Piloto De Fuga escrita por Blue Butterfly


Capítulo 17
Capítulo 17


Notas iniciais do capítulo

Oi meus amores, boa leitura:)



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–Sem sono? – Edward perguntou sentando ao meu lado.

Eu estava na casa em ruínas, sentada perto da porta observando a poeira dançar com o vento frio e seco de inverno, abraçando minhas pernas e repousando meu queixo em meus joelhos. A voz dele me pegou de surpresa, às vezes Edward era silencioso como um gato no telhado de uma casa.

–Pois é. Seth devia vigiar essa noite, só que ele passou as últimas noites acordado, finalizando nosso plano, então eu dei um descanso para ele e vim no lugar dele.

Edward me olhou, incerto entre me repreender pela loucura do plano ou rir de tudo aquilo. Eu conhecia todas as suas expressões faciais, sabia quando ele estava em dúvida, feliz, bravo, distinguia a sutil diferença entre quando ele estava irritado e quando ele estava com ódio. Ele se decidiu rindo na minha cara e balançando as chamas vermelhas de seu cabelo de uma lado para o outro. Como num passe de mágica, um pacote de bolacha surgiu na sua mão e ele me ofereceu a primeira.

–Obrigada – agradeci pegando o biscoito – Como vão as coisas?

–Feias, acharam um dos grupos de resistência e prenderam a maioria – ele disse sombriamente – Levaram o líder para Concluán.

Nós dois trememos, nem um dos dois por causa do frio.

–Ás vezes, quando eu acordo, eu os ouço gemendo – disse baixinho – Murmurando, pedindo que não os mandem para lá. Concluán faz parte do pesadelo de todos aqui.

–Concluán é o inferno na terra – Edward falou acomodando as costas na parede e me olhando de frente – É o pesadelo de quase todos daqui.

–Não é o seu? – eu perguntei em dúvida.

Claro que eu me lembrava do que ele tinha me dito enquanto estávamos na casa de Dino, que ele não tinha medo de ir para Concluán, mas mesmo assim eu não podia imaginar que ele não tivesse pesadelos com aquilo. Todos lá tinham, até mesmo Alice e Seth que só conheceram Concluán depois que chegaram aqui. As notícias eram sempre as piores, lá havia todo o tipo de tortura, os sete dias que você passava lá enquanto esperava a conclusão de seu julgamento eram sete dias no mais profundo inferno. O pior de tudo é que você ficava vivo nos sete dias, só morria depois do julgamento, quando, na verdade, você desejava isso desde o primeiro dia. Por isso quem era preso não pedia por sua vida, todos preferiam morrer a continuar um segundo em Concluán.

Era por causa disso que eu duvidava que ele não tivesse pesadelos com Concluán.

–Sim, é o meu, mas eu não estava falando de mim, estava falando de você. Eu nunca ouvi você dizer que sonhou com Concluán. Na verdade, eu nunca ouvi você dizer que sonhou com algo, ou teve um pesadelo.

Baixei a cabeça. Não era um assunto que eu queria falar naquele momento, estava naquele lugar justamente para fugir dele. Edward não pressionou, chutou meu pé de leve e, quando eu o encarei, ele sorriu para mim e começou a cantar a mesma música que usava para me embalar. Eu me acostumara tanto em ouvi-lo cantar aquela música enquanto trabalhava pela casa que já sabia mais ou menos a letra e o acompanhei.

Pelos campos há fome em grandes plantações, pelas ruas marchando indecisos cordões, ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acreditam nas flores vencendo o canhão.

Seu sorriso ficou ainda maior, quase rasgando suas bochechas.

–Aprendeu a letra! – ele afirmou como um elogio.

–Você canta essa música vinte e quatro horas por dia, é impossível não aprender.

–Meu pai cantava essa música para mim – ele contou – Era minha canção de ninar.

–Jeito estranho de fazer uma criança dormir – eu provoquei em brincadeira.

–Não muito, eu era pequeno, não entendia a letra, mas gostava da cadência de sua voz enquanto ele me embalava. Essa é a melhor lembrança que eu tenho dele – e um sorriso terno surgiu.

–Você nunca me falou de sua família.

–Eu sei. Eu nunca falei dela para ninguém.

–Por quê? – perguntei sentando ao lado dele, meu braço encostando no braço forte dele.

–Não sei bem, mas nunca achei ninguém com quem eu me sentisse a vontade para dizer. Não é uma história bonita, e eu não preciso da pena de ninguém.

–Eu não tenho pena de você – falei deitando a cabeça em seu braço.

–Eu sei garota – ele riu, a mão indo para os meus cabelos num gesto automático.

–Vocês moravam aqui? – perguntei com timidez. Não tinha certeza se ele falaria comigo sobre seus pais.

–Sim – ele respondeu para o meu alívio.

–Foram felizes? – tornei a pergunta, ainda incerta.

–Muito.

–Era você, seu pai e sua mãe, ou havia mais alguém?

–Não, havia um cachorro também, mas não acho que você vá contá-lo como integrante da família.

–Família pequena – eu brinquei lembrando que em casa nós éramos em cinco, uma grande família repleta de amor.

–Meus pais não tiveram tempo para me dar um irmão – ele disse com amargura.

–Mas pelo menos vocês foram felizes – sussurrei, esperando que minhas palavras não causassem mais dor ao seu coração já tão massacrado pela vida.

–É, pelo menos nós fomos felizes, foi pouco, mas foi cheio de amor e felicidade – a voz saiu fria, traindo a emoção de seus olhos.

Eu não perguntei mais nada. Quando a voz dele ficava fria eu não continuava o assunto, aquele era o jeito dele de dar um basta na conversa. Mudei de assunto.

–Sobre a música, acha que é realmente possível uma flor vencer um canhão?

–Não – respondeu, aliviado com a mudança – Matariam a flor e quem a pôs ali, flores não vencerão canhões, isso é uma utopia, assim como o plano que vocês estão bolando – ele alfinetou rindo.

Eu fiz cara feia e dei um leve tapa em seu ombro, voltando a deitar minha cabeça em seguida.

–Eu acho que as flores vão vencer os canhões – contestei com calma.

–Como?

–Não acho que ele falava das flores de maneira literal, assim como os canhões não são literais. Acho que, do mesmo jeito que os canhões representam a guerra, a brutalidade, a repressão, as flores representam a pureza, a fragilidade, a ternura e a beleza. E essas são características das crianças.

–Bella, não vão ser crianças que vão vencer essa guerra – ele disse com impaciência.

–Vão ser sim, Edward. Por mais que isso dê certo, mesmo que nós mostremos a todo o mundo que estamos certos e eles errados, essa guerra só vai terminar quando as diferenças, o ódio que nos separa acabar, e isso só vai acontecer com as crianças. Elas vão vencer essa guerra, pois só elas têm a capacidade de amar o lado adversário.

–Não sei se compreendo o que quer me dizer.

–Edward, mesmo que tudo se resolva, que a verdade seja revelada, que nós ganhemos, essa guerra não vai acabar. Ela não acaba com a derrota do Partido, muito pelo contrário, ela só vai mudar, ficar mais clara.

–O quê? Como assim?

–Pense em Tânia – eu exemplifiquei, não ligando para a contração de seu corpo quando eu falei o nome da menina – Ela me odeia, por que, para ela, eu sempre serei o inimigo, independente se isso tudo terminar ou não, o ódio dela não vai acabar, ela sempre vai culpar os outros do outro lado da barreira pelo que está acontecendo. Ressentimento, raiva, ódio, têm corações envenenados com isso, muitos corações, seja do lado dos anarquistas ou do lado do Partido, isso não vai acabar Edward. Mesmo que o Partido caía, o ódio não vai cair. A verdadeira guerra não é entre a mentira e a verdade, ou entre nós e o Partido, a verdadeira guerra é entre um ódio gerado há muitos anos atrás e uma tênue esperança de paz.

–Acho que entendi mais ou menos. Você está dizendo que o nosso problema não são os campos de trabalho forçado, ou Concluán, e sim o ódio, o desprezo que separa as pessoas? – ele perguntou olhando para mim.

–Exato. Lembra os regimes totalitários?

–Nazismo, fascismo, franquismo, salazarismo – ele foi nomeando com repugnância.

–Sim, em especial o nazismo. O problema dos judeus não eram os campos de concentração, mas sim o ódio que os nazistas sentiam por eles. Mesmo depois que Hitler e o partido nazista foi deposto, os judeus tiveram que enfrentar o preconceito e ódio. Não eram mais escravos, mas também não eram tratados como gente. Libertar as pessoas, tirá-las dos campos de trabalho forçado não vai restaurá-las na sociedade, sempre haverá o olhar de superioridade e de inferioridade, a raiva. Um dia Alice disse que qualquer um daqui daria tudo para voltar a sua vida antiga. Acho que é um dos motivos do ódio que Tânia sente por mim, por que eu estava vivendo muito bem, tendo do bom e do melhor enquanto ela… enquanto vocês passavam por necessidade. E eu não fiz nada para mudar isso…

–Você fez sim, você nos ajudava – ele me interrompeu.

–Eu te ajudava, nunca liguei para eles antes de vir para cá. Tudo o que eu queria era que você ficasse em segurança, não pensava na vida dos outros anarquistas.

–Você não sabia – ele disse tentando outro rumo para me inocentar quando o primeiro falhara.

–Muita gente não sabe o que está acontecendo, Edward, mas isso não vai impedir que quem está passando por dificuldades deixe de nos culpar por não ter feito nada. A maior dor não é física, é psicológica, social. Podemos curar uma perna, um rosto – e toquei seu rosto com carinho – mas não podemos curar sonhos destroçados, esperanças dizimadas, corações rejeitados e massacrados pelo ódio. Não serei eu ou você que terminará essa guerra, serão as crianças. Quando filhos de anarquistas, de Senadores, de trabalhadores semi escravos, de soldados e de ricos se encontrarem, daí sim essa guerra termina.

–O que vai acontecer quando esse bando de crianças se encontrarem? – ele perguntou envolvendo meus ombros e me puxando para mais perto, para que o calor de seu corpo esquentasse o meu.

–Você nunca foi em um parque? – eu perguntei rindo – Crianças desconhecem o ódio e o desprezo, quando elas se encontram elas só pensam em brincar, em se divertir, nada mais importa, não importa se o garotinho do lado é seu oposto, eles brincam. Crianças sabem perdoar, sabem amar, e o que é feito na infância é levado para a vida toda.

–Então essa guerra vai demorar – ele concluiu.

–Mas vai terminar, ou no mínimo se atenuar.

–Confia tanto assim que tudo vai dar certo? – ele perguntou com curiosidade.

–Meu pai sempre dizia que todos os seres humanos são iguais: carne – e toquei sua bochecha – Osso – e toquei seus dedos – Pele – e minha mão deslizou na sua testa e no seu nariz – e Coração – e minha mão parou aberta em seu peito, fazendo com que eu sentisse suas batidas – Somos iguais, guiados pelo bem e pelo mal, com um senso de sobrevivência formidável, mas um instinto de grupo fascinante. Não gostamos de ver outro ser - humano sofrer, isso não é uma exceção, é uma regra geral. Então eu acredito sim que tudo vai acabar bem no fim, vai demorar, talvez eu morra e o Partido ainda esteja no poder, mas um dia acaba. Você não acredita nisso?

–Acredito, mas com reservas – ele respondeu com cautela.

–Como assim?

–Não sei se vai restar muita coisa depois que isso acabar. Tem gente, muita gente morrendo Bella. Mais gente do que você pode imaginar – ele contou com angústia – Eu tenho medo que, quando o fim chegar, não haja mais gente para ser liberta. Não quero pensar que minha vida é uma batalha em vão.

–Ela não é – eu disse segurando seu rosto com força para que ele olhasse para mim, minha outra mão ainda repousada em seu peito – Não importa se tudo vai terminar bem ou não, sua vida não é uma vida em vão, é uma vida com um propósito, uma vida com uma razão. Você luta contra alguma coisa, luta por alguma coisa, sua vida tem muito mais razão que a vida de milhões de pessoas. É uma vida que vale a pena viver.

Edward sorriu e beijou minha testa com ternura.

–Obrigado Bella.

–Vai acabar tudo bem, você vai ver – eu prometi.

–Tomara. E, a propósito, estou muito orgulhoso de você.

–Está? – perguntei incrédula – Por quê?

–Por você ter finalmente se achado, eu sempre soube que havia muito mais do que uma patricinha aí dentro. Estou muito feliz por estar certo.

–Isso foi um elogio? – eu perguntei fazendo cara feia.

–Foi – ele respondeu rindo – O que estou tentando dizer é que estou feliz por você ter achado seu lado corajoso, livre. Teimoso também, disso eu não gosto muito, eu tenho que confessar – eu bati em seu ombro com força, mas ele apenas riu – Mas mesmo assim adorável.

Corei, escondendo o rosto em seu peito enquanto ele beijava meus cabelos.

O frio começou a ficar mais forte enquanto as horas passavam, Edward pegou uma coberta velha e nos cobriu com ela, passando seus braços por meu corpo. Aconchegada em seus braços, eu acabei caindo sono.

Naquela noite eu não tive nenhuma lembrança do meu passado, só fui sonhar no finalzinho, um pouco antes de acordar.

No meu sonho eu estava com Edward num terreno aberto e sem prédios, como um grande campo de futebol sem as arquibancadas, nossas mãos estavam unidas e nós olhávamos para frente, um sorriso de esperança irradiando nossa face enquanto aguardávamos, juntos, a vinda de um mundo melhor.


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Notas finais do capítulo

Bem, é isso. Espero que gostem. Boa leitura e comentem, sinto falta dos seus comentários :(



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