Conversando Com Os Anjos escrita por glassmotion


Capítulo 10
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Tá acabando! Vai até o 13 [+epílogo], e ainda tem muita coisa pra acontecer. o



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Capítulo dez

“Throw it all away,
Let's lose ourselves,
'Cause there's no one left for us to blame.
It's a shame we're all dying,
And do you think you deserve your freedom?

How could you send us so far away from home?
When you know damn well that this is wrong.
I would still lay down my life for you…
And do you think you deserve your freedom?

No, I don't think you do.
There's no justice in the world…
There's no justice in the world,
And there never was.”

[Soldier’s Poem - Muse]

~

            Robert estacionou o carro onde John indicou. Estavam numa rua estreita - como a maioria das ruas da pequena Belleville -, arbustos e flores dos jardins caindo sobre a calçada. A manhã estava tão nublada quanto a anterior, o que Gerard havia tomado como um mau sinal, e ficava mais nervoso a cada segundo, afundando no banco do passageiro como um caramujo se esconde na concha quando se sente ameaçado. Gerard o Caramujo, ironicamente lento em comparação à velocidade do carro uma semana atrás. Uma salva de palmas para o covarde do ano. O eco de mãos aplaudindo oscilava em seus ouvidos.

            Desceram do Range Rover, Bert ainda lançando olhares de deslumbramento a John. Frank estava especialmente iluminado para a ocasião, como se tivesse sido lustrado durante a noite ou o sol batesse nele e nele somente, deixando-o ainda mais encantador a Gerard, que era o único que podia vê-lo.

            “É por ali,” John indicou. A rua era um pouco inclinada e tortuosa, o chão feito de pedras e não de asfalto. Gerard até deixou as muletas no carro, já podendo se apoiar melhor na perna engessada. Segurava a mão de Bert para apoio, e Frank parecia estar se segurando para não sair correndo na frente.

            Havia uma casa de muro bem alto com um Wolkswagen antigo estacionado na frente, azul, desbotado. Parecia não sair dali há anos. E ao lado do muro alto ficava uma casa de cerca baixa, tinta descascada, jardim bonito e com um ar aconchegante. “É aqui,” John disse, guiando os garotos para a casa.

            “É aqui. É aqui, Gerard!” disse Frank, sorrindo como um maníaco. Gerard sorriria de volta se não estivesse tão nervoso.

             A idéia de que Linda ficaria furiosa com Gerard parecia cada vez mais aterrorizante. De todas as pessoas, a única que ele se importaria de ter odiando-o era ela. Era o filho dela. Gerard sabia que ela teria todos os motivos do mundo para enxotá-lo de sua casa a pontapés, mas esperava que ela não fizesse isso. Embora ele merecesse. A justiça nem sempre é fácil, e o estômago do garoto dava voltas e mais voltas antecipando o que iria acontecer.

            Ela soou gentil ao telefone.

            Gentil como o tipo de pessoa que não dá o filho para a adoção. Gentil como o tipo de pessoa que ama o filho e ficaria sem chão ao saber que...

            Por favor não me odeie por favor me entenda por favor dê-me forças para explicar por favor por favor.

            Atravessaram a pequena trilha de pedrinhas por entre as flores e chegaram à varanda. A casa era feita de madeira escura, como um chalé antigo escondido por trás de um mar de margaridas e girassóis e rosas e gardênias. Havia uma cadeira de balanço do lado de fora - lugar para um.

            John trocou um olhar com eles e ofereceu um sorriso amigável. “Ela é uma boa mulher, ela vai entender,” ele disse baixinho. Gerard achou que Bert tinha contado para ele o que estavam fazendo ali. Bert achou a mesma coisa de Gerard. Ninguém disse nada e John tocou a campainha.

            O peito de Gerard parecia preso por braços fortes. Ele mal conseguia respirar, aquela constante sensação de frio no estômago deixando-o nauseado. Frank sorriu para ele e tentou acalmá-lo, mas não adiantou de muita coisa.

            E passos. Passinhos apressados se aproximando da porta - barulho da chave virando na fechadura - maçaneta - a porta se abriu. A madeira abriu espaço e ali estava ela. Linda Iero, trinta e dois anos, aparência de vinte e cinco, cabelos castanhos soltos e displicentes, vestido florido muito leve para o outono frio, pequena, ombros estreitos, menor que o filho adolescente - os exatos mesmos olhos do filho adolescente.

            “Oh olá!” Ela disse alegremente, curvando os lábios num sorriso. Ela também tinha aquele tom oliva de pele, e qualquer pessoa que visse Frank saberia na mesma hora que eram parentes - mesmo que ela parecesse jovem demais para ser mãe dele. “Entrem, entrem, está tão frio aí fora - olá, John.”

            Gerard entrou, vacilante, sem conseguir tirar os olhos da mulher. Aquela era a mãe de Frank. Ela o havia trazido ao mundo. Ele saíra de dentro dela. De dentro daquela mulher pequenina, delicada. As pequenas são sempre as piores, dizia Donald, e Gerard ficou ainda mais preocupado do que o normal.

            Bert também encarava a mulher, enquanto John a cumprimentava e apresentava os garotos a ela. Frank, por sua vez, estava muito quieto. Tinha as mãos nos bolsos da jaqueta, os olhos fixos sobre a figura de sua mãe. Mãe. A mãe mais bonita do mundo, ele pensou, e instantaneamente soube que a amava. Era a mãe dele ali. A mulher que ele quis durante quase dezoito anos. Estaria feliz como um porco na lama em alguns minutos, mas naquele momento ainda estava absorvendo a visão e realizando e deixando a ficha cair.

            Ela tinha flores pintadas nas unhas dos pés descalços, branquinhas e delicadas como toda ela, embora as unhas das mãos fossem curtas e sem esmalte. Ela era enfermeira, afinal de contas. Tinha mãos pequenas e quase infantis, covinhas na base dos dedos - assim como em suas bochechas arredondadas. Como as de Frank. Porque eles eram parecidos. Porque eram mãe e filho.

            Frank finalmente sorriu e moveu-se freneticamente, quase pulando no lugar.

            “O que aconteceu com você, querido?” Ela perguntou a Gerard, referindo-se à perna quebrada dele.

            Gerard mordeu o interior da boca e lançou um olhar desesperado a Bert, que apertou a mão dele. “A gente ainda vai chegar nisso,” Robert disse, escondendo o quão receoso estava e sorrindo para a mulher. Ela olhou para as mãos juntas dos dois e meneou a cabeça, sorrindo docemente.

            “Vocês querem biscoitos? Estou assando alguns,” ela ofereceu, e só então Gerard registrou o cheiro delicioso que preenchia toda a casa.

            “Talvez mais tarde,” John respondeu por eles. “Acredito que eles estejam ansiosos para falar com você.”

            O tom sério dele pareceu fazer o sorriso dela evanescer lentamente. “Oh. Oh certo, então... John, leve-os à sala? Preciso tirar as bandejas do forno, sim? Volto num momento.”

            Ela deu meia-volta e desapareceu por um corredor, enquanto John os guiou até a sala de estar, à esquerda de onde estavam. A casa era toda muito... bonitinha. Móveis que pareciam antigos, lustrados, aconchegantes. Lembrava um bocado a casa de vovó Elena, sem o ar de porão. Era um pouco bagunçado, mas tinha um imensurável clima de lar.

            “Gee, você viu como ela é linda? Gerard, é minha mãe, cara, é minha mãe, eu não acredito, isso é tão incrível, obrigado, obrigado por me trazer, meu Deus, Gerard, é minha mãe!” Frank dizia sem parar, acompanhando-os até o sofá, ao lado do qual lenha queimava na lareira. Gerard sorriu brevemente para Frank, contente que ele estivesse tão feliz, mas ainda dominado pelo nervosismo. Sentou-se ao lado de Bert no sofá e tiraram os casacos, enquanto John sentou no outro, de frente para ele, a mesinha de café entre os dois.

            “Hey,” Bert sussurrou para o amigo. “Você está azul, sabia? Acalme-se.”

            “Nada fácil,” Gerard grunhiu em retorno, balançando a perna boa freneticamente. Não queria chorar, não queria, mas era tanta pressão e tanto medo e tanta culpa e tanta ansiedade. Tinha medo que seu coração não agüentasse.

            “Shh, vai ficar tudo bem,” Bert tentou acalmá-lo. Envolveu os ombros dele com um braço e Gerard permitiu, escondendo o rosto no pescoço do amigo, tentando espantar as lágrimas. A mão ainda enluvada de Bert acarinhava o braço do outro, desesperado para que ele não tivesse um colapso bem ali.

            “Vocês são uma graça,” veio a voz de Linda de repente. Ela havia chegado com um prato de cookies, os quais ela colocou na mesinha junto com alguns copos de leite, e olhava os garotos com olhos doces.

            “Oh, nós não...” começou Bert, e Gerard aprumou-se no assento. “Nós somos só amigos.”

            “Ahh, perdão,” ela disse com um sorriso envergonhado e sentou-se ao lado de John. “Achei que fossem um casal.”

            “Mãe!” Disse Frank num tom ultrajado, porém com um sorriso tão largo que parecia se juntar na nuca. Ele esperou a vida inteira para dizer aquilo.

            Gerard olhou para Frankie, e então de volta para Linda. “Eu estava namorando... com outra pessoa,” ele disse lentamente, nervoso como se estivesse prestes a pular de pára-quedas. Tinha que saltar, mas não sabia se estava pronto.

            Ela fitou Gerard em silêncio, como que tentando entender o que aquilo tinha a ver com ela. Pela primeira vez tinha no rosto a expressão de uma mulher abordada repentinamente por um adolescente, sem saber o que diabos ele queria com ela. John estava encostado contra o braço do sofá, perigosamente perto de Frank, que havia se sentado na mesinha do abajur.

            Gerard tentou respirar fundo. Acabe com isso logo. Mais cedo ou mais tarde vai ter que acontecer, pra que ficar sofrendo em antecipação? Conte a ela.

            “A senhora...” - ele torceu as mãos uma na outra, forçando-se a manter contato visual com ela. - “A senhora teve um filho. Certo?”

            Ela arfou de repente, como se uma mão invisível tivesse estapeado-lhe a face. “O que - você - John, o que é isso?”

            “Responda a pergunta, querida,” ele orientou calmamente. “Confie em mim.”

            Ela tinha o rosto franzido, e olhava de Gerard para Bert incessantemente, como se pudesse encontrar a resposta na aparência deles. “Tive.”

            Frank riu e bateu palmas, porque sim, aquela era sem dúvida a mãe dele. Mas Gerard não riu; muito pelo contrário. Se só com a menção do filho ela havia reagido daquela forma, como seria quando ele contasse o resto?

            “Como vocês sabem disso?” Ela perguntou rapidamente, agora tão ansiosa quanto eles.

            Gerard encarava o chão, um milhão de fantasmas revirando seus interiores. “Eu o conheci.”

            “Você o quê?!” Ela quase gritou, sentada na ponta do sofá. “Você - não. Olha garoto, eu não sei de onde você tirou essa informação, mas eu não vou aceitar brincadeiras--”

            “O nome dele é Frank,” Gerard disse de repente, e ela parou de falar. “Era Frank.”

            Ela arfou novamente, um som agudo saindo de sua garganta. Encarava Gerard quase boquiaberta, e uma lágrima solitária escapou de seu olho esquerdo. Ela balançou a cabeça bobamente, mãos límpidas sobre o colo. “Ele morreu no parto,” ela murmurou fracamente. Tinha os olhos fixos em Gerard, suplicantes. “Ele morreu no parto,” repetiu, sua voz transbordando dor.

            Gerard balançou a cabeça em retorno, mais rápido. “Ele morreu semana passada,” respondeu tão tristemente quanto ela.

            “O quê? Não, não, ele morreu no parto,” ela repetiu, abaixando a cabeça e deixando seus dedinhos femininos entrelaçarem-se em seus cabelos sedosos. “Ele nasceu prematuro. Nasceu muito cedo, eu era tão jovem, ele morreu no parto. Ele não chorou. Deus o levou de mim, não brinque com isso, garoto, não brinque com isso,” ela murmurava, e John pousou uma mão nas costas dela, afagando para acalmá-la. Falhou, no entanto, e ela passou a soluçar contra as próprias palmas, toda a dúvida que a havia assombrado durante todo esse tempo de repente provando-se digna de contestação.

            Frankie fitava a mãe, pedindo a ela que não ficasse triste, mas ela não podia ouvi-lo. Ela continuava a chorar, e Gerard teve uma forte sensação de déjà vu. Ele havia sonhado com aquilo, sabia que sim, agora se lembrava, aquele pesadelo constante, agonizante. E bem ali ele soube que não estava louco. Que Frank não era uma alucinação, que tudo aquilo sobre destino era mesmo realidade. Que o papel dele havia sido designado. Que aquilo tudo estava marcado para acontecer desde sempre, e que ele tinha que terminar o que foi fazer ali, doesse o quanto fosse.

            “Frankie estava vivo,” ele disse de repente. Fechou os olhos para que pudesse dizer tudo de uma vez, para que nenhuma outra visão tirasse suas palavras ou sua coragem novamente. “Eu o conheci na escola. Ele morava num orfanato, mas ele era tão doce... e ele era inteligente. Era a pessoa mais doce e esperta que eu já conheci, você ficaria tão orgulhosa dele... e eu não sei quem o tirou de você, mas ele não nutria ressentimentos, e ele dizia que um dia iria achar você, ele era sempre tão bom. E eu... ele era... meu namorado ou algo assim, e nós fomos a uma festa, e uns idiotas o machucaram e eu fui atrás deles, mas eu bati o carro e... e Frank estava comigo...” - foi a vez de Gerard se curvar para frente e esconder o rosto nas mãos, soluçando profundamente algumas vezes antes de conseguir continuar. “E ele não estava usando o cinto, e ele... ele morreu e...”

            Gerard desabou no choro, seu corpo curvado sendo abraçado por Bert. “Frankie se foi,” Bert disse com a pouca firmeza que lhe restava, encarando Linda, que os olhava em silêncio, seu rosto bonito molhado e vermelho. “Foi um acidente, e então o orfanato mandou as coisas de Frank para a família de Gerard. Havia uma foto da senhora lá, e Gerard reconheceu a igreja, por isso nós soubemos aonde vir procurar.”

            Linda arfava, os olhos molhados presos na figura desastrosa que era Gerard. “Way... você é neto... oh céus, eu... meu filho? Meu filho estava vivo?”

            Foi Bert quem respondeu novamente. “Estava, e ele--”

            “Foi culpa minha,” Gerard disse de repente, levantando a cabeça, o rosto molhado. “Eu vou embora se a senhora quiser. Frank queria que eu viesse. E aqui,” tirou um papel do bolso. Era a impressão de uma foto que havia tirado com seu celular. Frankie estava sentado na grama, ao lado da grande árvore da escola, olhando para cima e sorrindo para Gerard, o sol forte batendo nele. Gerard havia imprimido a foto em casa, o que deixava a qualidade fraca, mas ainda assim, era Frank. Ele entregou o papel a ela. “Ele.”

            Ela pegou o papel com a mãozinha trêmula. Assim que seus olhos pousaram na imagem, ela levou uma mão ao rosto, contra a boca, reprimindo os soluços que teimavam em continuar. “Meu filho,” ela disse contra a palma, logo levando a mão ao papel, a ponta do indicador circundando as feições do garoto. “Meu filho.” Ela sorriu, chorou, encarou o papel com os mesmos olhos que tinha o pequeno anjo observando-a. “Oh meu Deus, meu filho. Ele se parece comigo, não parece? Meu menino...” - Ela levantou o olhar a Gerard. “Ele era lindo. Meu bebê...” - voltou a encarar a foto.

            Gerard meneou a cabeça, olhando para Frankie por um instante. Seu anjinho chorava. Sorria com carinho para Gerard, e ainda brilhava, mais forte do que nunca, mas havia umidade em seu rostinho bonito. “Ele é,” Gerard disse, queixo franzido num bico infantil, desolado. “Ele é.”

E voltou as mãos ao rosto, escondendo-se, chorando como uma criança mimada. Chorando por tristeza de ter feito o que fez. Por vergonha de estar na casa da mãe do garoto que havia matado, por estar ali contando a ela o que fez, por ter tirado a vida da pessoa mais especial que já havia cruzado seu caminho. Por estar sendo ridiculamente fraco e chorando no sofá dela.

            Demorou pouco mais de um minuto para que Gerard sentisse uma mão em seu joelho, e não era a mão de Bert. Ele levantou o rosto e encontrou o de Linda, que estava ajoelhada em frente a ele. “Não precisa ficar assim,” ela disse, oferecendo-lhe um sorriso triste. “Eu sei que você também o amava.”

            Ela deitou a cabeça no colo de Gerard. Ele passou a mão pelos cabelos dela. Ficaram em silêncio por um tempo, sob o olhar contente de Frank.

**

            Tudo parecia tão óbvio após todo o esclarecimento.

            Linda tinha pais religiosos, ricos e muitíssimo rígidos. Quando a mãe de Linda estava grávida dela, ocorreram complicações imensas, e a mulher acabou prometendo entregar a filha à Igreja caso ela sobrevivesse. Linda sobreviveu.

            Cresceu, bonita e esperta, carinhosa e gentil. Mas ela era ingênua. Inocente como seu filho viria a ser, e entregou-se a um rapaz que ela acreditava amá-la. Linda ficou grávida e ele partiu. Ela tinha quinze anos.

            O que havia mantido a garota de pé foi o encantamento pelo fato de que havia vida dentro dela. Ela estava carregando em si alguém que ela iria amar incondicionalmente, e que ela sabia que a amaria de volta, e teriam um ao outro para sempre, nunca sozinhos. Ela deu à luz quase cinco semanas antes do previsto e desmaiou de exaustão assim que o bebê nasceu. Acordou algumas horas depois e recebeu de seu pai a notícia de que a criança havia nascido morta. Você não viu, filha?, ele não chorou. Era prematuro e fraco. Foi melhor assim.

            Ela eventualmente se recuperou, porém, afastou-se dos pais assim que completou dezoito anos. Não conseguia conviver com o negativismo deles, automáticos e frios, tentando forçá-la a uma vida que ela não queria. Linda tornou-se enfermeira e levava flores no túmulo dos pais duas vezes por mês.

            Tudo isso ela havia contado a Gerard. Frank escutou tudo com ansiedade, cada vez mais contente por ver que sempre fora querido pela mãe. Ao fim da tarde, a felicidade do garoto era tão intensa que contagiou Gerard, permitindo-o se soltar levemente.

            Linda também não ficara chateada com Gerard. Claro, a notícia de que seu filho havia morrido uma semana antes não era boa, mas para ela era diferente. Ela nunca teve Frank. Não se pode sofrer duas vezes a dor da mesma perda, pelo menos não na mesma intensidade. Ela disse que ficava grata a Gerard por ter feito Frank feliz, mesmo que por pouco tempo - Bert não parava de falar sobre como Frank estava sendo mimado pelo outro.

            O dia acabou sendo produtivo, porém foi emocionalmente exaustivo. O sol já estava se pondo quando saíram da casa de Linda. Combinaram que passariam lá no dia seguinte, bem cedo pela manhã, e a levariam para Jersey para que ela fosse à missa de sétimo dia de Frank - que deveria ter sido celebrada na sexta, porém ninguém estava disposto a cancelar compromissos para continuar o teatro e adiaram para sábado.

            Voltaram para o hotel, Gerard dizendo que deveria ir visitar sua tia Connie, mas Bert o proibiu. “Você tem que descansar,” ele disse a Gerard, que estava deitado na cama, somente com as calças do pijama e o torso exposto, um travesseiro sobre o rosto - Bert passava a pomada antibiótica no corte que o amigo tinha na barriga, os pontos já endurecidos. “Amanhã a gente tem que acordar muito cedo, ir pra casa, ir à missa, acabar com aquelas piranhas, ir ao hospital pra você arrumar esse gesso e tirar esses pontos, fazer sala pra Linda...”

            “E você tem que passar tempo com seu namorado,” Gerard interrompeu, a voz abafada contra o travesseiro.

            “Isso não é prioridade.” Pegou o curativo e passou a colá-lo sobre a pele de Gerard.

            “Bert,” chamou, tirando o travesseiro do rosto e encarando o amigo. “Eu tenho que te dizer pra aproveitar o tempo que você tem com ele? Porque obviamente nunca se sabe quando isso pode ser tirado de você, e toda a merda?”

            Robert revirou os olhos e deu um tapa estalado na barriga de Gerard, que contraiu o corpo imediatamente. “Também não sei quanto tempo tenho com você, e você ainda está acima do Quinn no meu ranking.”

            “Argh,” Frank grunhiu do canto do quarto, jogando-se na poltrona puída, porém Gerard sorriu.

            “Liga pra ele, pelo menos,” ele indicou, passando a blusa do pijama por sobre a cabeça. “Aproveita e liga pra minha mãe.”

            “A mãe é sua, liga você.”

            “Eu estou oficialmente dormindo.”

            “Gerard.”

            “Bert.”

            “Eu não vou-” - parou de falar quando Gerard fechou os olhos e fez sons de ronco. “Filho da mãe,” Bert xingou com uma risada. “Okay, vou ligar. Vou pedir uma pizza pra nós também, vi uns folhetos na recepção.”

            “Dinheiro no bolso da minha calça.”

            “Achei que você estivesse dormindo.”

            “Ah vai embora logo!” Frank protestou, e Gerard virou o rosto pra ele, olhos arregalados.

            Bert não esperou por uma resposta, apenas saiu do quarto dizendo algo sobre Gerard ser uma menina mimada de seios pequenos. “O que diabos foi isso?” Gerard perguntou a Frank, assim que a porta foi fechada.

            “Eu queria conversar com você!” Frank quase berrou, sorrindo. “Minha mãe, Gerard, ela não é incrível? Você viu como eu pareço com ela? Eu te falei que ela não tinha me largado! E que ela não ia ficar com raiva, você viu, como ela é legal?”

            Gerard encostou a têmpora na cabeceira da cama e sorriu docemente. “Sim, ela é bem bacana. Você está feliz?”

            “Haha, se eu estou feliz? Gee, eu nunca fui tão feliz, e isso não é modo de falar,” Frank declarou com o sorriso mais largo e sincero e esmagador que Gerard já viu. Ele estava tão feliz, vibrante, contagiante, e absolutamente lindo. Gerard mordeu o lábio inferior, olhos marejados, contente por Frank ao mesmo tempo em que seu corpo era mergulhado na frustração de não poder tocá-lo. Não poder abraçá-lo, segurar sua mão para que pulassem juntos, beijar o sorriso que parecia eternamente esculpido no rosto perfeito.

            “Que bom, Frankie.” Pegou os tubos alaranjados dos remédios que tinha que tomar.

            O sorriso de Frank diminuiu um pouco. Ele curvou-se para frente na poltrona, os braços presos entre as pernas, dedos tocando o chão. Inclinou a cabeça para um lado. “Você não parece muito animado.”

            “Oh.” Levantou o olhar e sorriu. “Eu estou, meu anjo, só meio cansado.” Meneou a cabeça rapidamente.

            Frank suspirou e franziu as bochechas. “Gerard...”

            “Estou bem, Frankie, sério,” mentiu, descendo as pílulas com alguns goles d’água. “Sério!” adicionou quando Frank continuou a encará-lo com descrença.

            “Uhm.” Arqueou uma sobrancelha. “Me diz o que é.”

            “Não é nada! Estou ótimo, e pára de ficar se preocupando comigo, hoje é seu dia,” insistiu, puxando as cobertas para si.

            “Gerard, se você não me disser o que há de errado, eu vou embora.”

            A boca de Gerard se abriu em choque. “Isso não é justo!”

            Frank balançou os ombros. “Desembucha.”

            “Não, Frankie, deixa de bobagem...”

            “Indo embora,” Frank avisou, pondo-se de pé e indo em direção à porta.

            “Frank! Okay, Jesus. Seu manipulador desavergonhado.”

            Frank riu. “Quando necessário. Vamos lá, o que é? Eu sinto que tem alguma coisa errada, só fala de uma vez e poupe-nos do drama.”

            Gerard soprou pra cima, fazendo uma mecha de cabelo voar. “Eu só estou meio de saco cheio desse negócio de não poder encostar em você.”

            “Ah, é. Bom, eu também. A parte ruim de estar morto, fazer o quê,” disse com leveza, voltando à poltrona.

            Lógico, Frank estava morto; presta atenção, Gerard, foi culpa sua. Você não tem o menor direito de reclamar sobre o assunto. “Frankie... não tem jeito? Quer dizer, não sei, se eu... se eu for com você?”

            “Gerard!” Frank berrou, abandonando o sorriso de repente. “Nem pense nisso!”

            “O quê? Ah, Frank...”

            “Não fale bobagem, okay, isso não pode acontecer,” avisou, um dedinho apontado para Gerard.

            Gerard lançou a ele um olhar de drag queen impaciente. “A escolha é minha.”

            Frank franziu as sobrancelhas de forma muito séria e adulta. “Você não ouse fazer isso.”

            “Eu faço se eu quiser!” Gerard respondeu, infantilmente por sua vez. “Você não tem idéia de como dói não poder te tocar, Frank! Literalmente, fisicamente, dói.”

            “Claro que eu sei, eu sinto a mesma coisa.”

            “Então me deixe fazer!”

            “Gerard-”

            “Se eu já tirei uma vida que não me pertencia, posso muito bem tirar a minha própria.”

            “Você não tem o direito de fazer isso,” Frank latiu por entre dentes travados.

            “Espera pra ver!”

            “Gerard - ugh!” - Frank já estava de pé, punhos fechados com força. “Você acha que é fácil pra mim? Ficar ao seu lado o tempo todo, vendo você o tempo todo e não poder te tocar? Você tem a menor noção de quanto eu amava cada vez que eu sentia sua mão na minha? Você acha que eu estou gostando disso?”

            “Eu posso me juntar a você!”

            “Nós não sabemos disso, Gerard, não vale à pena!”

            “Vale à pena tentar! Frank, me deixa tentar!” implorou, batendo as mãos no colo.

            “Não, Gerard, é sério. Se você fizer isso, eu vou embora.”

            “Você não faria isso.”

            “Espera pra ver.”

            “Você não pode!” Gerard gritou de volta, e não era de raiva, era de desespero. O mais puro desespero, impotente, frustrante, enchendo-o de agonia e tristeza e ira, fazendo seus olhos úmidos. “Você não pode!”

            “Okay, já chega,” veio a voz de Bert, que entrou dentro do quarto de supetão e bateu a porta atrás de si. Gerard tomou um susto e o fitou com os olhos muito arregalados, assustados. “Gerard, acho bom você me dizer o que porras está acontecendo nesse exato momento ou eu mesmo vou te internar, eu juro por deus.”

            Gerard permaneceu congelado na cama por vários segundos, encarando Bert com o rosto tão pálido e assustado que causava pena. Tentou recapitular rapidamente o que havia dito - e em que volume havia dito. “Uh - o quê? Bert, me deixa dormir,” tentou fugir e virar-se para o outro lado.

            “Eu acho bom você não me dar as costas nesse momento,” Robert ameaçou firmemente, e Gerard voltou a ficar parado como uma estátua. “Eu não sei se você reparou, mas você passou os últimos dois minutos gritando sobre se matar, Gerard, e dessa vez eu não vou deixar passar.”

            Gerard sentou-se mais ereto, dobrando a perna boa. Abraçou o joelho e pôs-se a balançar pra frente e pra trás, Bert ainda de braços cruzados perto da porta, esperando uma resposta. Gerard tentava inventar bem rápido uma desculpa que não soasse totalmente ridícula, e lançava ocasionais olhares a Frank, que encarava o chão sem dizer nada. Gerard foi se balançando mais e mais rápido, sua mente entrando em pânico. Até que ele parou.

            “Eu não tenho uma desculpa,” ele admitiu num sussurro rouco, a voz falha. Pressionou a testa contra o joelho e sentiu seu corpo sacudir em mais uma de suas fracas recaídas patéticas. O lábio inferior contorcido, a garganta doendo. “Eu não agüento mais isso,” ele soluçou. Levou as mãos ao rosto e tentou abafar os sons, mas tudo o que conseguiu foi transformá-los em uivos longos e tristes, daqueles que faz um cachorro chorar junto.

            Bert tentou permanecer firme e quieto, mas não conseguiu. Gerard estava desabando bem ali na frente dele. Que tipo de melhor amigo seria ele se ficasse apenas assistindo? Não, isso não iria funcionar daquele jeito.

            “Oh, Gee,” ele murmurou e foi até a cama do amigo. Sentou-se e puxou Gerard para entre suas pernas, abraçando o corpo trêmulo, deslizando as mãos pelos cabelos dele. “Shh, desculpa. Calma. Calma, Gerard, respira.”

            “Eu não agüento mais isso, Bert,” Gerard tentou falar contra o peito de Bert, mas as palavras não saíram da forma certa e acabaram se perdendo num grunhido ininteligível. Os dedos de Gerard estavam brancos como papel, apertando forte a camisa de Bert, as unhas roídas perdidas no tecido escuro.

            “Eu vou te ajudar, Gee, a gente vai sair dessa, okay?” Alisou os cabelos de Gerard; soprou o rosto dele. “Você vai sair dessa.”

            Ficaram ali por um bom tempo. O choro de Gerard foi se tornando menos compulsivo, até que foi ficando silencioso e cedeu. Ele tinha o olhar vazio e completamente sem esperanças. Eventualmente ele caiu num sono inquieto, antes mesmo da pizza chegar.

            Robert encarava o papel de parede, o dedo ainda acariciando a bochecha de Gerard levemente. Respirou fundo, considerando se o que estava prestes a dizer era besteira demais. Que se dane. “Frank,” Bert disse baixinho, “se você estiver aí, me dá um sinal, porque se você não estiver, eu não gosto de pensar no que vai acontecer.”

            Bert olhou e esperou, mas nada no quarto se mexeu.


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Notas finais do capítulo

Gente, tô postando outra fic, Papillon. Se alguém se interessar https://www.fanfiction.com.br/historia/242146/Papillon/capitulo/1 :))



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