Piloto De Fuga escrita por Blue Butterfly


Capítulo 23
Capítulo 23


Notas iniciais do capítulo

Olá. Como prometi,hoje veremos o que acontecerá quando Bella entrar em Concluán. Boa leitura.



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-Leve isso com você e coloque assim que puder – Seth disse me entregando uma espécie de fone – Eu vou conectá-lo quando estiver lá dentro.

-Vai conseguir controlar o sistema? – perguntei guardando o fone.

-Sim, vou estar no comando quando você entrar. Pode confiar em mim.

Nesse momento Alice entrou no carro, sua roupa amassada e meio molhada, um pequeno arranhão em seu rosto. Ela me passou um cartão preto e brilhante e roupas com detalhes cinza, a expressão séria e tensa.

-Ela tem mais ou menos sua altura e o cabelo bate, o nome dela é Sara Cardoso, lembre-se disso, alguém pode te chamar – me entregou um tipo de chapéu e um tampão de boca – Está com o crepom?

Ergui a blusa, o papel colado na minha pele, separado do meu suor por uma fina camada plástica.

-Cai fora, eles já estão indo – Alice mandou ainda séria.

-Tome cuidado – Seth pediu sombrio.

-Pode deixar.

-Bella – Seth disse segurando meu braço – Só vou ter contato com você depois que você entrar. Tem certeza que quer fazer isso?

-Tenho, volto em doze horas.

-Espere – Alice pediu.

Ela tirou uma corrente do pescoço e a colocou no meu, um pequeno pingente lapidado de cor vinho pendia nele.

-Foi um presente, o Dino disse que trazia muita sorte a ele, e acho que realmente trouxe. Para mim ele também funcionou. Espero que traga sorte para você também.

-Obrigada – e sorri para ela.

Sai do carro e me juntei ao grupo de pessoas que saía da lanchonete, a maioria estava entretida em suas conversas e mal perceberam minha chegada, alguns me olharam com supremacia e continuaram andando, só dois me cumprimentaram, mas não esperaram resposta. Alice tinha acertado na escolha, a menina não era muito popular ali. O grupo foi um ônibus todo preto, o símbolo do governo nas laterais e eu segui. Sentei junto com outras pessoas da turma de cinza, um rapaz sentou ao meu lado, dando as costas para mim para conversar com uma mocinha toda risonha.

A viagem foi rápida, menos de quinze minutos e eu visualizei o inferno na terra.

-Concluán – eu murmurei sentindo medo.

Era um prédio imenso, inteiramente preto, coberto de chumbo e soldados armados. Só havia uma porta, soldados formando um pequeno corredor até ela, apertei o cartão com força, sentindo o plástico duro machucar minha mão. O ônibus parou, a porta se abrindo frente ao corredor e os empregadores começaram a descer, eles estavam tranqüilos, ninguém tremia da cabeça aos pés como eu tremia. É claro que não, eles só estavam indo para o trabalho, eu é que ia para a morte. Respirei fundo, tentando me controlar, e segui com os outros.

Os soldados não nos olhavam, pareciam entediados, cansados com a rotina, seu porte era marcial, seu rosto distraído, a mente vagando enquanto encaravam o céu, o companheiro da frente ou nos olhavam, sem realmente nos ver. Alice estava certa, nenhum deles tinha cabelo cheio como Edward, e as tonalidades eram escuras, a maioria castanha. Um pouco a frente os empregados passavam seus cartões antes de entrarem.

-Mais um dia daqueles – uma menina do meu lado reclamou, esperando minha resposta.

-Pois é – eu sussurrei baixando a cabeça.

-A Lílian do outro turno disse que eles fizeram uma narquia no banheiro, bando de parasitas imundos – ela caracterizou com nojo – Ainda bem que eles só duram sete dias.

Parei de andar, o moço que vinha atrás trombando comigo, uma pequena confusão de corpos surgindo. A menina me olhou, surpresa, enquanto eu tremia de ódio.

-Hei, o que está acontecendo? – um soldado perguntou com ferocidade, a arma em punho.

Antes que alguém respondesse, eu voltei a andar. Alguém explicou, eu não tenho certeza, e continuamos a andar. Quando chegou minha vez de passar o cartão meu coração gelou. Passei o cartão, esperando que a luz ficasse verde. Demorou cinco segundos, cinco longos e intermináveis segundos, mas finalmente a luz ficou verde.

Apesar do alívio, eu continuei séria e entrei, seguindo a garota idiota que me enfurecera, sua blusa tinha os mesmo detalhes que a minha.

Ao ir para o hospital eu não estava procurando uma cura para meu rosto, eu estava procurando a bondade de um médico. Observando meu pai, eu aprendi que médicos sempre falavam com seus pacientes, sempre respondiam suas perguntas quando o tratamento trazia dor, sem perceber que podiam dizer mais coisas do que podiam revelar. O médico me dissera que os soldados eram treinados para trabalhar em Concluán, uma vida toda dedicada àquilo. Bem, eu dedicara minha vida toda para não demonstrar meus sentimentos, para ser doce, delicada, sensível, obediente e vazia. Uma dama.

Nós paramos em frente a duas mulheres vestidas de branco da cabeça aos pés, o rosto rígido e furioso. Elas nos dividiram em grupos, a turma de vermelho foi por um dos corredores periféricos, a de amarelo foi para o corredor adjacente e nós seguimos no corredor principal, uma das mulheres nos guiando. Enquanto caminhava eu coloquei o fone discreto no ouvido, meu cabelo o escondendo enquanto eu ouvia o som dos nossos passos embaralhados. Lá dentro tudo era muito silencioso, o ar era velho, pesado, a luz era artificial e irritante, não havia nenhuma janela ou ventilação lá dentro, a prisão era uma imensa caixa fechada.

Paramos em frente a um grande refeitório, os pratos ainda estavam na mesa e o chão estava manchado de molho. Dois soldados imensos vieram trazendo vassouras, rodos e baldes. Em um dos cantos do refeitório havia duas grandes pias de metal soldadas na parede. Pelo nome, nos dividiram em grupos, um ficou para limpar o chão, outro para lavar os pratos e talheres e um menor, de apenas duas pessoas, para levar os pratos até a pia. Estava nesse grupo.

Tomei o lado direito das mesas, juntando os pratos. Estava começando meu trabalho quando ouvi um zumbido incomodo e uma voz surgiu dentro da minha cabeça.

-Bella? – a voz de Seth num tom metálico surgiu, alta demais.

Num gesto automático eu coloquei a mão na orelha, abaixando a cabeça e fazendo uma careta.

-Está muito alto – eu sussurrei esperando que ele ouvisse.

-Tudo bem – e a voz dele foi diminuindo.

Olhei ao redor, ninguém estava me encarando, eu voltei a pegar os pratos esperando que ele falasse novamente.

-Vire a cabeça para direita quando o som estiver bom – ele orientou enquanto regulava o som.

Ele começou a recitar uma poesia qualquer até que o som ficou bom e eu mexi a cabeça.

-Está no controle das câmeras? – perguntei abaixando a cabeça de novo.

-Sim, e já estou procurando por ele. Tem câmeras de mais nesse lugar, vai demorar um pouco até achá-lo e conseguir traçar um caminho para você.

Eu recolhi todos os pratos e talheres de um lado, levando para o pessoal perto da pia. Voltei para pegar o resto quando um grunhido chamou a atenção de todos nós.

-Idiotas imundos – o rapaz que fazia o mesmo trabalho que eu reclamou.

Os outros saíram de seus lugares e se aproximaram dele para ver o que o irritara. Eu continuei minha função com um pouco mais de pressa, correndo para a pia e largando os últimos pratos na crescente pilha de louça suja. Quando terminasse, eu deveria ajudar os outros, mas pensei em sair para procurar Edward.

-Não Bella – Seth reprovou minha atitude – Não faz nem uma hora completa que você está aí, vai ter que esperar mais antes de se separar do grupo.

-Mas Seth… – eu reclamei olhando para a parede a minha frente.

-Mas nada, vai ter que confiar em mim, volte ao trabalho.

Peguei uma vassoura e comecei a varrer o chão. O resto dos funcionários já estava de volta, o barulho animado das conversas surgindo enquanto limpávamos o lugar. Quando finalmente tínhamos terminado, o cheiro de comida empestou o local e eu senti náusea, o odor era de fritura e comida velha e borrachenta.

-Hora de sair.

A mulher de branco voltara e parecia enjoada com o cheiro também, seu pequeno nariz, pequeno demais para seu rosto fino e longo, estava franzido. Obedecemos e passamos por um outro corredor. Durante àquelas horas de trabalho eu perceberia que nunca fazíamos o mesmo caminho, a prisão parecia mais um labirinto cheio de corredores e becos sem saídas. Subimos por uma escada estreita até chegar num andar acima do refeitório. Vários solados estavam grudados nas paredes, eu olhei curiosa para eles e pude ver algo diferente nas paredes. Era como se houvesse um tipo de vidro, eu conseguia ver o refeitório dali, embora tivesse jurado que as paredes eram sólidas e impenetráveis quando estava lá embaixo Nosso grupo parou de andar, a turma responsável por levar a comida estava descendo com panelões fumegantes e de cheiro duvidoso, impedindo nosso progresso, soldados na frente e atrás desse grupo enquanto a sirene estridente e irritante tocava. Percebi os soldados enrijeceram e despertarem, seus olhares ficaram frios e mortais e eu tive medo, muito medo. Eles estavam prontos para tudo, para matar e para morrer.

Lá embaixo os presos surgiram, cada um acompanhado por um soldado. Meu sangue gelou.

Eles não pareciam mais seres humanos, seus corpos eram magros, cheio de feridas abertas e rasgões, olhavam para o chão, como animais indo para o matadouro, tropeçavam nos próprios pés e se encolhiam quando os soldados se aproximavam. Não eram retratos da criminalidade, eram retratos do medo e da morte.

Um deles caiu no chão, de joelhos, e começou a chorar. Era um homem de quarenta anos, mais ou menos, caído ali, chorando feito uma criança com medo do escuro. Os presos olharam para ele, mas não reagiram, não restara humanidade suficiente neles para reagir ao sofrimento do outro. Ao meu redor os funcionários desviaram os olhos e olharam para o chão, incomodados. Os soldados não sorriram, mas não pareceram tristes com a cena. Se aqueles infelizes do refeitório tinham perdido a humanidade, aqueles soldados eram verdadeiras máquinas.

-Bella, não faça nada – Seth berrou no meu ouvido, a ordem em cada letra de sua frase.

Eu não entendi, estava parada como todos os outros, olhando a cena como todos os outros, não tinha feito nada que me entregasse até ali. Mas então aconteceu.

Um rapaz correu até o homem caído e o amparou, protegendo-o com o corpo no mesmo momento em que o soldado responsável pelo homem caído erguia mão, um chicote de couro aparecendo, e batia no homem, ou pelo menos tentava Foi o jovem que apanhou.

Ele gritou de dor, o soldado responsável por ele se aproximou e o atirou para longe com violência, o rapaz rolou e caiu no chão de costas.

-Bella, calada! – Seth berrou antes que eu gritasse.

Eu mordi o lábio inferior com fúria, engolindo o grito que subia na minha garganta, Olhar para o outro lado também ajudaria, mas eu era incapaz de desviar os olhos dele, mesmo quando o soldado avançou e começou a esmurrá-lo.

A fila voltou a andar e eu tive que seguir, alguém atrás de mim me empurrava impaciente.

-Siga Bella – Seth ordenou nervoso.

Meus pés caminharam no chão duro, meu rosto angustiado enquanto as imagens grudavam no meu cérebro, como tatuagens que apavorariam minhas noites a partir dali: a imagem de Edward apanhando.

-Tem que manter o disfarce Bella, volte a trabalhar - a voz metálica mandou.

As horas se arrastaram, lerdas. Eu me movia como um fantasma, trombando nos outros, varrendo, espanando, lavando, esfregando. Meu corpo estava cansado, a beira da exaustão final, mas eu seguia. Lavei banheiros cobertos de fezes, sangue e urina, passei pano em corredores e mais corredores, me sentindo perdida lá dentro, quase asfixiada. Se não fosse a voz de Seth me tranqüilizando, me garantindo que sabia onde eu estava, eu teria entrado em pânico.

Eu já tinha certeza que estava lá a meses quando, finalmente, Seth falou:

-Tem duas horas para acabar seu turno, hora de agir.

-O que eu faço? – perguntei me abaixando, fingindo limpar algo no chão.

-Siga esse corredor, conte três entradas e entre na quarta. Vai achar um rapaz terminando de limpar uma estante.

Só havia duas pessoas comigo, mas eles se afastavam com rapidez enquanto varriam o chão e conversavam. Eu olhei para o balde, havia uma escova pesada ali, a única arma que eu poderia usar. Peguei o objeto e comecei a andar.

-Bella? – dessa vez foi a voz de Alice que eu ouvi.

-Sim – respondi.

-Eu sei que você consegue, mas vai ter que se esforçar. Temos só duas hora para fazer tudo, vai ter que ser rápida.

Concordei, entrando no corredor. O rapaz estava distraído, assobiando. Eu me aproximei tentando fazer silêncio, meus pés mal tocando o chão. Ao me aproximar, ergui a escova no ar.

-Com força Bella – Alice gritou.

Eu bati na cabeça dele com toda a força que tinha, permitindo que as lembranças me tomassem pela primeira vez, lembranças que eu vinha escondendo, que eu não queria lembrar. Mas, depois de ver Edward apanhando, suas roupas rasgadas, seu corpo machucado, as lembranças alimentaram minha fúria e eu bati no rapaz com toda a força.

Ele caiu no chão, assustado e acuado, como um bicho.

-Me desculpe – eu pedi e bati nele novamente.

O rapaz se jogou sobre mim, o espanto calando sua voz enquanto me batia. Eu revidei, socando e chutando.

-Dá uma joelhada nele – Alice comandou agitada.

Obedeci, o rapaz rolou, gemendo de dor, eu avancei em cima dele e bati em sua cabeça com mais força, até que ele parou de se mexer.

-Bate de novo – Alice mandou.

-Ele não está se mexendo – disse me recusando a ferí-lo novamente.

-Ele pode estar fingindo – Alice soltou irritada.

-Eu não vou bater nele – decidi.

Saí de perto do rapaz, peguei o balde de água e abri sua boca. Joguei dois comprimidos lá dentro, derramei um pouco de água e fiz com que ele engolisse.

-Ele vai acordar assim – Alice reclamou insatisfeita.

Mas ele não acordou, eu esperei cinco minutos, até ter certeza que os comprimidos agiriam, e comecei a tirar suas roupas.

-Tem alguém por perto? – perguntei.

-Não – Seth assumira o controle novamente – Mas ande logo, tem um soldado na região.

Eu me apressei, meu olhar fugindo de seu corpo quando ele apareceu. A parte das calças foi incrivelmente constrangedora, mas eu ignorei minha vergonha e continuei. Tirei o chapéu e o tampão em sua boca, deixei seus pertences juntos  num canto e comecei a puxar  seu corpo. Era muito pesado, a coisa mais pesada que eu já carregara na vida, mas consegui levá-lo até uma salinha vazia que tinha percebido antes. Lá dentro, escondi o corpo num canto, correndo para fora.

-Consegue trancar a porta? – perguntei colocando as roupas do rapaz num balde, um pano sujo por cima.

-Porta fechando – ele respondeu imitando um robô. Para minha surpresa, a porta se fechou sozinha, o som de suas travas fechando.

-Para onde? – perguntei, olhando para os dois lados.

-Direita.

Corri, meu coração batendo furioso dentro do peito.

-Pare – ele mandou – Um soldado vai aparecer daqui a pouco.

Eu peguei outro pano e limpei a maçaneta da porta, como via alguns dos funcionários fazerem. O soldado passou por mim, sem se quer me notar. Quando ele desapareceu Seth mandou:

-Pegue o corredor a sua esquerda, chegue até o fim e continue à direita.

E assim foi nos vinte e cinco minutos seguintes, ele mandava e eu corria, ele mandava, e eu parava, até que chegamos, nas portas trancadas ele fazia suas façanhas, nos caminhos livres, eu corria como se minha vida dependesse disso. E ela dependia.

Eu só parei de correr quando entramos num corredor escuro e estreito.

-Agora vá com calma, uma sirene vai tocar e os soldados vão correr para ver o que é. Eles não saírão por esse corredor, mesmo assim, entre na sala ao lado – e a porta se abriu.

Eu corri para lá e me escondi num canto me encolhendo e tapando os ouvidos. A sirene explodiu, furiosa, e o movimento dos soldados começou, podia os ouvir correndo na direção oposta, o ruído era pouco.

-Poucos soldados? – perguntei.

-Só ficam cinco guardando o corredor dos presos, os outros só aparecem quando é hora de comer ou usar o banheiro. Saía daí e entre no corredor.

Fiz o que ele mandou, assim que entrei, as duas portas nas extremidades do corredor fecharam, me trancando ali com os maiores inimigos do Partido.

-Não fale Bella – Seth aconselhou – Ninguém pode saber que você está aqui. Continue andando – e eu continuei – Pare – e eu parei.

Estava na frente de uma porta sem janelas de chumbo maciço. Um barulho estranho surgiu e a porta abriu para dentro, o ar vicioso do interior me atingindo com força. Tapei minha boca, temendo vomitar, o cheiro era de carne podre, mas um tipo de carne especial: carne humana.

-Ele não vai sair – Seth disse – Está encolhido em um canto, se aproxime com cuidado, ele pode tentar te atacar.

Dei um passo inseguro para dentro. Mas então eu me sacudi mentalmente, era Edward lá dentro, eu não tinha que ter medo, não dele. Entrei com pressa, o lugar era muito pequeno, apertado, não dava nem se quer para dormir estendido no chão. Não havia uma cama ou uma pia, o quarto era nu e quente, muito quente.

Ele não ergueu a cabeça quando eu me aproximei, estava encolhido num canto, todo ferido, seus braços cheio de rasgões e feridas abertas, ele perdera muito peso ali, estava, no mínimo, dez quilos mais magro, seu corpo cheirava a morte.

-Edward – eu sussurrei, era impossível alguém me ouvir estando lá dentro.

Ele ergueu a cabeça, no início surpreso por ouvir seu nome, depois incrédulo ao me ver ali. Sua expressão mudou para o choque, foi para o horror absoluto e terminou numa estranha expressão de calma.

-Insanidade – ele disse com cansaço.

-O que ele disse? – Seth perguntou confuso.

-Insanidade, acho que ele não acredita que eu esteja realmente aqui – comentei.

Com essa eu não esperava. Tinha um plano para ele consciente ou inconsciente, mas não para ele acreditando que tudo não passava de uma alucinação.

-Edward, temos que sair daqui – eu disse com pressa, tirando as roupas do balde e jogando para ele.

Ele não se mexeu, apenas ficou me olhando, como um cego que vê a luz pela primeira vez.

-Vista-o – Seth mandou com praticidade.

-O quê? – eu quase gritei.

-Não é hora para sentimentalismo ou pudor – Alice surgiu de novo, ainda irritada comigo.

Eu tive que concordar, não era o momento de ficar envergonhada. Me abaixei até ele e arranquei sua camisa, passando o tecido podre e rasgado por sua cabeça.

-Edward, tem que acreditar que isso é real – eu pedi pondo a camisa limpa nele – Nós temos que sair daqui. Eu vim te tirar daqui.

Ele continuou me olhando, um pouco de confusão invadindo seu olhar. Eu o puxei para cima, colocando, com esforço, ele de pé. Minhas mãos tremeram quando eu toquei sua calça de algodão rasgada e imunda

-Bella! – ele grasnou surpreso, segurando minhas mãos.

A confusão em seu rosto se intensificou, até que ele compreendeu o que estava acontecendo. Eu sorri, aliviada.

-Vista isso – ordenei jogando a calça limpa para ele e lhe dando as costas.

Sabia o que fez Edward acreditar que aquilo era real. Um dia, conversando com meu pai sobre seus pacientes, falamos sobre loucura e alucinações e meu pai contou que, normalmente, as pessoas tinham alucinações com coisas que elas julgavam ser coerentes, ou seja, imaginavam alguém perseguindo ou matando-as pois, lá no fundo, elas acreditavam naquilo.

-Toda a alucinação é coerente – meu pai me disse.

Eu acreditei e, aparentemente, aquilo funcionou. Nenhuma alucinação de Edward poderia ser tão louca a ponto dele me imaginar tirando suas… calças.

Corei violentamente com esse pensamento e fiquei feliz por estar de costas para ele.

-Você está aqui? De verdade? – ele perguntou ainda atordoado.

-Estou, não achou mesmo que eu deixaria você morrer, achou?

Ele se aproximou, cambaleando e totalmente vestido. Eu olhei para ele, sentindo meu coração doer, ele estava tão machucado, tão ferido, nunca vi ninguém num estado tão crítico. Edward tocou minha face, o rosto duro, sofrido. Eu não sabia se um dia ele voltaria a sorrir seu sorriso rasgado.

-Saíam daí – Seth ordenou com pressa – Eles estão voltando.

-Vem – disse pegando Edward pela mão – E fique quieto.

Corremos dali, a porta se fechando em seguida, Edward arregalou os olhos, e ficou ainda mais confuso quando a porta do corredor de abriu para nós passarmos por ela.

-Seth está fazendo isso – expliquei enquanto corríamos pelos corredores.

-Os funcionários estão se reunindo. Esquerda Bella – ele disse quando eu estava indo pelo caminho errado – Explique para ele o que está acontecendo. E Alice mandou você não esquecer do crepom – ele lembrou.

Eu quase dei um tapa na testa, continuamos correndo até chegar no lugar onde eu atacara o funcionário, no caminho resumi nosso plano o mais rápido possível.

-Isso é uma loucura – ele contou quando eu terminei.

-Se der certo, não importa se é loucura ou não – respondi ajoelhando no chão.

O balde de água ainda estava lá, ninguém voltou para recolhê-lo, eu puxei ele para baixo, tirei o crepom debaixo da blusa e molhei o papel.

-Passe isso no cabelo e nas sobrancelhas.

Ele estranhou, mas não questionou. Para ajudar, eu trabalhei em seu rosto, manchando suas sobrancelhas, entretanto, ao tocar sua pele, percebi algo que não percebi no quarto quente: ele estava ardendo de febre! Ergui seu rosto, olhando para seus olhos.

-Você está doente – me apavorei.

-Estou bem – ele mentiu.

-Bella! – Seth me apressou.

Eu deixei essa passar, não tínhamos tempo para discutir cuidados médicos, porém ele estava muito doente, seus olhos avermelhados e desfocados provavam isso.

Coloquei o tampão no rosto dele, depois arrumei o chapéu escondendo ao máximo seu cabelo.

-Está bom, vamos. E leve isso com você.

Entreguei uma vassoura e o balde para ele.

-Seu nome é Ricardo – contei olhando o cartão dele, pegando o material de limpeza enquanto Seth instruía o caminho – Ricardo Melo, se alguém falar seu nome, você atende.

-Certo – ele concordou.

Sua voz ficou estranha e ele cambaleou, caindo na parede e pondo a mão na testa.

-Você está bem?

-Eu estou Bella – ele voltou a mentir ficando de pé.

-Sara – eu lembrei o ajudando a se firmar.

-Corram – Seth mandou aflito – Eles descobriram que tem algo errado.

Empalideci e comecei a correr ainda mais rápido Edward me seguindo com dificuldade. Demorou mais do que eu pensei que demoraria, mas finalmente chegamos no quarto de materiais. Um grupo de funcionários estava chegando, eu respirei fundo me tranqüilizando, o mais difícil já tinha acontecido, Edward estava do meu lado, inseguro, nervoso, suando, queimando de febre, mas do meu lado.

-Fale para ele se acalmar – Seth pediu – Vocês estão quase saindo daí, não estraguem tudo.

-Se acalma – eu sussurrei sorrindo para ele.

Ele concordou, fechando os olhos e tentando se acalmar. Eu guardei o material de limpeza e caminhei com os funcionários, para fora, Edward vinha atrás de mim, a cabeça baixada, o calor doentio de seu corpo tocando o meu. Não tinha como apressar o ritmo da fila para ir embora, seguíamos na fila, segurando nossos cartões. A ansiedade me consumia, violenta, a impaciência ardia dentro de mim mais forte que a febre dele.

Faltava só duas pessoas na nossa frente. Foi nesse momento que o jogo todo virou.

-Parem os funcionários – um soldado berrou atrás de nós.

-Droga! – Seth xingou furioso – Corra Bella.

Eu ouvi uma troca de tiros começar, Seth abriu a porta de fuga, chumbo e ferro, os soldados olhando atônitos para ela, sem saber o que estava acontecendo, eu segurei a mão de Edward e corri com ele. Do lado de fora oito soldados estavam agachados, atirando furiosamente contra uma Ferrari vermelha a distância. O que me espantou não foi a Ferrari tão perto de Concluán, ou os soldados, mas sim o ataque que vinha da Ferrari. Era artilharia pesada.

Um dos soldados percebeu nós dois correndo e apontou sua arma para mim, sem hesitar. Ele atirou, frio como uma máquina, Edward me empurrou, o tiro pegando de raspão nele e rasgando parte da pele de seu braço. Um estrondo me deixou surda, Alice, pois só ela podia estar fazendo aquilo, atirou direto na prisão, provocando um barulho muito forte e um tremor no chão, tirando a concentração dos soldados. A Ferrari correu em nossa direção, a porta se abrindo pelo caminho enquanto uma bomba de fumaça era jogada na direção dos soldados. Sem que mandassem, eu corri o caminho que faltava, empurrei Edward na parte de trás do banco, Alice me ajudando a trazê-lo para dentro enquanto Seth pulava para o lado do carona. Assumi o volante, fechei as portas e corri para longe, tomando a direção que Seth indicava.

-Vão vir atrás de nós – eu falei o óbvio.

-Então é melhor correr – Alice respondeu ofegando – Fechou as drogas das portas daquele inferno? – essa foi para Seth.

-Estão todas trancadas. De Concluán eles não saem. O problema vai ser aqueles oito soldados. Não, entre na cidade Bella – Seth comandou – Temos mais chance de fugir dentro da cidade do que no vazio.

Obedeci, contrariada, meu coração aos pulos.

-Edward, você está bem? – perguntei, minha voz alterada.

Eu ouvia seus dentes baterem, suas palavras se confundindo no começo de uma alucinação.

-Ele está ardendo em febre – Alice gritou.

Seth atirou um cobertor que estava no chão aos seus pés, trêmulo. Estávamos no limite, o medo esmurrava as paredes do nosso coração e não nos deixava respirar. Meu pé doía enquanto eu pressionava o acelerador até o fim, meu corpo endurecido mal captando o frio dentro do carro, frio que poderia terminar fácil, bastava desligar o ar-condicionado e pôr o aquecedor para funcionar. Seth abriu o computador e deu alguns comandos, sua voz tremendo e numa oitava mais alta que o normal.

-Vire a direita – ele mandou quando entramos na cidade – Depois pegue a rua principal e vá até o fim dela. Se conseguirmos chegar até a rodovia, estaremos seguros.

Nós percebemos que aquela frase possuía um caráter condicional, mas não comentamos. Edward tremia e arquejava no banco de trás, delirando pela febre que o consumia. Alice prendera o cobertor ao redor dele e tentava mantê-lo o mais parado possível. Ao meu lado Seth digitava furiosamente, ordenando várias vezes “desativar”. Uma pequena parte do meu cérebro relacionou isso com a ausência de radares e todos os sinais abertos que encontramos, mas foi só uma parte, o resto estava dividido entre nos tirar dali e cuidar de Edward.

-Merda! –Seth gritou com fúria socando a maleta do computador – Vire na próxima, eles montaram um bloqueio nas ruas que levam a principal. Vamos ter que fazer um contorno.

Alice xingou baixinho, eu virei o carro, quase batendo numa van de churros. Seth me orientava, tivemos que mudar de caminho mais duas vezes, mas finalmente chegamos a larga e movimentada rua. Não deu tempo de sentir alívio, as sirenes explodiram atrás de nós fazendo com que os três xingassem ao mesmo tempo. Alice se mexeu atrás de nós, procurando algo nas bolsas.

-O carro é blindado? – ela perguntou no meio de sua busca frenética.

-Meio tarde para fazer uma pergunta dessas – eu respondi, os nervos a flor da pele – Ele é – garanti, cruzando dedos imaginários para estar correta.

-Então pisa fundo que eu vou tirar eles do caminho – ela disse com frieza.

Antes que eu perguntasse o que ela ia fazer, Alice abaixou o vidro e atirou no carro de polícia, sua precisão incrível deu conta do recado, depois da troca de tiros (por tudo que há de sagrado, aquele carro era blindado!) houve o som ensurdecedor de carros batendo e a viatura silenciou seu grito. Alice gritou de alegria, rindo, eu sorri animada, a adrenalina correndo nas minhas veias e tomando o lugar do medo. Seth começou a rir, meio desvairado, e gritou em triunfo que conseguia parar os carros da polícia ao nosso redor, o caminho estava livre para nós.

-Eles tentaram fazer uma barreira – Seth explicou agitado – Então ainda haverá alguns tiros, mas eles não vão nos perseguir.

O gosto da vitória explodiu em mim e eu ultrapassei os últimos carros, de repente tudo podia sim terminar bem, nós três poderíamos ser os primeiros a fazer um plano de invadir Concluán e sair de lá com vida. E Edward poderia viver!

-Se abaixa Alice – Seth mandou.

Havia uma parede humana a nossa frente, soldados armados nos encaravam com ódio, prontos para atirar, um tipo de arame farpado cobrindo o chão em vários lugares num caminho de cem metros. Gelei. Nós não tínhamos contado com aquilo. O computador de Seth, as armas de Alice, o carro blindado, nada nos ajudaria contra aquilo. Seth congelou ao meu lado, confusão e pavor tocando sua expressão.

-Não vamos conseguir – ele soltou de uma vez, branco como giz.

-Pelo menos nós tentamos…

A voz tímida e frágil de Alice me trouxe uma onda de raiva, nós tínhamos chegado tão longe que perder naquele momento era revoltante. Eu não podia permitir que acabasse daquele jeito, não salvara Seth e Alice para que eles morressem daquela forma, pois nós, sem dúvida, morreríamos se nos pegassem. Alice e Seth não podiam morrer, não eles, não o garoto hacker que fazia o impossível com o computador e que eu prometi trazer de volta para a sobrinha; não a menina corajosa que comera o pão que o diabo amassou e mesmo assim continuava lutando. Edward não podia morrer, não aquele anarquista corajoso que lutou desde sempre pela liberdade e pela verdade, não o garoto de cabelo vermelho e olhos profundos, com um peito macio e quente sempre disponível para mim e meus pesadelos.

-Não vai acabar desse jeito – eu grunhi sem diminuir a velocidade, uma idéia louca surgindo na minha cabeça.

Havia uma pequena chance, uma pequena e estúpida chance, mas eu me agarrei a ela com todas as forças.

-Alice, derrube aquele poste perto dos solados – mandei.

Confusa, ela obedeceu. Eu toquei no painel, até achar o botão verde piscante, contei mentalmente até três e o apertei no mesmo momento que o poste cedia e desmoronava no chão. As imagens ao nosso redor, que antes eram praticamente irreconhecíveis, se tornaram um borrão de cores miscíveis quando a velocidade explodiu em números fantásticos, eu girei um pouquinho o volante e me segurei no banco com uma mão, a outra agarrando firme o volante. Eles perceberam o que eu ia fazer, Seth empurrou o computador na maleta e se agarrou no banco, Alice segurou o corpo de Edward com firmeza e fechou os olhos.

Primeiro houve o impacto violento do carro com o poste, nossos corpos jogados para frente, depois…

Depois houve o pasmo e a surpresa que destruíram a dor do impacto quando o carro saiu do chão e voou sobre a cabeça dos soldados boquiabertos, ultrapassou os cem metros e caiu no chão, quicando como um touro selvagem. Com esforço, eu controlei o carro e nos mantive na rua, e não nas lojas ao redor. Continuei a correr, assustada e maravilhada de mais para falar alguma coisa, até que Alice quebrou o silêncio exclamando duas oitavas acima:

-Ai meu pai! Você conseguiu!!!

Nos entreolhamos e começamos a rir, apavorados e histéricos, a beira de um ataque de nervos, o alívio embaralhado e irreconhecível dentro de nós.

-Você conseguiu! Você conseguiu! – Alice repetia pulando no banco.

Lágrimas rolaram em nossos rostos, lágrimas de alegria, esperança, encanto. Lágrimas de vitória!

-E agora? – perguntei para Seth.

-Agora nós vamos para casa!


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Notas finais do capítulo

Bem,foi isso. E aí, o que acharam? Comentem!!! Bjinhus e até breve.



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