta.

O salão estava bem iluminado, havia tochas por todas as paredes. Encostada na parede paralela a porta estava a escultura que chamara sua atenção, ela era menor do que os pilares do lado de fora e estava cercada de outras esculturas. Localizada no centro daquela parede, a mulher, que mais parecia uma menina, tinha três pares de asas e uma cauda. As asas estavam semiabertas, os braços estavam esticados ao lado de seu pequeno corpo com os punhos cerrados e o olhar... Aquele olhar...

Ele não entendia direito, mas o olhar daquela estátua o incomodava, deixava-o atordoado. A menina da estátua fitava o chão com os olhos cheios d’água e lágrimas escorrendo por suas bochechas enquanto as outras estátuas do salão lhes davam as costas e iam embora. A arte daquela escultura era tão perfeita que conseguia transmitir as emoções da menina através de seus olhos, eles expressavam a tamanha tristeza e solidão que ela sentira que o fizeram lembrar o dia em que todos viraram as costas para ele também, o dia que ele preferiu apagar de sua memória por todo esse tempo.

Em um acesso de raiva, ele socou uma das estátuas, também de cristal, que estava de costas para a menina. A estátua se quebrou em milhares de pedaços onde ele socou e o cortou como uma lâmina afiada. A mão dele rapidamente se encharcou de sangue, mas ele não sentia nenhuma dor, o furor daquele momento era grande demais para lhe permitir sentir dor.

Somente após aquele soco é que ele reparou nos detalhes daquelas estátuas, elas tinham uma forma que lembravam vagamente um humano, mas com algumas peculiaridades. Eles possuíam uma espécie de escama em várias áreas do corpo, como nas pernas que cobriam tudo até poucos centímetros acima dos joelhos; todo o antebraço e em um pequeno pedaço do braço, cerca de até dois centímetros acima dos cotovelos; a testa e o nariz; e o que seria as partes íntimas em humanos, assemelhando a vestes íntimas como cuecas para os homens e calcinhas e sutiãs para as mulheres.

Eles ainda possuíam garras afiadas nos cinco dedos dos pés e das mãos e uma cauda reptiliana com as mesmas escamas que o resto do corpo e uma estrutura bem peculiar na ponta. Era uma estrutura geométrica que se assemelhava a um losango, não possuía escamas, mas era afiadíssimo, mesmo esculpido naquele cristal. Eram todos magros, com barrigas saradas. Os machos possuíam músculos definidos e braços trabalhados, enquanto todas as fêmeas possuíam cinturas finas, quadris largos e seios salientes a fartos. Todas as esculturas pareciam uma mistura de versões perfeitas de humanos e répteis.

– Que pessoas estranhas... – pensou alto.

Ele passou por entre as esculturas para observá-las mais de perto, algumas tinham olhos mais intensos, outras pareciam mais altas e todas tinham um rosto único, ou seja, pessoas diferentes. Ele ainda passou o indicador pela estrutura na extremidade da cauda deles, o cristal havia sido perfeitamente lapidado e polido de modo que as arestas do losango, a estrutura maciça na cauda, eram cortantes.

– Interessante... – disse enquanto limpava o sangue em seu dedo na roupa – Preciso me lembrar de tomar cuidado com essa coisa se um dia encontrar essas criaturas.

Um barulho vindo de algum lugar mais a fundo daquele lugar cortara os devaneios dele, o barulho era alto e ecoava por todos os cantos, parecia o ronronar de alguma criatura. Apesar de seus instintos lhe dizerem para ir embora daquele lugar, alguma coisa o atraía e o instigava a continuar entrando cada vez mais fundo no santuário, seja por causa de sua curiosidade ou por causa da estranha sensação que sentia e que fazia todos os pelos de seu corpo se eriçar.

Ele prosseguiu pela única porta que havia naquele salão, na mesma parede da estátua da menina, porém no canto direito desta. O salão seguinte era maior e mais bem iluminado, além das tochas nas paredes, havia um grande candelabro com inúmeras velas exatamente no meio do cômodo. Por um momento, ele se perguntou como aquelas velas não derreteram ou se havia alguém lá dentro além dele que teria as ascendido, pois não pareciam que elas estavam acesas por muito tempo, a cera continuava intacta.

Entretanto, ele não deu muita importância às velas, havia algo naquelas paredes que chamou mais sua atenção. Todas tinham estranhas gravuras vermelhas que cobriam uma faixa central de trinta centímetros das paredes, embaixo e acima havia uma mistura de estranhas e antigas inscrições com outras mais recentes que pareciam avisos, tudo em vermelho. Pequenas runas talhadas na pedra branca das paredes separavam a faixa de gravuras das inscrições.

Ele se aproximou de uma das paredes e a tocou, a pedra branca estava fria como a noite em um deserto, porém a faixa com as imagens e a área delimitada pelas runas estavam quentes, podia sentir o calor da parede aquecendo todo seu corpo. As runas eram indecifráveis para ele, apesar de conhecer algumas delas, mas as imagens pareciam contar a história de uma mulher que fora abandonada por seus seguidores.

Depois de analisar as imagens, ele se afastou da parede para analisar as inscrições. Em geral, todas diziam a mesma coisa, a diferença estava na antiguidade de cada uma, algumas eram mais novas e com cores mais fortes enquanto outras eram mais velhas e desbotadas. Elas avisavam sobre a existência de algum tipo de perigo no último andar e aconselhavam e ninguém ir até lá, porém qualquer viajante poderia usufruir dos dormitórios para descansar, refeitório para matar a fome e de um relaxante banho em um lago de água quente no segundo piso do subsolo.

Olhando com mais atenção todo o salão, ele reparou que havia um arco a sua direita que o levava a um corredor estreito e pouco iluminado. O arco era feito com acabamentos de cristais de cor anil, iguais aos que ele encontrara no salão anterior e do lado de fora daquele lugar, e deveria ter cerca de trinta centímetros de largura, a mesma largura do corredor. A luz das velas que incidiam sobre o cristal fazia-o tremeluzir, iluminando alguns centímetros a sua volta com uma tênue luz azul.

Ele prosseguiu pelo corredor escuro, era possível ver apenas dois archotes presos na parede a sua direita, de frente para outros dois arcos, estes eram mais largos que o primeiro e possuem o mesmo design. Os arcos levavam a um salão grande, porém não tão grande quanto o com as runas e pinturas, e totalmente escuro. Ele prosseguiu até o fim do corredor onde encontrou uma estreita escada feita de pedra que o levava para o andar debaixo, o primeiro andar do subterrâneo.

O corredor do primeiro andar do subterrâneo era um pouco mais largo do que o de cima e mais iluminado, havia oito archotes no total, que estavam distribuídos igualmente para ambos os lados. Enquanto andava pelo corredor, ele reparou que naquele andar havia somente dormitórios, eram dez ao todo, todos tinham o mesmo tamanho, as mesmas mobílias e suas portas estavam exatamente no centro do quarto, de modo que cada porta ficava de frente para a do quarto à frente. Ele entrou no terceiro quarto a sua direita.

A esquerda havia uma escrivaninha encostada na parede do outro lado do quarto, uma estante ao lado da escrivaninha, e um archote ao lado da porta; a direita havia uma cama de solteiro, um pequeno baú para por pertences encostado na cama, outro archote ao lado da porta, e um mapa pregado na parede ao lado do baú. Entre a escrivaninha e a cama havia um terceiro archote, de frente para a porta.

O mapa o que lhe chamou mais atenção, mas antes de pegá-lo, ele colocou suas duas armas e o estojo que carregava na cintura em cima da escrivaninha, e então retirou o pequeno mapa desenhado em um antigo pergaminho da parede e o analisou sentado na cama. Apesar da pouca iluminação, ele percebeu que aquele mapa referia-se somente ao andar que estava, o dos dormitórios, e que havia uma escada para o andar inferior no final do corredor.

Mapas seriam úteis para se locomover, mas aquele não lhe era de grande utilidade, ele apenas lhe informava o que ele já tinha visto, um corredor pequeno com cinco minúsculos quartos de cada lado, nada mais. Um mapa dos outros andares talvez fosse mais útil. Ele limitou-se a colocá-lo de lado e deitar na confortável cama, enquanto fitava o teto.

Ele acordou assustado, em um pulo, quando um pouco de terra caíra em sua cara, mas não fazia ideia de quando havia pegado no sono ou por quanto tempo estivera dormindo. Ele sentou na cama, com os pés encostados no chão, ainda sonolento e um pouco desnorteado, podia ouvir o tilintar de algum metal pesado arrastando no chão de pedra do andar superior, terra desprendia do teto enquanto este vibrava com os passos de alguma coisa pesada.

Cambaleou até a escrivaninha, pegou o estojo e o prendeu em sua cintura novamente. O tilintar o perturbava e parecia deixá-lo tonto, ele perdeu o equilíbrio e quase caiu no chão quando deu o primeiro passo em direção à porta do quarto, por sorte a cama estava perto e ele pôde se apoiar nela.

A quase queda o fez reparar no mapa pela primeira vez após acordado, ele estava diferente e não mais mostrava o andar dos dormitórios. Quando Pink o pegou e o analisou com calma enquanto estava sentado na cama esperando a tontura passar, ele percebeu que o mapa agora lhe mostrava o superior, o térreo. Porém, ainda lhe parecia haver algo estranho, pois estavam traçados mais cômodos do que ele se lembrara de ter visto, havia uma porta para uma saleta no meio dos dois archotes da parede de frente para os dois arcos do refeitório.

– Interessante – pensou alto.

Quando já estava se sentido melhor, ele se levantou e caminhou até o andar de cima. Apesar de continuar indicando uma saleta no mapa, ele não via porta alguma, via apenas uma parede de pedra e os archotes. Entretanto, do outro lado, no refeitório, as luzes estavam acesas.

Ao passar por um dos arcos, ele encontrou cinco longas mesas postas com fartura, havia uma quantidade enorme de variedade de comidas, algumas ele nunca tinha visto na vida. Uma tentação de sentar e comer subia por todo seu corpo, ele não estava com fome, mas podia ver-se em sua mente se sentando em alguma cadeira de pedra e comendo toda aquela comida repetidamente. Sentia seu corpo responder àquelas imagens e andar em direção à mesa, mesmo contra sua vontade.

Talvez tivesse feito como via em sua cabeça se o tilintar não tivesse ressurgido e o acordado de seu transe. Havia algo de estranho naquele estranho barulho, ele sabia disso, pois sempre que o escutava ficava tonto e perdia o equilíbrio. Desta vez ele se apoiou na mesa, derrubando alguns dos objetos que ali estavam, ele levou a mão direita à cabeça e a apertou.

A dor era lancinante e imobilizava-o, por alguns minutos ele só conseguiu ficar ali, parado, apertando a cabeça e se segurando na mesa enquanto seu rosto se transfigurava. Ele viu um jovem cavaleiro com uma armadura bem polida cruzar o arco e entrar no refeitório, o rapaz andava em sua direção como se não o estivesse vendo. Por um momento, Pink pensou que ele iria colidir consigo e teria o xingado se a dor tivesse lhe permitido, entretanto, para sua surpresa, o homem apenas o atravessou e sentou a mesa.

Outros vieram depois do cavaleiro, alguns eram altos e esguios, outros eram baixos e gordos, não havia exatamente um padrão para a aparência dos viajantes. Assim como o primeiro, todos sentaram a mesa e começaram a comer o banquete, eles falavam uns com os outros com a boca e as mãos cheias de comida. Todos o ignoravam e atravessam-no quando queriam passar por ele, também ocupavam todas as cadeiras ao redor das mesas, exceto a de frente para o local onde se apoiava na mesa. Ele levou algum tempo até conseguir entender que aquelas pessoas eram fantasmas, provavelmente espíritos que ficaram presos ali.

Ele se levantou quando o ruído de metal sumiu e pôde finalmente olhar com mais atenção para aquele recinto. Diferente do que viu nos corredores, os archotes do refeitório não estavam pregados em paredes, mas sim em estátuas de cristal. Havia seis estátuas, da mesma menina que vira antes, segurando um archote, elas estavam distribuídas igualmente em duas paredes paralelas. No centro, havia um candelabro um pouco menor do que o do salão de história e no fundo havia um grande balcão, atrás dele ficava a cozinha.

Enquanto andava entre as mesas, Pink ouviu uma conversa que lhe chamou a atenção.

– Você vai tentar de novo? – perguntou um dos fantasmas, este parecia estar ali apenas para aproveitar o banquete, pois tinha uma aparência desleixada com os cabelos loiros desgrenhados e a barba mal feita, além de estar acima do peso.

– Vou – respondeu o primeiro cavaleiro que passou por ele.

O que estava sentado ao lado dele gargalhou ao ouvir a resposta do rapaz. Ele era ruivo e parecia ser bem extrovertido e brincalhão, estava sempre rindo.

– Não sei por que você continua insistindo nisso. É perda de tempo, garoto.

– Deveria ouvir as sábias palavras do nosso piadista, Ronan.

Ronan ignorou os comentários dos dois e continuou comendo.

– Já foram quantas tentativas? – perguntou o piadista.

– Quatrocentas... Mil.

O piadista gargalhou ainda mais alto do que na primeira vez.

– Isso quer dizer que você já está aqui há mais de cem anos. Depois de tanto tempo deveria parar de tentar, você não conseguirá vencê-lo assim como nenhum de nós conseguiu.

– Eu não vou passar o resto dos meus dias trancado neste lugar – berrou o garoto, batendo com as mãos na mesa. Por alguns instantes, todas as pessoas ali presentes pararam de conversar e comer para olhá-lo. Ronan era, talvez, o mais novo entre todos os fantasmas e o único que parecia ainda ter esperanças de sair.

Ao perceber que todos haviam parado suas ações para olhá-lo, ele apenas se retirou em silêncio.

– Você está morto, Ronan, morreu como todos nós. Não há mais nada que possa fazer – bradou o piadista, após se levantar, para o rapaz. Ele segurava uma coxa de galinha na mão enquanto a mexia no ar ao gesticular.

Ronan não disse nada em resposta, limitou-se apenas a sair do refeitório com os punhos e os dentes cerrados, uma ira crescia dentro dele. Pink o seguiu até o corredor, onde ele parou por uns instantes, estava apoiado com as costas na parede tentando se acalmar. Lágrimas escorriam pela face lisa do rapaz, que não deveria ter mais do que quinze anos.

– Tão jovem... E já está morto... – pensou alto.

Ele respirou fundo, enxugou-as e prosseguiu com o que iria fazer. Ao soprar o fogo de um dos archotes, uma porta se abriu para a mesma saleta que Pink vira em seu pai e, então Ronan atravessou a porta. Pink seguiu o rapaz e entrou naquele minúsculo cômodo antes de ver a porta se fechar.

Como mostrava no mapa, o lugar era pequeno e apertado, havia algumas coisas pregadas na parede, um archote e uma escada para o andar debaixo ao final do corredor. O chão era de terra enquanto que as paredes continuavam de pedra, talvez aquele seja um cômodo inacabado ou, talvez, houvesse falta de interesse em recobrir a terra com alguma coisa, seja qual for o motivo, não havia necessidade de pensar na possibilidade.

Em um acesso de raiva, Ronan socou a parede com força enquanto mais lágrimas escorriam pelo rosto e revelavam, pela primeira vez, o quanto ele era apenas uma criança. Aquela cena fazia Pink lembrar-se de si quando era jovem, nunca tivera amigos tampouco uma família, desde que pudesse lembrar ele estava sempre sozinho.

O momento de melancolia dos dois foi interrompido pelo mesmo tilintar de antes, porém desta vez estava mais agudo e irritante. O efeito sobre Pink foi mais rápido e doloroso do que os anteriores, sua visão ficou turva, a cabeça começou a doer e rodar, acarretando em desequilíbrio e, consequentemente, em sua queda no chão. A pouca luminosidade também não colaborava, ele não conseguia enxergar detalhes, apenas vultos.

– O terceiro soar, está na hora – disse Ronan, sério, então enxugou as lágrimas e caminhou decidido até o final da estreita sala, onde estava uma escada para o andar debaixo.

Pink tentou se levantar do chão, contudo suas pernas e braços fraquejaram e o máximo que ele conseguiu foi esticar os braços sem que estes saíssem do chão, algumas gotas de sangue escorreram de seu nariz e pingaram na terra. Ele as enxugou com o braço, respirou fundo e levantou, dessa vez com sucesso, mas ainda estava fraco e não conseguia enxergar direito, necessitando se apoiar na parede.

Cambaleando, ele seguiu Ronan para o piso inferior, que era ainda mais escuro e estreito, e deveria ficar abaixo do lago do segundo andar do subsolo, pois era muito úmido e gotas de água caiam do teto. A dor de cabeça desapareceu junto com o tilintar, mas sua visão continuou prejudicada de modo que ele foi forçado a prosseguir com uma mão apoiada na parede enquanto corria atrás do garoto pela galeria de túneis, que mais parecia um labirinto para ele.

Durante a corrida, Pink tropeçou algumas vezes em ossos espalhados pelo chão e em algumas teias de aranhas bem grossas que havia pelo caminho. Diferente dele, Ronan parecia saber onde estava cada obstáculo, pois o rapaz corria como se não houvesse nada pelo caminho, não caía como ele caiu algumas vezes, tampouco ficava preso em teias gigantes como ele. Além disso, ele também parecia saber exatamente para onde estava indo, virava em túneis após túneis sem hesitar ou mesmo ponderar qual era o melhor para seguir.

Não demoraram muito para chegar a uma sala grande e vazia, as paredes eram irregulares e o chão era de terra. A aquela altura, sua visão já havia melhorado de modo que viu, no fundo da sala, um cristal de coloração azul encrustado na parede, ele resplandecia e iluminava todo o lugar, sem a necessidade de usar tochas como auxílio; e de frente para o cristal, estava uma enorme besta guardando-o.

Quando a presença dos dois foi percebida, a besta, cuja aparência era de um réptil gigante, virou-se para eles e rugiu, revelando suas enormes presas. A caverna sacudiu, blocos de terra se desprenderam do teto e caiu em cima deles enquanto se formava uma nuvem de poeira por todo o lugar, obrigando Pink a tampar os ouvidos com as mãos e fechar os olhos. Diferente dele, Renan apenas ficou parado encarando a criatura, todo aquele pó não o incomodava, afinal ele era apenas um fantasma.

À medida que a visibilidade aumentou, o demônio pôde ver melhor a criatura a sua frente e descobriu que ela não tinha uma pele negra como pensara a princípio, eram minúsculas escamas aderidas ao couro, além de segurar uma clava de metal maior que o próprio corpo.

Com uma espada em mãos, Ronan atacou o monstro que nada fez para se defender, o aço de sua lâmina atingiu a escama do bicho, mas conseguiu nem arranhá-lo. Ele continuou tentando e tentando enquanto seu oponente mal se movia para se proteger ou mesmo atacar.

Somente após o ataque que fez uma das escamas trincar que a besta reagiu às investidas do garoto, ela rugiu pela segunda vez, ainda mais alto do que a primeira, e atacou o garoto com sua maça, acertando-o no abdômen. Ronan voou alguns metros e bateu de costas na parede rochosa da caverna, teria sido fatal se já não estivesse morto, como fantasma nada de sério lhe aconteceu. Ele se levantou um pouco desnorteado com a batida de cabeça e sem sinais de qualquer ferimento.

O segundo movimento da besta não surtira efeito nenhum em Ronan, diferentemente de em Pink. O barulho do atrito da arma om o chão provocara um barulho infernal para ele, assemelhando-se muito ao tilintar que ouvira algumas vezes horas antes. O efeito foi ainda pior, parecia que piorava quanto mais ouvia aquele ruído, a cabeça rodou completamente fazendo-o se desequilibrar e cair de joelhos no chão.

Além da forte dor de cabeça que tinha, a visão enevoada e o sangramento pelo nariz, seu coração batia de forma descontrolada em seu peito, a cabeça parecia pulsar sem controle junto com o coração. As batidas eram tão fortes e altas que ele não conseguia escutar mais nada do que acontecia ao seu redor, seus olhos conseguiam ver alguns borrões, mas não eram capazes de processar informações.

Por longos minutos ele ficou ali, parado, com os joelhos e a cabeça no chão enquanto agonizava. Sangue escorria cada vez mais pelo seu nariz e pingava no chão, a dor no peito e na cabeça aumentava junto com as pulsações ainda mais forte até que tudo parou, repentinamente.

Ele estava, agora, de pé na entrada da caverna, não mais sentia coisa alguma. O coração batia normalmente em seu peito, a cabeça não doía ou pulsava mais e o nariz não escorria sangue. Isso tudo seria ótimo se a cena que ele via não parecesse um pesadelo, ele piscava os olhos tentando assimilar, mas o que via continuava assustador. A alguns centímetros a sua frente, estava o seu corpo inerte, jogado ao chão como ele estivera quando agonizou. Teria ele virado um fantasma também?


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Notas finais do capítulo

Aproveitem e também visitem meu novo blog, recém inaugurado: http://storiesorld.blogspot.com.br/ . Vou postar essa estória lá também, além de todas outras que já escrevi ou ainda vou escrever.



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