Entre Pontas De Faca E Velhas Histórias escrita por Ana Barbieri


Capítulo 9
Capítulo 9




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Capítulo 9

            Tenho que admitir que minhas pernas tremeram quando o vi ali. Contudo, nossos olhares mal tiveram tempo de se cruzarem. Olhava fixamente para Sherlock, que me fitava com puro desapontamento. Deveria ser frustrante para ele, se deixar desarmar pelo simples receio de que algo de mal pudesse acontecer comigo. Além disso, seus olhos também revelavam que eu deveria ser cautelosa enquanto estivesse falando com aquele senhor.

            _ Boa tarde senhor Norton. – cumprimentei de volta, mantendo a calma e fechando a porta atrás de mim.

            _ Está surpresa por me ver aqui, eu suponho. – disse ele, em tom de conversa.

            _ Bastante. – falei, ironicamente. – Onde está a senhora Norton?

            _ Ela virá logo. – respondeu simplesmente. – Por que não tomamos um copo de whisky enquanto isso?

            Um baque pareceu atingir-me na cabeça.

            _ E, onde está a senhora Hudson?

            Ele sorriu.

            _ Ah, a sua senhoria está bem. Trancada em seus humildes aposentos. Não se preocupe, não fiz mal nenhum a ela, o senhor Holmes aqui pediu que cooperasse.

            Senti-me um pouco aliviada por saber que ela não estava machucada, mas é claro que ainda não poderia ficar totalmente calma.

            _ Então podemos passar ao que interessa? – indaguei, sentando.

            _ Eu não me acomodaria se fosse você. – a porta se abrira e Irene Adler passou por ela, com um sorriso vitorioso nos lábios. – Está tudo pronto.

            Godfrey Norton acenou positivamente para a esposa e guardou a arma dentro do paletó, levando Holmes com uma das mãos, enquanto eu era arrastada por Irene para fora de casa. Um cabriolé nos esperava do lado de fora, a voz do óbvio me dizia que o interrogatório não poderia ser feito na civilidade do lar. Após sermos empurrados para dentro, Sherlock e eu nos sentamos, apenas esperando que o coche seguisse adiante. Pensava que um de nossos captores ficaria para nos vigiar, um engano.

            _ Alguma ideia de como saímos daqui? – perguntei, olhando para as janelas.

            _ Não seria prudente saltar pelas janelas minha cara. Acho melhor esperarmos até o cabriolé parar e então...

            _ Morrer? – murmurei indignada.

            _ Somente se fomos ingênuos o bastante para não poder evitar. – retrucou ele.

            Passando pela casa de John, Sherlock retirou o cachimbo de seu bolso e discretamente, deixou que ele caísse pela janela.

            _ Ele saberá o que fazer.

            _ Esperemos que sim. – sussurrei pessimista.

‡‡‡

            Anoitecera e nós já estávamos fora da cidade, quando de repente, paramos. Olhei para fora e avistei um galpão abandonado. Me virei para Sherlock. Ele não parecia sentir nada. Subitamente, a porta abrira e Godfrey fizera sinal para que descêssemos rapidamente. Fomos arrastados para dentro, amarrados e deixados no chão, enquanto Adler e seu marido conversavam e eu torcia para que John tivesse tido a intuição de sair pela porta da frente de sua casa e achado o cachimbo.

            _ Senhor e senhora Holmes, uma pena que será a última noite que passarão juntos. – comentou Norton, vindo em nossa direção. – Devo dizer que fiquei bastante intrigado quando, por mais que minhas pistas fossem falsas, vocês conseguiram chegar a uma resposta. Acho, que o crédito é todo da senhora...

            _ Não precisa agradecer. – desdenhei. – Esse é o meu trabalho. Livrar a Inglaterra de pessoas sujas como você e sua esposa.

            _ Estou encantada. – disse Irene, com veneno. – O discurso mais poético que já ouvi... Como pensou em falar com Letícia?!

            _ Chame de intuição. – respondi dando de ombros.

            _ Pois a sua intuição – interrompeu Norton, com malícia. – Irá custar a sua vida e do precioso detetive de Londres. O que será dessa cidadezinha quando o único que é capaz de mantê-la em ordem vier a morrer?

            _ Está se precipitando senhor. – disse Holmes. – Nenhum de nós morreu ainda, pode vir a se surpreender. Minha esposa me deve por salvar a vida dela no começo da semana... ela não costuma falhar em suas promessas.

            _ Não coloque a responsabilidade sobre mim. – ralhei, nervosa.

            _ Nem será necessário minha cara. – falou Godfrey. – Agora, Irene, desamarre-os. – ordenou Norton.

            Adler pegou uma faca escondida em seu bolso e cortou as cordas. Parecia que teríamos que lutar por nossas vidas, literalmente.

            _ Antes, senhor Norton – interrompeu Sherlock, parecendo ler minha mente. – Gostaria de saber o seu lado do caso.

            _ E no que isso adiantaria?

            _ Apenas um capricho pessoal. – ironizou meu marido.

            _ Pois bem. Eu havia emprestado dinheiro a Longborn uma noite, para que ele pudesse jogar. Quando fui cobrar pelo favor, disse que queria entrar para o parlamento. Ser um membro da câmara dos lords, contudo, ele recusou terminantemente a oferta. Por mais trapaceiro que fosse, ainda possuía seus limites. Depois disso, começou a desenvolver verdadeira afeição por minha irmã, o que, é claro, eu proibi. Se eu não pudesse ter o que queria, ele também não poderia. Mas ele foi insistente...

            _ Ainda não entendo como mandar que sua irmã o matasse, facilitaria as coisas. – disse horrorizada.

            _ Essa também não era minha ideia original, entendam... Devido as suas insistências, escrevi pedindo a Irene que voltasse de Liverpool e me ajudasse a dar um fim em Richard. Ela voltou é claro, e ficou hospedada no Royal, para que Letícia não suspeitasse de nada. Ela já não acreditara quando eu mentira sobre perdoar seu amado Richard. Contudo, naquela noite, na festa, eu estava completamente fora de mim. Queria logo acabar com aquilo para não ter que vê-lo nunca mais. Roubei um coche e esperei, sabendo que ele tentaria fugir com ela.

            “Eles entraram e eu os levei em direção a Oxford Street. Pretendia matá-lo aqui, mas estava ansioso demais. Parei o coche e os forcei a entrar em uma das casas abandonadas. Letícia começou a gritar, exigindo para que o deixasse ir. Foi quando a ideia me ocorreu. Ninguém suspeitaria de Letícia, sempre foi tão ingênua, tão doce...”

            _ Sua irmã disse que o senhor exigia dinheiro dele, não essa...

            _ Ela nunca chegou a saber o real motivo da morte dele. Sim, eu ordenei a ele que me desse o dinheiro que me devia, mas, era apenas uma mera linguagem secreta entre amigos de tanto tempo. Quando entreguei a arma a ela, me olhou com repulsa, acenava freneticamente com a cabeça que não faria. Até que Longborn ordenou a ela que atirasse e esse foi o fim. Levei-a de volta para casa e liguei para Irene, para que viesse imediatamente, ela, no entanto, resolveu passar um pouco para visitá-lo senhor Holmes.

            _ Então era você aquela noite, do lado de fora. – conclui. – Nos observando.

            _ Presenciando aquela cena nojenta... esperava mais de você Sherlock. – desdenhou Adler.

            Holmes permaneceu em silêncio por alguns minutos, absorvendo toda a informação. Até que por fim, mirou Norton nos olhos.

            _ E o que vem a seguir? – perguntou de forma neutra.

            _ Ora, a morte dos dois é claro. Primeiro, por certo, a senhora Holmes. Como um cavalheiro inglês sei bem como o protocolo exige que primeiro venham as damas. – disse ele com escárnio.

            Antes que eu desce meu primeiro passo, Holmes segurou meu braço e me puxou para trás.

            _ Não nesse caso. Eu irei primeiro.

            _ Como quiser. – concordou Godfrey. – Vamos. Fique de olho nela, Irene.

            _ Com prazer.

            Cravei meu olhar em Sherlock enquanto ele saía. Embora eu duvidasse que ele deixasse Norton fazer alguma coisa, visto que ele sempre foi um exímio lutador, alguma coisa dentro de mim ainda me alertava que o pior poderia acontecer. Principalmente se eu não desse um jeito de sair logo dali.

            _ Engraçado como o mundo dá voltas. – comentei, chamando atenção da minha carcereira. – Lembro-me de Sherlock me contar sobre como você sempre foi uma mulher independente, mas, o que acabo de ver é uma demonstração de como até mesmo as mais fortes podem sucumbir aos caprichos de um homem.

            Ela apenas me lançou um olhar furioso, estava tentando manter a calma para não fazer alguma bobagem, conclui.

            _ Sei que tivemos nossas desavenças senhorita Adler, mas, acho que agora que estou prestes a morrer, deveria deixar tudo em paz para não atrapalhar minhas chances atingir o paraíso. Sendo assim, gostaria de poder clarear que não sinto mais nenhum ódio por você. Após as várias discussões que tive com o senhor Holmes a seu respeito, finalmente cheguei a conclusão que ele jamais poderia ter se apaixonado pela senhorita. Afinal...

            “Por que ele se apaixonaria por uma simples ladra menor, quando poderia ter... como é mesmo que chamam hoje em dia? Ah sim, a jovem mais impressionante e...”

            Irene Adler retirou sua faca mais uma vez de dentro das vestes antes que eu pudesse concluir. Aquilo me animou, mesmo que estivesse desarmada. Ela voou em direção ao meu pescoço me segurando por trás. Antes que ficasse sem ar, empurrei-a para longe e corri a procura de alguma arma, o que parecia impossível, visto a escuridão daquele vestíbulo. Então simplesmente teria que voltar aos velhos tempos.

            Senti que Adler se aproximava e me apressei em virar para que pudesse olhar bem nos olhos dela quando lhe desse um soco bem forte no nariz, arrancando, para minha felicidade, muito sangue dela. Em retorno, ela também me acertou com força, fazendo com que eu perdesse um pouco do equilíbrio e caísse. Irene tentou alcançar meus pés, sendo empurrada para longe pelos meus, o que me deu tempo de me levantar rapidamente e alcançasse a porta. Esta, por sua vez, estava emperrada.

            Joguei meu peso contra ela, mas permaneceu parada. De súbito, senti Adler me agarrar por trás, tentando me sufocar. Segurei as mãos dela e usei o que restava de minhas forças para tentar me jogar mais uma vez contra a porta. No fim, o peso das duas fez com que ela se abrisse. Do lado de fora, Sherlock e Norton também brigavam, com a diferença de que meu marido estava levando a melhor. Adler estava coseguindo me sufocar, mas quando meu olhar cruzou com o de meu marido, senti um pouco das minhas forças voltando e usei-as para acertá-la no rosto com meu cotovelo quantas vezes foram necessárias.

            Ela me soltou e eu cai, recuperando o ar. Vi Holmes jogar Norton para baixo do desfiladeiro que havia ali. Estava acabado...

            _ Não! – bradou Irene, assistindo a cena. – Desgraçado! Maldito! – e correu contra Holmes.

            Eu a segurei, antes que conseguisse alcançá-lo.

            _ Nada mais justo não é Anne? Meu marido, pelo seu. – disse ela, me jogando no chão.

            Assisti a briga entre os dois, e Sherlock não estava preocupado se ela era uma mulher ou não. A feria como se ela fosse a própria imagem do marido. Ela tentava fazê-lo se aproximar cada vez mais da ponta do desfiladeiro, até que finalmente ele escorregou. Um grito agudo escapou da minha boca e me levantei com dificuldade, as sequelas do acidente com o fogo sendo sentidas em meus pulmões, enquanto corria até eles. Voltei a brigar com Adler, conseguindo por fim, desacordá-la com um golpe na cabeça. Corri até onde Holmes estava, ele não conseguira subir e eu segurei sua mão com força.

            _ Segura... eu vou puxá-lo... – disse, sentindo as contrações em meu peito. – Sherlock...

            _ Anne... você não vai aguentar... – falou olhando para baixo e em seguida para mim.

            _ Eu vou... – disse com força. – Eu vou Sherlock...

            Nossas mãos estavam escorregando, mas eu mantinha firma o meu aperto. Tentei puxá-lo, mas a dor no peito era muito forte. Olhei no fundo dos olhos de Holmes. No final, sabíamos que eu não pagaria a promessa. Não seria capaz de salvar a vida do meu próprio marido. Senti as lágrimas começando a escorrer no meu rosto e engoli em seco.

            _ Holmes... – por um momento fiz uma pequena prece, queria que John estivesse ali ou até mesmo Lestrade. Qualquer um.

            _ Anne...  – ele me chamou também com a voz embargada. – Me perdoe. – e soltou a minha mão.

            O meu grito jamais foi ouvido, sequer saiu. Fiquei parada lá, a noite finalmente chegando ao seu auge, enquanto Sherlock Holmes caia. Comecei a me erguer e mirei Irene Adler, ainda desacordada. Poderia matá-la se quisesse. Mas do que adiantaria? “Meu marido pelo seu” ela dissera, e nada traria Holmes de volta. Então apenas me pus a caminhar bosque adentro, sem olhar para trás, parando para me apoiar em uma árvore, sentar e chorar.

            Uma hora depois, ouvi a voz de Watson me chamar, com a senhora Hudson em seu encalço. Ergui a cabeça e respondi com a voz rouca, até que eles me encontraram.

            _ Anne, onde está?... – perguntou John, quando finalmente percebeu que meu rosto estava vermelho e se calou, me abraçando.

            _ Querida... – murmurou a senhora Hudson ao me abraçar.

            _ A senhora Norton foi detida, foi um golpe feio o que a atingiu. – anunciou Lestrade. – E quanto a... – John lançou a ele um olhar significativo e Lestrade mirou-me parecendo realmente sentido. – Eu sinto muito senhora Holmes...

            Eu não consegui dizer nada em resposta, apenas acenei afirmativamente com a cabeça.

            _ Vamos. – disse Watson, me levando até o coche da polícia.

‡‡‡‡

            Quando chegamos a cidade, nem a senhora Hudson, nem John me deixaram descer em Baker Street. Passei a noite com ele e Mary. Ela se compadeceu completamente por mim, deixando claro que eu jamais ficaria sozinha por isso e que poderia visitá-los sempre. Enquanto John, que parecia me compreender mais, não disse muito. Apenas me levou até o quarto e me entregou o cachimbo que estava com ele.

            _ Foi uma sorte ter saído a rua para apanhar algo que Mary pediu. – contou ele. – Compreendi na mesma hora e corri para Baker Street, soltei a senhora Hudson que me contou tudo e fui até Lestrade, levei algum tempo para convencê-lo. – explicou. – Só lamento ter chegado tarde demais.

            _ Eu não culpo John. – murmurei. – Culpo somente a mim. Depois daquele incêndio... eu não sabia que meus pulmões ficariam tão fracos...eu... eu devia uma a ele e... não consegui...deixei acontecer... – as lágrimas voltaram rapidamente.

            Não dormi naquela noite. Permanecei acordada apenas me lembrando dos últimos dias. Tantas discussões, e do que adiantaram no final? “Você é tudo o que se esperaria de uma mulher que enlaçou meu irmão.” Mycroft dissera. Contudo, eu não aprendera a confiar nele totalmente. Sempre desconfiada de Irene Adler, sempre irritando-o com minhas suspeitas... e ele sempre disposto a discutir comigo até me fazer entender. Nunca deixando-se abalar, mesmo que fosse repetitivo e entediante. No final, era eu quem não o merecia.

            No dia seguinte, comecei a fazer os preparativos para o enterro. Escrevi para Mycroft que me respondeu imediatamente e chegou dois dias depois, com toda a sinceridade ao me abraçar e dar-me suas condolências. Era claro que a notícia da morte do irmão também o abalara. Abalara a toda Londres.

            Fiz questão para que ele fosse enterrado ao lado de meus pais. Em sua lápide, havia os seguintes dizeres “O Pomposo detetive que foi humilde o bastante para se entregar a morte.” Watson e eu decidimos que era apropriado. Fui a última a deixar o local, me lembrando de quando estivera ali para o enterro de meus pais. Assim como daquela vez, olhei em volta com a esperança de que fosse apenas uma brincadeira de mau gosto e que Holmes logo saíra de trás de alguma pedra, me tomaria em seus braços e diria o quanto eu era crédula por acreditar que ele morreria assim. Contudo, nada disso aconteceu.

            Voltei para Baker Street e me tranquei no quarto. Ele não aprovaria. Mesmo assim eu nunca o obedeci, por que agora? Alcancei meu violino e comecei a tocar. Um último hino ao Pomposo Detetive de Baker Street.


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