Imagens, Sons E Sentimentos escrita por Mayumi Sato, kaori-senpai, Bastet, Blue Dammerung, Bell the Kitsune, Bell the Kitsune, Nekoclair, Ace, IsaWonka


Capítulo 2
Nocturne Op.09 Nº02 - por: nekoclair


Notas iniciais do capítulo

"Olhei para o pulso, mas a escuridão não me permitiu ver as horas. Limpei o rosto na manga da camisa e me aproximei do sofá, onde a iluminação era razoavelmente melhor se comparada à do resto da sala. Foi quando me lembrei da presença do albino. Corei e comecei a esfregar o rosto desesperadamente. Não podia deixar nenhum sinal de lágrimas. Ele não podia saber que eu havia chorado. Só me acalmei quando vi que Gilbert ainda dormia. Suspirei e comecei a encará-lo de cima a baixo."



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http://www.youtube.com/watch?v=YGRO05WcNDk- Nocturne Op.09 Nº02(Chopin)

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Nocturne Op.09 No.2

Era uma noite qualquer de inverno. Nevava, como era esperado, e o céu estava dominado por um tom de azul petróleo intenso. Não se via estrela alguma.

 A casa estava escura: A luz acabara há algum tempo, aparentemente porque algo acertara o poste responsável pela distribuição de energia da região. Assim, sem a possibilidade de usar o fogão ou mesmo o microondas, o jantar teria que ser comprado mais tarde em algum lugar qualquer. A sala, único cômodo ocupado no momento, era iluminada por velas. Eu estava sentado no banco do piano, pois Gilbert tratara de ocupar o sofá, onde dormia profundamente, trazendo no rosto aquele maldito sorriso que não o abandonava.

A iluminação fornecida pelas velas não era o suficiente para desfazer por completo a penumbra, e o fogo também não ajudava a afastar o frio. Mesmo assim, eu podia diferenciar bem cada móvel ou objeto, inclusive aquele que, como de costume, estava no topo de uma pequena estante: a pequena lebre branca de olhos muito vermelhos.

Eu me encontrava sentado ao piano, apenas a observá-lo. Meus braços, ao invés de esticados, estavam caídos. Por algum motivo, o peito me doía, e muito. Era como se algo estivesse a apertar-me o coração com força. Pela primeira vez, não senti vontade de tocar o instrumento. O silêncio me trazia paz, uma sensação de tranquilidade que não tinha há muito tempo.

Atrás de mim, Gilbert dormia de maneira um tanto desajeitada. Não pude evitar usar meu casaco para cobri-lo, afinal, era ele quem vinha me fazendo companhia até pouco. Como acabou por adormecer ali mesmo, e por conta do frio que fazia, era muito provável que pegasse um resfriado se eu não tivesse feito o que fiz.

Ele se preocupava com minha situação e eu estava ciente disso. Desde que me divorciei, ele tem me feito companhia. “Desculpe, Gil, mas desta vez tenho que enfrentar este problema sozinho. Até porque não há nada que você possa mesmo fazer...” 

A neve caía suave do lado de fora, contrastando com o vento que se chocava forte contra a janela. Não havia nenhum som que denunciasse vida. “Por que o ambiente está tão fúnebre?”

As lágrimas me escaparam, escorrendo-me pelo rosto até chegar ao queixo.  Senti, de repente, uma enorme vontade de gritar, como nunca havia gritado antes. Mas não posso simplesmente ceder aos devaneios quando me apetece...

Levei as mãos aos olhos, esfregando-os e secando-os bruscamente. Minha boca tremia de maneira incontrolável e um sentimento desesperador me dominava. Minhas mãos se fecharam com violência. Queria saber o que havia comigo, pois não era a primeira vez que isso acontecia. Qual era o motivo de toda essa minha aflição?

Enxuguei os olhos e as lágrimas finalmente cessaram. Acalmei-me e suspirei com força. Ainda bem que o albino dormia naquele momento, pois a última coisa que eu queria era que ele me visse assim. Eu temia que, se ele conhecesse minhas fraquezas, ou minha falta de controle sobre minhas próprias emoções, ele também fosse me abandonar, como haviam feito todos os outros.

Abaixei os olhos. Observava atentamente cada tecla de meu velho, ou melhor, antigo piano. Pois ele não era velho, não era um trapo de pano usado ou algo assim, era meu amado instrumento. Ele acompanhou-me em vários momentos especiais, e também em alguns que eu preferia esquecer. Meu peito apertou-se novamente, me fazendo sentir como se eu voltasse àqueles dias. Mas não os felizes, uma vez que esses, obviamente, nunca voltam.

-|-

— Estou indo.

O pequeno garoto loiro segurava um quadro nas mãos. Apertava-o firme contra seu longo casaco preto, como se fosse seu maior tesouro. Os olhos azuis estavam sérios, apesar de ser visível a dor sentida com a partida.

— Faça o que quiser. — Não era como se qualquer coisa que eu dissesse pudesse mudar o que já estava decidido: ele estava indo embora.

O menino abaixou a cabeça e atravessou a porta, indo em direção aos vales encimados pela neve muito branca que continuava a cair. Segui-o com os olhos o máximo que me era permitido, até perdê-lo de vista no horizonte. Apesar da luz do sol que aproveitava seus últimos momentos, eu sentia frio por conta do vento gelado. Lembro, também, que meu coração doeu um pouco.

— Adeus. — falei para mim mesmo, como que constatando a partida dele.

Fechei a porta. Nunca mais o vi depois daquele dia. Aquela foi a primeira vez que me senti tão sozinho. Ainda que eu não mantivesse muitas lembranças do ocorrido, aquele dia marcou-me profundamente.

-|-

Levantei as mãos, levando-as ao rosto. As lágrimas insistiam em sair novamente. Pus-me de pé e me aproximei da janela, apoiando-me na parede. A neve continuava a cair lentamente. Respirei fundo e já estava começando a sentir-me mais calmo quando fui invadido por outra de minhas lembranças.

-|-

Era plena primavera e o dia estava razoavelmente quente, apesar da fina garoa que caia do céu. Eu tocava meu piano em êxtase e cada nota saia corretamente - nada menos esperado de um pianista de alta estirpe como eu - o que tornava a melodia simplesmente perfeita.

— Senhor Roderich, eu acabei de fazer um pouco de chá. Desejaria um pouco?

Segurando uma pequena bandeja prateada nas mãos, Elizaveta entrou na sala, onde eu estava, ainda, a tocar o piano. Os cabelos castanhos estavam soltos e caíam-lhe sobre os ombros. Ela vestia um avental branco rendado por cima de um simples vestido verde e trazia os olhos muito alegres.

Interrompi automaticamente os movimentos de meus dedos, virando-me para encará-la. Assenti, com um leve sorriso no rosto.

— Eu adoraria, muito obrigado.

Vi o rosto da garota corar levemente, e ela abriu um largo sorriso.

— Ok. Vou deixar aqui em cima de mesa então. — disse, ainda com feições alegres, enquanto apoiava a bandeja na pequena mesa diante do sofá. — Vou ver se o Feli também deseja um pouco de chá. Por favor, me dê licença.

— À vontade. – respondi ao me levantar do banco do piano em direção ao sofá.

Ela sorriu novamente e partiu em direção aos quartos. Apesar de já estarmos casados há um bom tempo, percebo que ela ainda não se acostumou totalmente à ideia. Não que eu esperasse que isso acontecesse - deixo claro que nunca tive esperanças de termos uma vida cheia de romantismos -, já que nosso casamento todo foi arranjado por nossos pais. Para eles, e, no fundo, para nós também, nunca significou nada além de uma aliança econômica entre as nossas famílias.

Sentei-me no sofá e puxei uma das xícaras da bandeja, a qual estava preenchida por um líquido quente e esverdeado. Dei um pequeno gole. Como previa: erva-doce. Voltei a apoiá-la na mesa. Suspirei.

Elizaveta não havia preparado aquele chá por acaso, ela sabia que somente aquele sabor era capaz de me tranquilizar quando a minha cabeça estava empacada de assuntos complicados a resolver.  Ela sabia que eu estava com problemas, e o nome desse problema era Feliciano Vargas.

Feliciano era um jovem italiano que morava em minha casa desde pequeno, adorava comer pasta e, normalmente, não me dava muito trabalho. Era meu dever cuidar dele, mas, ultimamente, essa tarefa não tem sido mais tão fácil...

Semanas atrás, ele decidiu que queria ir embora. Disse que estava cansado de todas as minhas regras e que queria cuidar da própria vida. E, claro, eu o proibi. Onde já se viu um garoto de catorze anos dizer algo daquele naipe?! Não permiti que ele saísse mais de casa sozinho e disse que passaria a ficar sob vigilância constante, tanto de Eliza quanto minha. Desde então, ele passa o maior tempo possível trancado no quarto, e, já há uns dois dias, nem mais de lá ele sai. Isso já estava começando a me preocupar seriamente e eu não sabia o que fazer.

Feliciano, apesar de todos os problemas que me trouxe até hoje, era, de alguma forma, importante para mim. Formamos um laço com o passar dos anos, o qual estava desfazendo-se aos poucos. Sempre que ele falava em ir embora, eu sentia-me mais e mais infeliz.

Peguei a xícara novamente e bebi mais um gole daquele delicioso chá. Aquilo realmente acalmava-me os nervos. Eu segurava o pires com a mão esquerda, enquanto levava a xícara até os lábios pela asa. Tinha os olhos fixos no nada. Minha mente se esvaziou e pude relaxar um pouco.

Ouvi passos corridos e um tanto desesperados aproximarem-se. Apoiei a xícara no pires, ainda mantendo-o firme nas mãos, e pus-me a olhar confuso e surpreso para Elizaveta, que havia aparecido de repente em frente ao corredor, apoiada nas paredes, tinha o rosto vermelho e inchado e as lágrimas escorrendo-lhe até o queixo.

— Senhorita Elizaveta? — levantei-me às pressas do sofá, sem nem mesmo perceber que ainda tinha a xícara nas mãos, derrubando o restante do seu conteúdo no carpete e manchando-o. Corri e segurei a garota, que já não aguentava sustentar o próprio peso com as pernas.

— Rod...

A voz saiu-lhe fraca e trêmula. Passei meus braços por baixo dos dela, impedindo-a de cair no chão.

— O que houve, Eliza?

A garota segurava o choro, mas as lágrimas simplesmente não paravam de brotar-lhe dos olhos. Ela envolveu-me em um abraço apertado, apoiando-se em mim. Chegava a ser estranha essa situação. Vê-la chorar era extremamente incomum. Algo muito grave havia, com certeza, acontecido.

Ela aproximou os lábios, ainda trêmulos, de meu ouvido.

— Rod... – ouvi sussurros, uma voz cheia de dores e tristezas — Achei uma... carta... lá no... quarto do... Feli. — falou, em pausas.

Ela se afastou lentamente e começou a esfregar os olhos, que secavam aos poucos. Pôs a mão no bolso do avental e mostrou-me uma folha de papel branca dobrada e levemente amassada.

Peguei a folha e desdobrei-a. Comecei a correr os olhos pela carta, várias e várias vezes. Simplesmente não acreditava no que lia. Meu peito se apertava cada vez mais. Aquela caligrafia, com certeza, pertencia a Feliciano. Senti a folha fugir-me por entre os dedos, caindo, lentamente, até chegar ao chão.

Puxei Elizaveta para perto, escondendo meu rosto nos cabelos da garota. Ela surpreendeu-se.

— Rod, você pode chorar se quiser...

— Eu não vou chorar.

Eu realmente não queria chorar. Mas isso não significava que meu peito não doía. Eu estava triste e isso era inegável.

— Eu não quero ficar sozinho. Por que todos me abandonam?

Ela abraçou-me forte.

— Não se preocupe, Rod. Eu nunca irei te abandonar...

Ficamos lá, em silêncio. Apesar de Eliza estar tão perto, sentia-me terrivelmente sozinho. Como isso era possível?

-|-

Quando percebi tinha o rosto encharcado em lágrimas. Feliciano... Ele cresceu e tornou-se um ótimo rapaz, mas, mesmo assim, nunca superei o fato de ele ter fugido de minha casa. Por que ele me abandonou...?

Olhei para fora da janela. Uns poucos carros circulavam pela rua, mesmo com a falta de eletricidade. O mundo realmente não para por nada...

Olhei para o pulso, mas a escuridão não me permitiu ver as horas. Limpei o rosto na manga da camisa e me aproximei do sofá, onde a iluminação era razoavelmente melhor se comparada à do resto da sala. Foi quando me lembrei da presença do albino. Corei e comecei a esfregar o rosto desesperadamente. Não podia deixar nenhum sinal de lágrimas. Ele não podia saber que eu havia chorado. Só me acalmei quando vi que Gilbert ainda dormia. Suspirei e comecei a encará-lo de cima a baixo.

Ele tinha uma feição infantil e feliz no rosto e estava todo encolhido por causa do pequeno comprimento do sofá. Senti um pequeno sorriso escapar-me dos lábios e, quando percebi, virei o rosto apressado e voltei a esboçar a minha típica expressão de desdém. Por que diabos eu havia sorrido só de tê-lo visto dormindo? Que idiotice...

Suspirei novamente. Desde quando eu parei de me incomodar com a presença dele? Antigamente, quando ele vinha até minha casa por qualquer motivo que fosse, eu simplesmente fechava a porta e não queria nem papo com o garoto. Agora, ele passava praticamente o dia todo grudado em mim! Como é que chegamos a essa situação?

Voltei a olhá-lo e senti meu coração apertar-se.

Eu não o queria perto de mim por tanto tempo. Eu não podia depender dele, não podia mais depender de ninguém. Porque todos vão embora um dia, mesmo que te prometam o contrário. E, depois, esses dias acabam virando lembranças que irão te perseguir eternamente. E essas lembranças são responsáveis pelas piores dores do mundo. 

-|-

               

— Senhor Roderich, me desculpe! – uma voz chorosa gritava desesperadamente e lágrimas escorriam-lhe pelo rosto empalidecido.

Eu estava sentado em frente à pequena mesa da cozinha, a face metida entre os dedos das mãos. Até ela estava me abandonando.

— Você declara que deseja se divorciar e espera que eu não tenha um colapso emocional? – as palavras saíam de minha boca aos tropeços e de maneira ríspida.

— Eu não posso fazer nada!

Ela calou-se, cobrindo a boca com a mão coberta pelas luvas de seda branca, bem no memento em que, de sobressalto, levantei o rosto e pus-me a encará-la.

— Você não me aguenta mais, não é? – minha voz saiu alta e vacilante, e me senti perdendo levemente a compostura.

— Não é isso.

— Eu sei que é! Não minta para mim!

A garota limpou as lágrimas com as costas das mãos. Seu olhar tornou-se mais calmo e reconfortante, parecia até mesmo uma mãe ao olhar para um filho que diz não amá-la, enquanto chora desesperadamente no colo da pessoa que tanto diz odiar. Abaixei a cabeça, fitando o chão.

— Senhor Roderich, por favor, entenda o meu lado... – ela agachou-se até que nossos olhos estivessem na mesma altura, apoiando a mão direita em minha coxa, como quem consola uma criança. O anel que cintilava em seu dedo era o mesmo que brilhava no meu.

— Não há nada que eu tenha que entender, senhorita Elizaveta. – senti lágrimas formarem-se nos cantos de meus olhos, o que me levou a apertá-los com força para evitar que eu chorasse diante da garota – Você tinha dito que ia ficar comigo. Disse que não iria me abandonar.

Os braços dela rodearam o meu pescoço. Eu retribuí, abraçando-a também.

— Rod, eu tenho que ir. Eu tenho que voltar para a Hungria. São... – ela demorou-se um pouco antes de continuar a falar – São ordens dos meus pais.

 Ela soltou-me, ato acompanhado por mim. Eu a olhava fixamente, atento a cada mínimo detalhe de minha esposa. Os cabelos levemente encaracolados, porém nada exagerado... O vestido bordado, o qual não ficaria tão bem em ninguém quanto ficava nela... Os olhos de um verde intenso, como duas lindas esmeraldas... Eu aprendi a amá-la, mesmo que nosso repentino casamento tenha sido tudo decisões de nossos pais, e cada momento junto dela tornou-se uma lembrança querida e calorosa para meu coração já tão cheio de feridas e cicatrizes.

Ela olhou o chão. Nenhum de nós falou qualquer palavra. Um silêncio sufocante dominou a cozinha. Fechei os olhos e deitei o tronco sobre a mesa. Por que isso tinha que acontecer comigo? Eu havia feito algum mal a Deus?

Lembro-me de ouvir o barulho da porta sendo fechada às pressas e dos passos acelerados batendo contra a madeira que revestia o piso. Quando abri os olhos ela já havia partido, deixando em cima da mesa um pequeno anel, que recolhi cuidadosamente.

Apesar de termos mantido contato por alguns meses (apenas como amigos, claro), os pais dela acabaram descobrindo e proibiram qualquer contato entre nós. Nunca mais tive notícias dela. Mais uma vez, senti-me sozinho, e, desta vez, não me restou mais ninguém.

Foi quando decidi nunca confiar em alguém novamente.

-|-

Aquela era a minha pior lembrança, a que mais me trazia sofrimento e tristeza. Por que eu não podia simplesmente esquecer o meu passado? Se eu esquecesse tudo, minha vida seria muito mais fácil... Mas viver nunca é fácil. Suspirei.

Olhei para meu pulso e surpreendi-me ao ver que já eram quase nove horas. Ainda não havia comprado o jantar, e, com certeza, Gilbert acordaria faminto. Não que eu me importasse com ele, porque eu nunca vou me importar com ele. O fato de eu ir comprar comida é, simplesmente, por eu estar com fome. E, se vou comprar comida para ele, também é porque, apesar de tudo, ele ainda pode ser considerado um hóspede em minha casa. Mesmo que suas visitas sejam diárias, ainda são visitas!

Peguei o casaco que cobria o albino, tomando cuidado para não acordá-lo, e fui em direção à porta de entrada. Quando a abri, senti o frio entrar em casa, fazendo meus ossos tremerem. Vi que ainda nevava levemente. Peguei um cachecol que estava pendurando ao lado da porta e passei-o em volta de meu pescoço. Pus as botas e saí para a rua. Era incrível como estava escuro.

Fazia muito frio e, além disso, eu não conseguia enxergar o caminho muito bem. A única luz existente era a da lua e das muitas estrelas que estavam no céu naquela noite. Eu nem sabia que o céu podia ter tantas estrelas... Por um momento, pensei em largar tudo e ir morar no interior, numa casa isolada, só para poder ver um céu lindo como aquele todos os dias... Mas morar na cidade era muito mais conveniente, por isso nem fiquei sonhando idiotices como ter uma vida campestre ou algo assim. Voltei a olhar o caminho.

Já fazia dez minutos que eu saíra de casa para comprar o jantar. Andar naquele escuro era muito difícil e um tanto assustador - eu podia tropeçar ou até mesmo ser assaltado a qualquer minuto. Comecei a pensar nas mil piores situações que me podiam ocorrer naquele instante. O esforço não valia a pena, era melhor voltar para casa e ir para a cama sem comer nada, e, se Gilbert quisesse comer alguma coisa, ele que desse um jeito depois. Já estava me virando nas pontas dos pés para voltar quando um clarão iluminou tudo ao meu redor. Os postes haviam ligado, ou seja, a luz voltara.

Suspirei em alívio e voltei a andar em direção ao estabelecimento onde sempre comprava comida pronta quando precisava. Já estava a algumas quadras do lugar quando me perguntei se a luz em minha casa já havia retornado também. Provavelmente sim... Andava devagar. Não havia porque ter pressa.

Ouvi uma voz chamar-me ao longe, mas simplesmente não me importei. Caminhava a passos curtos. Minhas botas de cano alto arrastavam-se na grossa camada de neve formada sobre a calçada. Não tinha pressa, afinal, não havia ninguém ansiosamente à minha espera... Minha presença não era requisitada em lugar algum.

A neve caía sobre meu corpo, esfriando-o e meu cachecol agitava-se no sentido do vento. Meus olhos enxergavam apenas o caminho vazio da rua.

Senti alguém abraçar-me bruscamente por trás, o que fez meus óculos escorregarem até a ponta de meu nariz.

— Ei, aristocrata, eu mandei você esperar, não foi? – para meu espanto, eu conhecia, e muito bem, aquela voz que agora respirava forte em meu pescoço.

Ele pousou o braço em volta de meu ombro, exibindo um sorriso que era, no mínimo, convencido. Apenas suspirei de leve. Aquele tipo de situação já havia se tornado algo comum, tanto que nem me dei ao trabalho de me incomodar com atos inapropriados como aquele. Ajeitei os óculos de volta no topo de meu nariz, onde era o seu devido lugar.

— Deixe-me em paz, Gilbert. Não estou com paciência para aturar suas infantilidades no momento. – disse, retirando o braço que me envolvia os ombros.

O prussiano bufou, revirando os olhos.

— Caso você não tenha notado, você nunca está com paciência... – ele disse, sua voz soava levemente enfurecida – Se ia sair, por que não me acordou?

— Não vi motivos para te acordar quando posso muito bem comprar o nosso jantar sozinho.

Por alguma razão, que admito desconhecer, ele nada me respondeu.

A neve caía de leve sobre meus ombros, deixando-me com uma sensação de frio. Por um momento, me arrependi de ter retirado os braços dele de volta de mim. Meu peito doeu.

Continuei meu caminho, ignorando o idiota que agora me seguia. Acelerei minhas passadas. Por algum motivo, o prussiano também começou a andar mais depressa. Virei algumas esquinas, mas ele ainda me seguia. Por que ele está me seguindo, afinal? Ele devia ter ficado em casa. Naquele momento, eu apenas desejava ficar sozinho um pouco. Por que ele não percebia isso?

Avistei o pequeno estabelecimento e adentrei-o às pressas. Quando já estava dentro, notei que estava sozinho. Ele finalmente percebeu que eu não desejava sua companhia. Suspirei novamente, porém desta vez de alívio. Eu realmente só queria ficar sozinho. 

Aproximei-me do balcão e pedi duas porções do caldo do dia, pois assim eu poderia ir embora mais rápido. O lugar começou a encher de aromas e pessoas, e muitas estavam jantando ali mesmo. Já com o prato nas mãos, saí, voltando a enfrentar o frio e a neve que ainda insistia em cair. Meu rosto estava gelado, mas minhas mãos estavam quentes por segurarem o recipiente com o caldo. Andei pela rua, os passos calmos e lentos. Algumas poucas pessoas caminhavam ao meu lado. A rua não estava mais tão deserta...

Senti alguém segurar-me pelo braço, me assustando. Gil apenas riu de minha reação.

— Kesesese. O que foi essa cara de gato assustado, hein, aristocrata?

— Essa seria a reação de qualquer pessoa normal ao ser segurada pelo braço por alguém no meio da rua, à noite. – pus-me a observá-lo, com o semblante irritado – Pensei que tivesse voltado para casa.

— É claro que não. Eu ainda tenho que jantar.

— Por que não janta na sua casa, com o seu irmão? Você tem deixado o Ludwig sozinho a maior parte do dia. Não devia tratar ele assim...

Ele apenas deu de ombros.

— Ele nem está em casa mesmo. Ele foi até a casa do Feliciano, disse até que voltaria tarde hoje. Além disso...  — ele deu uma pequena pausa — Ele já me disse que não se importa em dividir a minha incrível pessoa com você! – sorriu ele, da maneira mais convencida possível.

Apenas o encarei. “Eu não desejo sua companhia.”. Eu até pensei em dizer algo assim, mas, por algum motivo, não tive coragem. Senti meu coração bater mais rápido.

— Você poderia me soltar?

Ele me largou e começou a andar ao meu lado. Ficamos em silêncio. Olhei para ele, percebendo a presença de raras feições sérias. Fiquei a observá-lo, curioso. Ao notar o meu olhar pousado sobre ele, abriu um largo sorriso que me fez virar o rosto rapidamente. Por que, de repente, ficou tão quente?

— Ei, aristocrata, me explica uma coisa?

Olhei para ele. Aquele tom de voz só podia significar que ele diria algo para me provocar. Eu tinha certeza disso graças aos muitos anos de convivência com ele.

— O que foi, Gilbert?

Ele puxou algo de dentro do casaco.

— Por que na sua sala de jantar tem um coelho que lembra tanto a minha pessoa?

Ele possuía um sorriso de deboche na cara, mas eu não pude compreender o que ele queria dizer com aquelas palavras. Ergui a sobrancelha.

— É só um enfeite de mesa... E por que você o pegou?

Ele ignorou minhas últimas palavras.

— Ah, vamos! Um enfeite de mesa de pelos brancos – apontou para o cabelo – e olhos vermelhos – apontou para os orbes rubros que cintilavam em seu rosto, me encarando fixamente.

Eu simplesmente não compreendia. Era apenas um coelho! Eram as tonalidades mais comuns possíveis. Fiquei a observá-lo.

— Não fui eu que o comprei.

— Mas estava na sua sala.

— Porque foi um presente.

— De quem?

Fiquei em silêncio. Ele pôs-se a me observar.

— Não me recordo...

Ele soltou uma grande gargalhada, o que me fez olhar para ele com raiva e desaprovação.

— Tenho pena desse coelho. — disse, agitando o enfeite nas mãos. — Ele é tão importante para você que nem mesmo lembra quem te deu ele!

— Ele não é importante! — levantei a voz levemente.

— Então você não vai se importar se eu me livrar dele, vai?

Por algum motivo, meu peito doeu. Parei de andar. Gilbert parou logo a seguir e começou a encarar-me, confuso.

— Devolva-me...

— Ah? Por quê? Ele não é importante, lembra?

— Ele é meu, então me devolva! – minha voz saiu alta e trêmula. Podia sentir as lágrimas começarem a se formar nos cantos dos meus olhos.

— Rod...

— Devolva-me! — gritei, sentindo as lágrimas escorrerem-me pelo rosto. Fechei os olhos, numa tentativa falha de conter o choro.

Ouvi o som de algo bater contra o chão, o que me fez abrir os olhos automaticamente. Vi meu coelho caído na calçada, deitado sobre a neve que cobria o chão. Não vi mais nada, pois no momento seguinte já estava envolto pelos braços de Gilbert num abraço apertado.

— O que você está fazendo, seu idiota?

— Rod, você está chorando...

As palavras que saíram da boca do albino soaram sérias, o que me levou a questionar-me se fora realmente Gilbert quem havia falado naquela hora.

Senti meus olhos arderem e meu rosto, com certeza, já estava vermelho. Eu realmente odiava esse tipo de contato físico... Meu peito doeu. Surpreendi-me com o fato de que eu ainda não havia tido uma parada cardíaca naquela noite. Meu peito simplesmente não parava de se apertar mais e mais a cada instante.

Forcei o albino, pelos ombros, a se afastar, mas não conseguia. Ele me segurava forte e com certeza não pretendia me soltar tão facilmente. Mesmo assim continuei a tentar me libertar.

— Ei, eu não vou te soltar. Pode esquecer.

— Largue-me logo! Esse contato todo é desnecessário!

— Você acha?

Não sabia o que dizer. Silêncio.

— Rod, eu realmente estou preocupado com você. Eu sei que eu não demonstro muito, mas você é importante para mim.

Senti meu rosto corar e agradeci por ele não poder ver meu rosto naquele momento. Como ele podia dizer coisas tão constrangedoras daquele jeito tão calmo? Não consegui dizer nada.

— Você tem agido muito diferente desde que se separou da Eliza, sabia? Suas músicas não são mais como antes...

— O... O que quer dizer? – as palavras saíram ríspidas de minha boca. Agora ele ia falar mal da minha música?

Senti-o passar a mão no topo de minha cabeça, bagunçando-me os cabelos, algo que ele sabia que me desagradava muito.

— Calma, Rod. Eu nunca falaria mal da sua música. — ele soltou um pequeno riso — É só que... Ela parece tão triste ultimamente...

Fiquei em silêncio. Surpreendeu-me que Gilbert, na verdade, prestasse atenção em mim quando eu tocava o piano. Eu sempre pensei que ele não se importasse com esse tipo de coisa.

— Eu não sabia que você era um apreciador de música clássica.

— Eu não sou. Ksesese. É só da sua música que eu gosto!

Ele fez menção de se afastar, mas, quando ele retirou os braços de volta de mim, colei meu rosto em seu peito.

— Ah? Rod? O que está fazendo?

— Eu prefiro ficar assim mais um pouco...

— Ah?

— Nego-me a tirar meu rosto de seu casaco, entendeu?

Sim. Ele entendeu. Entendeu que tinha urgentemente que me afastar para ver o que eu tanto escondia. E foi isso que ele fez, para meu desagrado. Ele não precisava ter visto aquilo...

— Rod, o seu rosto tá muito vermelho!

— É por causa do frio.

— Ah, vamos! Nem está mais nevando! Você está corado!

— Não estou. É apenas uma reação ao frio...

Por algum motivo nem mesmo eu acreditaria no que saía de minha boca. Como sou patético!

— Pare de rir!

— Mas é que você tá todo vermelho, Rod!

— Eu já disse que não é isso!

— Sei... — disse, revirando os olhos.

— Acredite no que quiser...

— Então eu acredito que você está envergonhado com a minha incrível pessoa porque você me ama!

Olhei para ele incrédulo. Meu rosto esquentou-se mais.

— Está mais vermelho... Chega a ser bonitinho...

— Fique quieto! Você fala coisas estúpidas e incompreensíveis! — senti minha voz elevar-se, meu rosto ainda vermelho. — Como pode falar essas coisas no meio da rua?

— O que eu disse é mentira? — disse, encarando-me fixamente, um sorriso estampado no rosto.

— Não. Digo, SIM! É claro que é mentira! Eu não te amo e não sei de onde você tirou uma ideia tão estúpida!

— Rod, a sua cara tá realmente muito hilária...

— Eu já te mandei parar de rir!

Ele aproximou o rosto dele do meu, beijando-me. Senti que devia afastá-lo, mas não tinha forças para isso. Ele mesmo se afastou.

— Ah? O que foi? — disse o albino, ao notar minha confusão e fúria — Foi só porque você estava falando muito alto e não seria bom para um aristocrata como você ficar gritando na rua. —terminou a frase com um sorriso convencido.

— O quê?

— Mas, se quiser, eu posso te beijar de verdade. — disse, voltando a se aproximar, mas desta vez tive como reagir, tapando-lhe a boca com minha mão.

— Não, obrigado...

Ele segurou minha mão e beijou-a, surpreendendo-me e me fazendo afastá-la rapidamente de seus lábios, que sorriam maliciosamente.

— Você é um estúpido.

— Você acha?

— Eu tenho certeza.

— Pelo menos você não está mais chorando...

Olhei embaraçado para ele. Ele precisava me lembrar? Meu coração voltou a apertar-se.

 — Sabe, Rod, dói muito aqui... — disse, apontando para o próprio peito. — quando eu te vejo chorando escondido.

Surpreendi-me e nem me lembrei de esconder minhas feições. Ele sabia que eu andava chorando.

 — Se quiser chorar, me avise, - olhou para mim com um sorriso calmo no rosto. — aí eu te emprestarei o meu ombro para você derrubar todas as suas lágrimas.

Por algum motivo, aquilo me alegrou. Sentia-me meio envergonhado, mas aquelas palavras também me traziam um certa felicidade que eu não experimentava há muito tempo.

 — Obrigado, eu acho. — respondi, virando o rosto escarlate.

 Ele sorriu.

 — Eu sempre vou estar aqui para você.

Senti um choque. Aquelas palavras me doeram, mesmo que fossem tão gentis quanto as de antes.

 — Não diga isso!

Meu tom de voz e minhas palavras assustaram o albino, que se surpreendeu e pôs-se a me encarar, perplexo.

— Não diga coisas que não pode cumprir! Retire o que disse! — senti as lágrimas me encherem os olhos.

  — Rod?

  — Você vai me abandonar! Todos que disseram isso me abandonaram! Retire as suas palavras!

Ele me puxou, com um abraço. Eu molhava seu casaco com minhas lágrimas e meu peito doía intensamente.

 — Retire o que disse... — minha voz se arrastava.

— Rod, eu não vou te abandonar, não seja estúpido.

 — Você vai... Vai sim.

  Senti os braços do albino apertarem-se mais, chegando a me machucar, mas eu não disse nada.

  — Rod, escuta. Eu só vou te dizer uma vez, então presta atenção.

 Ele segurou meu rosto firmemente, forçando-me a encará-lo de frente. Ele estava sério novamente.

  — Eu te amo. Ok?

Meu coração contraiu-se. Tentei desviar o rosto, que enrubescia mais a cada instante, mas não consegui, pois Gilbert ainda me forçava a encará-lo.

— Por que está dizendo isso agora?

— Porque eu não aguento mais te ver sofrer!

— Não quero suas palavras de pena. Guarde-as para você.

— Não são palavras de pena! Eu realmente te amo, Roderich!

...

— Você não acredita?

— Não, eu não acredito. — e eu realmente não acreditava.

— Quer que eu prove? — seu rosto assumiu um semblante mais malicioso e pervertido.

— Não, eu não quero. Muito obrigado. Agora me solte. — mas meu corpo exigia o contrário, e eu estava ciente disso. Minha voz tremia.

Ele obedeceu. Senti-me triste por isso. Será que eu o amava? Eu nunca havia pensado nessa possibilidade... Pus-me a observá-lo, enquanto ele se abaixava para pegar o coelho que havia atirado ao chão antes.

— Vamos para casa, então.

Ele sorria, mas era um sorriso diferente. Parecia meio chateado, meio infeliz. Ele não havia falado sério, certo? Quero dizer, só de pensar na possibilidade de Gil me amar chega a ser estranho. Mas, se for verdade, eu talvez tenha magoado seus sentimentos.

Olhei para o coelho que ele me estendia. Realmente lembrava ele. Peguei o objeto nas mãos e fiquei a encará-lo por um tempo. Logo depois, atirei-o para longe. Gil me observava atentamente, provavelmente curioso sobre a minha reação. Virei-me para ele.

— Eu não disse que não precisava daquele coelho estúpido?

Ele sorriu.

— É claro que não precisa! Você tem o incrível eu à sua disposição sempre que desejar.

— É. Eu sei. — dei um sorriso tímido para o albino, que reagiu encarando-me surpreso. — Não faça essa cara. Você que disse que ia estar sempre comigo, não é? Então cumpra o que prometeu.

Ele me puxou, selando-me os lábios com voracidade. Senti o desejo dele invadir-me também. Ele pediu passagem à língua e eu permiti. Sabia que ia me arrepender disso depois. Ficamos lá, no frio, sem que mais nada importasse. Nossas línguas se enroscavam loucamente e meu coração batia acelerado.

Não sei se os sentimentos dele foram verdadeiros ou não, mas tudo aquilo me fez perceber algo. Eu talvez seja realmente apaixonado por esse idiota.


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Notas finais do capítulo

Palavras da organizadora:
YAY! Mais uma one para a nossa coletânea! Dessa vez, temos aqui, uma adorável e romântica história da senhorita Nekoclair com toques de melancolia, uma fascinante atmosfera de inverno e uma perfeita compatibilidade com a composição escolhida por ela! Os noturnos do Chopin são belos, profundos e parecem expressar uma emoção quase contida! Eles, certamente, combinam com a personalidade do Roderich, sendo provável que essa seja a razão pela qual esse noturno, em específico, é praticamente o tema do personagem!^_^
Recompensem os esforços da autora, com comentários, sim?
Novamente, obrigada pelo interesse nessa coletânea! Continuem a apreciar, ler e comentar o trabalho dos autores envolvidos nela! :3