Nos últimos capítulos: Beatriz aceita dar uma carona para Daniel até chegarem à North Gare. Rafael deixa claro que irá ajudá-lo em sua vingança. Mas parece que os novos companheiros do garoto não se dão muito bem entre si, ou talvez estejam se dando bem demais.

028 – Sorrisos

[Daniel]

– Isso só pode ser brincadeira!

Quase não ouvi quando Beatriz disse isso. Depois dos primeiros trinta minutos da mesma estrada cansativa e sem nenhuma conversa durante a viagem, eu tinha simplesmente me desligado. O cansaço me agarrou com todo o seu peso e por duas vezes eu quase caí da moto enquanto dormia, por isso não reparei quando as luzes começaram a se intensificar, muito menos quando a quantidade de casas e prédios se tornou maior. E entendi menos ainda o que ela quis dizer com aquela frase.

– Do que você está falando? – Minha voz saiu lenta e sonolenta, me senti como se estivesse usando meu poder enquanto falava.

Beatriz respondeu apenas acenando a cabeça enquanto diminuía a velocidade. E eu não consegui esconder um sorriso divertido quando percebi do que ela estava reclamando. Rafael estava em pé, com as costas apoiadas no único poste da rua que não funcionava, com um sorriso sarcástico estampado no rosto e a mão distraidamente dançando na nuca peluda de Rufus.

– Juro que se você soltar um comentário eu te derrubo da moto. – Disse ela baixinho enquanto ainda nos aproximávamos do garoto. – E pare de pensar sobre isso também.

– Desculpa. Eu nem sabia que isso tinha se tornado uma corrida.

E era verdade, eu não fazia idéia que Rafael estava falando a mais pura verdade quando disse que conseguia acompanhar a moto, e pelo visto, ultrapassá-la. Nem sequer tinha percebido que as palavras dele estavam carregadas de desafio. Ele começou a caminhar na nossa direção, sem tirar o sorriso no rosto em momento algum.

– E eu pensando que diminuir minha velocidade tornaria isso um pouco mais justo. – Disse ele, dando uma risada leve.

– Ah, cala a boca ok! Eu não estou com muito animo para correr, apenas isso.

Mas Rafael obviamente não pretendia calar a boca. Alargou ainda mais o sorriso a ponto de mostrar os caninos brancos.

– Que desculpinha esfarrapada Sra. Bisbilhoteira, até em inventar desculpas eu sou melh... – Sua voz sumiu em menos de segundos, Beatriz o encarava concentrada. – Me desculpe por ter dito isso a você, Srta. Beatriz. Minha intenção nunca foi te ofender, na verdade eu sou o idiota aqui. Não passo de um homem vira-latas que não tem idéia do que esteja acontecendo ao meu redor...

Precisei tampar a boca para abafar minha risada. Não estou mencionando só a mudança de comportamento, mas até a postura estava diferente. Ignorando as roupas completamente rasgadas e esfarrapadas, ele parecia um mordomo curvado até os joelhos. Demorou pelo menos mais dez segundos antes que Beatriz o permitisse voltar ao normal.

– Há Há! Muito engraçado. Maldita bisbilhoteira.

– Sabe garoto-lobo, você precisa limpar sua mente, ela parece um ninho de ratos. Ou um beco de cães desabrigados.

– Ah, tanto faz o que você pensa. Saiba que eu...

A discussão entre os dois continuou por minutos, e me arrancavam ótimas risadas. Por esse tempo eu me permiti esquecer um pouco (mas apenas um pouco) sobre o que estava acontecendo na minha vida. Permiti que um pouquinho de diversão se acomodasse no ambiente sombrio que era minha mente.

– Sabe? – Eu comecei depois de um tempo. – Vocês dois formam um belo casal.

– O Quê? Você perdeu o medo de morrer Daniel?

– Garoto, retire já o que disse ou eu juro que te obrigo a fazer isso!

A resposta dos dois apenas resultou em mais risadas. Era exatamente como antes, as brincadeiras, as diversões. Eu me sentia em um grupo novamente, em uma família. Mesmo conhecendo aqueles dois ha tão pouco tempo. Mas o que nos uniu? O que estava me guiando para que eu encontrasse outras duas pessoas com habilidades em um mundo em que isso é tão complicado? As risadas foram sumindo. Rafael e Beatriz já não discutiam mais. A hora da diversão tinha chegado ao fim.

Olhei para os dois e o olhar deles era de compreensão.

– Bom, obrigado pela carona Beatriz. Acho que vamos nos virar daqui em diante.

Rafael apenas sacudiu a cabeça em um até mais mal agradecido. Passei por ela e Rafael me seguiu, não tínhamos rumo e eu não conhecia a cidade. Talvez fosse mais complicado do que eu estava pensando.

– Espere!

Nos viramos para trás. Beatriz estava novamente em cima da moto agora, com aquele sorriso radiante em seu rosto.

– Algo me diz que vocês não conhecem a cidade. Acho que eu posso dar mais uma mãozinha. Mas não vão abusar hem, é só dessa vez.

– Hunft. Espero que esse algo não seja minha mente, garota bisbilhoteira. – Foi a resposta de Rafael. Apenas o esperado de uma criança apaixonada na minha opinião.

Eu sorri para ela e me preparei para voltar para a garupa da moto.

– Só aceito sua ajuda por que você insistiu muito.

Antes que eu pudesse me acomodar no veículo para continuarmos nossa busca, o telefone público que estava ali perto tocou. Minha intenção e a de Beatriz era apenas ignorar a ligação, mas Rufus começou a latir incontrolavelmente para o aparelho e Rafael não mexia um músculo sequer.

– Rafa, o que ta acontecendo? – Perguntei preocupado, odeio climas tensos.

– O Rufus só late assim quando tem alguma coisa errada. Acho que é pra gente.

Como nem o Rafael e nem eu nos movemos, Beatriz se levantou em um pulo e caminhou levemente em direção ao telefone. Parecia flutuar enquanto andava, livre de preocupações, livre de medos. O barulho irritante do telefone cessou assim que ela o atendeu. Por alguns minutos tudo o que eu fiz foi encará-la.

– Daniel? – Disse ela, parecia assustada. – É pra você.

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