Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 26
Capítulo 26




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Teen Titans não me pertence, ou eu teria uma conversinha MUITO SÉRIA com o atual roteirista da revista Titãs... parece que o cara pretende matar de vez o ship BB/Rae, e ressucitar BB/Terra.


 



 


            Robin não podia dizer que estava acostumado a ser tratado dessa forma.


            Ignorado. Esquecido. Jogado para escanteio.


            Sentado sobre uma das asas do Jato-T, ele olhou para o céu noturno, onde milhares de estrelas brilhavam, não mais ocultas pela luz da cidade. Era capaz de ficar escondido nas sombras durante horas, dias se preciso fosse, mas, no momento em que revelava sua presença, os malfeitores que ainda estivessem de pé não voltavam a atenção para mais ninguém além dele. Os anos liderando os Jovens Titãs também tinham feito pouco, no sentido de prepará-lo para, um dia, ser desconsiderado como se não estivesse realmente ali.


            O líder dos Titãs resmungou alguma coisa entre dentes, enquanto se lembrava dos eventos do dia. Tinha pousado o jato neste mesmo lugar, uma montanha perdida no meio do Himalaia, o mais perto possível da casa do Verdadeiro Mestre. Conforme já esperava, a velhinha de um metro e vinte estava aguardando próxima ao local de pouso, acompanhada do Urso, do Macaco e da Serpente, seus servos e guarda-costas.


            O problema foi que, aquele instante que precisou para se apresentar com um cumprimento local, foi o bastante para ela trocar algumas palavras com Estelar, pegá-la pela mão e se trancar com ela dentro de casa.


            Robin não podia dizer que estava exatamente surpreso por isso: quer dizer, claro que esperava que o Verdadeiro Mestre o recebesse e instruísse na tal "etapa nova de treinamento”, mas, por outro lado, achava compreensível que ela se tomasse de amores pela princesa tamaraneana (como NÃO se afeiçoar a ela?). Talvez achasse meio esquisito que aquela anciã quisesse trocar fofocas como se fosse uma adolescente, mas enfim, isso não era de sua conta, não é mesmo?


            Além do mais, era-lhe perfeitamente possível começar a treinar naquele mesmo instante. Tanto o Urso quanto o Macaco estavam ansiosos por uma revanche, e o menino-prodígio não os deixou na mão. O resultado final foi uma tarde de treino muito produtiva, que por si só já tinha feito por valer a viagem.


            Entretanto, conforme observou Robin, após ter se lavado um uma queda d’água que servia de chuveiro, uma tarde tinha se passado, e as duas AINDA estavam trancadas em casa fofo... quer dizer, conversando. Considerando o fato de o Sol estar se pondo naquele exato momento, então já faziam entre cinco e seis horas que elas estavam nessa.


            O menino-prodígio lembrou que foi nesse instante que decidiu que seria melhor se inteirar a respeito do assunto que as duas estavam discutindo. Uma mini-escuta foi tirada de seu cinto de utilidades, e conduzida por controle remoto até a sala, onde Estelar e o Verdadeiro Mestre se encontravam. Foram precisos apenas vinte segundos, para que a anciã esmagasse a escuta com uma chinelada, mas não antes que ela conseguisse interceptar um fragmento da conversa:


- ... Está na hora de você aprender os segredos da magia de mulher e...


            Essa expressão nada significava para o líder dos Titãs. O que seria? Uma técnica secreta? Um golpe mortal? O adolescente mascarado notava a presença de uma fraquíssima sensação enquanto pensava nisso, mas não sabia dar nome a ela.


            Intrigado, ele fez uso de uma segunda escuta. Este dispositivo de alta tecnologia era um minúsculo robô-espião, com o formato de aranha, capaz de transmitir áudio e vídeo. A casa foi mais uma vez invadida por uma escuta, que avançou pelo teto, de forma muito mais cautelosa do que a primeira. Não demorou muito para que encontrasse as duas mulheres novamente, desta vez na cozinha. Um breve ajuste na câmera mostrou que o Verdadeiro Mestre falava enquanto cortava algumas folhas e raízes, ao passo que a princesa alienígena observava atentamente.


- ... Então você deve colocar tudo no caldeirão e dar uma boa mexida...


            Caldeirão? Mexida? Agora Robin podia se considerar oficialmente perdido. E, para piorar, a faca que estava sendo usada para cortar legumes foi arremessada para o teto, onde quicou num ângulo de cento e cinqüenta graus, terminando por se cravar bem na lente de seu robô-espião, destruindo-o. Um arremesso lindamente feito, que convenceu o garoto-prodígio a parar com suas tentativas de espionagem... afinal, o próximo arremesso podia muito bem vir na direção DELE. Antes prevenir do que remediar.


            Isso, no entanto, suscitava outro problema: o jovem estava então com uma série de perguntas em mente, e sem a menor idéia de como respondê-las. Magia de Mulher? Caldeirão? Aquela sensação não-identificada de antes estava mais forte agora, e ele, de alguma forma, sentia que deveria saber o significado de tudo aquilo... mas ainda não era capaz de decifrar as palavras que seu instinto tentava lhe contar.


            Ainda sentado sobre a asa do jato, Robin deixou sua memória voltar à solução que tinha encontrado para sua falta de respostas. Parecera bem óbvio na hora, que um dos três guarda-costas do Verdadeiro Mestre soubesse o significado daquelas estranhas palavras... agora, no entanto, o menino-prodígio se perguntava se não teria sido melhor permanecer na ignorância.


            Eis o que aconteceu: sabendo que o Urso falava sempre o mínimo possível, e que o Macaco não fechava a boca nem para dormir, o líder dos Titãs se dirigiu para a caverna que servia de lar para a Serpente, onde expôs suas dúvidas e perguntas. Conforme o esperado, a guardiã da caverna ouviu tudo atentamente, mas depois... o Titã mascarado jamais imaginara que uma boca sem lábios pudesse se contorcer num sorriso daqueles:


- Vai guinchar como um porco... – Foi a única resposta que o menino-prodígio recebeu.


            E então ele se viu sozinho e ignorado novamente, perguntando a si mesmo sobre o significado das palavras do réptil. De fato, era isso o que estava fazendo até agora.


            O que ele sabia? Robin sabia que, de acordo com os fragmentos de informação coletados ao longo do dia, supostamente Estelar estaria aprendendo sobre “magia de mulher”, depois iria mexer alguma coisa num caldeirão, e por fim ele veria a si próprio guinchar como um porco. Que outros dados poderiam complementar os já disponíveis?


            Em primeiro lugar, o Verdadeiro Mestre. Se havia uma coisa a respeito dela, da qual o menino-prodígio tinha 100% de certeza, é que a velha. Era. Doida. DOIDA. E, o que quer que estivesse ensinando para sua namorada, fosse sabedoria ou loucura, tinha grandes chances de ser levado a sério. Literalmente.


            Segundo, seu próprio instinto. Era difícil de explicar, mas... os cabelos arrepiados na base da nuca, aquela expectativa que sempre precede a batalha... estavam ambas ali, e mais. Aquela sensação de antes estava mais forte do que nunca, e agora o líder dos Titãs sabia dar nome a ela. Infelizmente, como tudo o mais hoje, essa informação trazia outra pergunta consigo.


            Seu instinto nunca tinha falhado antes, e agora lhe dizia que, em algum momento, de alguma forma, Estelar iria fazê-lo guinchar como um porco.


O que ele não entendia, no entanto... por que é que ele se sentia tão... ansioso... por isso?


BEEP! BEEP! BEEP!


            O barulho do comunicador parecia estar dez vezes mais alto, naquele lugar silencioso, longe da civilização. Foi por muito pouco, que o susto não derrubou Robin do local onde estava sentado.


- Na escuta. – Declarou o menino-prodígio. Era possível perceber alguma contrariedade em sua voz, talvez por ter sido tão rudemente arrancado de seu devaneio.


- Alô? Robin? – era Ciborgue quem estava do outro lado da linha, e ele não parecia nem um pouco contente. – Responde logo de uma vez, droga!


- Estou aqui, Ciborgue. Pode falar.


- Seguinte, mano: a tal mensagem que te chamou para esse lugar onde tu tá agora... era de verdade?


- O quê? – O líder dos Titãs não conseguia ver qualquer relevância nesta questão.


- SERÁ QUE DÁ PARA RESPODER LOGO À PORCARIA DA PERGUNTA???? – Como podemos ver, Ciborgue estava agitadíssimo.


- Se é do pergaminho de uma semana atrás que você está falando, então não. Não era de verdade não. – Respondeu o menino–prodígio. Tinha descoberto isso horas antes, enquanto treinava com o Macaco e o Urso. O primeiro perguntara sobre a razão da visita, e o segundo, após ouvir a resposta, declarou que não havia nenhuma convocação. Mas Robin, concentrado em seus oponentes, não tinha dado maior importância a esse detalhe na hora, pois o treino estava rendendo.


- EU SABIA! Ah, quando eu chegar em casa aquele feijão verde me paga! – o Titã cibernético trovejou do outro lado da linha. – Seguinte, Robin. Larga tudo o que estiver fazendo e volta pra casa!


- E por que eu faria isso? – o garoto-prodígio não estava entendendo o porquê de seu amigo estar tão agitado. – Mutano e Ravena estão tomando conta da Torre. Se acontecer alguma coisa, eles com certeza vão enviar um sinal de emergência.


- É justamente por isso que nós temos que voltar AGORA! – a urgência na voz de Ciborgue era evidente. – Eu também fui tapeado!


- Explique-se. – Robin não estava conseguindo ver o que uma coisa tinha a ver com a outra.


- Não tinha trabalho nenhum para fazer aqui! A mensagem da Abelha era falsa! – E então o adolescente metálico explicou o que tinha acontecido com ele; assim que chegara à torre dos Titãs do Leste, fora recebido e, após alguns minutos de conversa, seus anfitriões se decidiram por uma pequena festa de boas-vindas. Apenas uns poucos minutos atrás, quando todos já estavam se recolhendo para dormir (era alta madrugada em Steel City), foi que ele decidiu perguntar a respeito do tal dispositivo que ele precisaria instalar... apenas para descobrir que não existia chamado algum.


- E o que mais? – Versado em diversas técnicas de interrogatório e detecção de mentiras, o menino-prodígio percebeu que Ciborgue estava escondendo alguma coisa.


- Mais? Como assim, mais? Será que você... – E então o jovem cibernético se calou, pois lembrara que, se contasse a verdade, que queria impedir seu melhor amigo de se “aproveitar” daquela a quem considerava uma irmã mais nova, provavelmente teria o comunicador desligado na cara. Seria mais proveitoso, considerou ele, fazer uso da astúcia.


- Robin, presta atenção. Raciocina comigo. – agora Ciborgue estava falando em um tom deliberadamente pausado, como quem deseja que seus ouvintes acompanhem sua linha de pensamento. – Nós dois recebemos mensagens que nos levaram para longe da Torre. E agora descobrimos que essas mensagens são falsas.


- Continue.


- Isso significa que agora a Torre só tem duas pessoas para defendê-la, uma das quais sem acesso aos sistemas de defesa. – E, após uma breve pausa. – Quem, de todos os vilões com quem já lutamos, seria capaz de um plano desses? Afastar três de nós para deixar nossa casa mais vulnerável? – o jovem metálico deixou a pergunta pairando no ar, ao mesmo tempo em que iniciava uma contagem regressiva. – Três... dois... um...


- Slade. – Esse nome foi pronunciado como se fosse uma maldição.


- Nunca falha. – pensou Ciborgue, satisfeito consigo mesmo. Esse era um recurso que ele evitava usar, por ser algo um tanto quanto desonesto, mas a atual situação justificava isso. – E então, quais são as ordens?


- Retorne imediatamente para a Torre. – ordenou Robin. – Eu e Estelar te alcançaremos lá.


- Deixa comigo. – Respondeu o Titã cibernético, pisando fundo no acelerador de seu carro. Fez apenas uma nota mental, de parar na primeira loja de conveniências que encontrasse pela estrada. Isso porque precisaria de um item específico, para quando finalmente estivesse de volta à Torre.


            Molho de Churrasco.


 


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- Unnghh... – Mutano sentia a cabeça rodopiando, e seu corpo todo formigava.


            À medida que foi recobrando a consciência, ele percebeu com mais e mais clareza que alguma coisa... estava errada: para começar, este não era o seu quarto. Em segundo lugar, ele sentia que não estava deitado: era como se algo estivesse puxando-o para cima e para baixo, ao mesmo tempo.


- Cara... aonde é que eu tô? – Finalmente desperto, o metamorfo percebeu que seus braços e pernas estavam algemados, presos a correntes que o mantinham suspenso no ar, em pé. O local onde estava assemelhava-se a um galpão, com diversas caixas e contêineres empilhados; porém, a uma curta distância à sua esquerda, embutido na parede, estava um computador de alto desempenho, cuja tela brilhava com dados que nada lhe diziam. E não era tudo: menos de meio metro à sua direita, havia uma alavanca no chão, e, a julgar pela sensação gelada que tinha nas costas, suas correntes estavam prendendo-o ou a uma parede, ou a uma espécie de bloco.


            Não era nada, no entanto, que pudesse fazer o Titã mais jovem se preocupar. Bastava se transformar em um camundongo, para então cair fora deste lugar de uma vez por todas.


BZZZZZZZZZZZZTTTTTT!!!!!!


            Centenas de volts correram pelo corpo do metamorfo, causando espasmos que pareciam querer arrebentar os seus músculos. Os cabelos dele se arrepiaram e fumegaram, à medida que a resistência de seu organismo convertia eletricidade em calor. Por um instante, Mutano pensou estar novamente envolvido pelo abraço de Overload 2.0, mas não poderia dizer por quanto tempo seu mundo esteve inundado pela dor, pois ela, tão subitamente quanto surgiu, também desapareceu.


- Aaaaaaugh.... – Sua boca parecia prestes a rachar, de tão seca que estava. Naquele instante, o Titã verde seria capaz de beber a água da poça mais imunda, e ainda achar que se tratava do néctar dos deuses.


- Se quiser fazer isso de novo, fique à vontade. – uma voz inconfundível ecoou pela sala. – Pode ser que você tenha mais valor para mim vivo, mas eu sempre posso encontrar uma utilidade para a sua carcaça.


            Foi então que a memória do metamorfo, até então um borrão indistinto, retornou. Ele se lembrou da cerimônia do chá, da horda de Sladebots e da batalha que se seguiu. Um xingamento chegou a se formar no fundo de sua garganta, mas ela ainda não estava em condições de produzir qualquer som.


- Você acabou de servir como cobaia para a minha mais recente criação. Um soro que, pelas próximas horas, vai estabilizar sua seqüência genética, impedindo-a de assumir a configuração de qualquer animal deste planeta. – Slade estava dando esse aviso por uma razão simples: uma isca viva é sempre mais eficiente do que uma morta. – Os eletro condutores embutidos em suas algemas são apenas... uma apólice de seguro.


            Uma espécie de grunhido escapou da boca do Titã mais novo, e foi ignorado. O vilão de armadura estava usando o computador agora, o olhar fixo nos dados que o monitor exibia.


- Se eu... fosse você... sairia correndo. – a garganta de Mutano estava doendo horrores, mas, mesmo assim, ele se forçou a falar. – Porque... quando meus amigos chegarem... cara... tu vai levar uma surra...


            A ameaça pareceu abalar Slade tanto quanto o zumbido de um mosquito. Sem se virar, sem parar com o que quer que estivesse fazendo, ele respondeu, e havia um quê de divertimento em sua voz.


- Heh. Mutano, Mutano... – o jeito pedante que o vilão usava para falar dava ao rapaz verde ganas de esganá-lo. – Seus “amigos” estão muito longe daqui agora. Não se preocupe, a folga deles não será interrompida por sua causa.


            A surpresa do metamorfo, ao ver seu blefe se desmanchar como se fosse um castelo de cartas, foi imensa. Tanto que foi percebido pelo criminoso de um olho só, sem que ele precisasse sequer se mover.


- Ora, meu jovem... quer dizer que ainda não percebeu? O assalto à sua preciosa Torre não te deu evidências o suficiente?


- Espera aí... está dizendo que... aquela carta... aquele telefonema da Abelha... foi você que...? – Mutano estava processando as novas informações em voz alta, e estava odiando os resultados.


- A culminação de meses de preparativos. – Admitiu Slade, e sua voz continha um misto de satisfação e orgulho.


- Meses...? - o metamorfo estremeceu: aquelas palavras continham em si uma terrível implicação. – Então a H.I.V.E...  Overload... todos eles...?


- Quem mais poderia incrementar a tecnologia que deu origem a Overload? Quem mais poderia fornecer dados relevantes a Chip, para que ele e seus colegas pudessem fazer frente à sua equipe? – o inimigo dos Titãs podia não ser tolo a ponto de revelar seus planos, mas era muito cônscio de sua reputação, e exigia receber os créditos que lhe eram devidos. – Devo admitir que é uma surpresa bastante agradável, que meu ex-aprendiz tenha sido incapaz de deduzir meu envolvimento. Agradável, mas ao mesmo tempo decepcionante.


            Isso percebeu o Titã verde, significava que Slade estivera espionando-os com algum propósito sinistro em mente: se o objetivo dele fosse apenas a destruição da equipe, ele não investiria tanto tempo antes de agir. Restava, porém, a seguinte pergunta:


            Qual poderia ser a razão, para que o vilão de armadura despendesse tanto tempo e tamanho esforço? O que, dentro da visão de mundo distorcida dele, poderia ter mais valor do que a derrota dos Titãs?


- Eu não acredito. Deus do céu, eu. Não. A-cre-di-to. – a garganta do metamorfo ainda estava doendo, mas não mais o suficiente para atrapalhar sua fala. – Cara, quando é que tu vai largar a mão dessa babaquice de procurar aprendizes? Já não chega a coça que você levou dos dois últimos?


            Desta vez o vilão dignou-se a se voltar para seu prisioneiro, fixando seu olhar nele. Sua linguagem corporal não traía nenhuma de suas intenções ou pensamentos, mesmo para os sentidos ampliados do Titã verde. Que, por falar nisso, estava sentindo as garras frias do medo apertando suas entranhas. Sabia muito bem que seu captor era um dos mais perigosos (para não dizer O mais perigoso) inimigos de sua equipe; que deveria esperar qualquer coisa dele, exceto misericórdia. E, a julgar pela forma como ele o estava encarando, era bom se preparar para, no mínimo, mais uma sessão de tortura à base de choques elétricos.


            Para sua surpresa, no entanto, a postura de Slade, que antes não dava quaisquer indícios de suas intenções, relaxou de repente. Ainda que sua expressão facial estivesse escondida por sua máscara, seu olho mostrava algo que até parecia... diversão.


- Mutano... no momento em que eu precisar de seus talentos, farei uma visita ao pet-shop mais próximo.


            O insulto não passou despercebido pelo Titã verde. Na verdade, atingiu-o como se fosse um bloco de cimento arremessado do quinto andar. Por alguns instantes, ele nada foi capaz de fazer, além de piscar os olhos e abrir e fechar a boca.


- Acha mesmo que estou à procura de outro aprendiz? E, caso estivesse, acha mesmo que eu escolheria você? Você? – a voz calma e pedante do criminoso interrompeu o fluxo de palavrões imundos que estavam se formando na cabeça do metamorfo, apesar de deixá-lo com ainda mais raiva. – Não tenho necessidade de um bichinho de estimação, e menos ainda de alguém incapaz de fazer valer sua posição em uma equipe. Em resumo, Mutano, me diga: para o que é que você serve?


            Mas a pergunta parecia ser apenas um exercício de retórica, uma vez que o vilão não esperou pela resposta de seu prisioneiro:


- Ora, vamos, não é tão difícil assim encontrar a resposta... a Patrulha do Destino a conhece... seus “amigos”, idem. – a maneira como ele pronunciara a palavra “amigos”, carregando-a com ironia, era uma provocação extra. – Quando foi a última vez que levaram a sua opinião em conta? Ou será que eu deveria perguntar... quando é que vai ser a primeira? – e então uma nova pausa, durante a qual ele retirou o comunicador de dentro do bolso, e leu a última mensagem de texto deixada por Ciborgue. – “Mutano. Não esquece do lance do fígado com molho”. É isso o que seus “amigos” pensam de você, meu caro. E quem poderia culpá-los, já que a sua maior realização foi... vencer um macaco... com um cérebro numa jarra? Ora, vamos, Mutano, isso é o melhor que você pode fazer? Um macaco?


            E então, finalmente satisfeito, ele ficou de frente para o Titã mais jovem, os braço cruzados atrás das costas. E, naquele momento, quase desejou não estar de capacete, apenas para que seu sorriso de triunfo pudesse ser visto. O metamorfo, por sua vez, estava alternando-se entre dois sentimentos que se completavam mutuamente: o primeiro era a revolta, por ser insultado e subestimado como se fosse um nada; e o segundo era a raiva, que estava lhe dando sugestões interessantes agora, como por exemplo, descobrir como é que se faz carne moída pelo método empírico, ou seja, a boa e velha tentativa e erro... entre outras.


            No entanto, outros fatores fizeram com que Mutano permanecesse imóvel. Sim, o soro anulando seus poderes, bem como as algemas eletrificadas, eram impossíveis de se ignorar, mas havia... mais. Slade tinha tomado muito do que era importante na sua vida, e desconsiderado tudo como se fosse insignificante. Parecia-lhe mais do que justo, devolver o favor na mesma moeda.


- Uma francesa e um velho. – Declarou o metamorfo.


- Como?


- Era um macaco, um cérebro numa jarra, uma francesa e um velho. Você estava se esquecendo dos dois últimos. – Foi a explicação.


- Certamente, Mutano, você há de me perdoar por não me lembrar dos outros insignificantes. Agora, se me dá licença... – Respondeu o criminoso de um olho só, fazendo menção de se virar.


- E qual é a sensação? – Perguntou Mutano, com a voz em alto e bom tom, para que não pudesse ser ignorada.


            Essa pergunta, que parecia totalmente desvinculada da conversa, conseguiu fazer com que o vilão de armadura parasse, voltando um último olhar de desprezo para seu prisioneiro. Estava lamentando a necessidade de uma isca para o funcionamento de seu plano, pois, do contrário, de muito bom grado teria interrompido aquela torrente de asneiras, permanentemente.


- O macaco com a jarra, a francesa e o velho conseguiram isolar e capturar dúzias de Titãs espalhados pelo mundo. Conseguiram congelar até mesmo o seu ex-aprendiz. – Mutano notou que Slade agora estava prestando atenção nele novamente. – E você? O que você fez?


            O Titã mais jovem aguardou uns poucos segundos antes de continuar, apenas o bastante para se certificar que seu captor tinha entendido a pergunta.


- Quer dizer, tô curioso para saber... qual foi a sua grande realização, Slade, além de brincar de esconde-esconde pra conseguir aprendizes, e depois fugir com o rabo entre as pernas, por eles quebrarem essa sua cara? Mas vou logo avisando: beijar o traseiro do Trigon não conta, porque para fazer isso direito, você precisaria ter uma boca do tamanho de um bonde!


            Se a intenção do metamorfo era deixar seu adversário furioso, bem, ele conseguiu. Ele pode não ter alterado a sua postura, pode não ter proferido uma única palavra, mas, durante aqueles momentos em que, lentamente, voltava para perto de Mutano, era possível ver, em seu olho único, uma fração daquilo que estava sentindo vontade de fazer. Era o bastante para fazer soldados experimentados cair no chão e chamar pelas suas mães.


- E então, Slade, qual é a sensação? – pelo visto, o bom-senso do rapaz verde estava tirando férias, pois ele fez esta pergunta encarando diretamente o seu algoz, e com o máximo de desdém que pôde colocar na voz. – De não conseguir nem ao menos chegar ao nível dos... qual foi a palavra que você usou mesmo? Ah, sim! Os insignificantes?


- CALE-SE, IDIOTA! – Gritou o vilão de armadura, ao mesmo tempo em que desferia um soco no rosto de seu prisioneiro, com força o bastante para quebrar aquela presa que costumava ficar do lado de fora de sua boca.


            Mutano sentiu o gosto quente e ferroso do sangue explodir em sua boca, enquanto sua cabeça parecia ribombar como o sino de uma catedral. Era uma sorte que seu dente fosse crescer de novo dali a algumas semanas, mas ele nem chegou a pensar nisso. A força do golpe tinha forçado sua cabeça para baixo, e ele acabara notando uma coisa diferente no uniforme de Slade: a fivela de seu cinto tinha a forma de um losango vermelho e translúcido, do tamanho de um punho fechado, que até parecia uma versão gigante do chakra que adornava a testa de Ravena. Mas aquilo, por alguma razão, lhe dava uma sensação desagradável, forte o bastante para ser percebida mesmo através da dor que inundava seu rosto, que já estava começando a inchar.


            O vilão mascarado, por sua vez, estava esperando o metamorfo erguer novamente o rosto, pois queria olhar em seus olhos antes de bater novamente. Infelizmente, porém, uma cacofonia de sons, vindos do outro lado da porta, levaram-no a se virar. Isso aconteceu no exato momento em que, com um som de explosão, um objeto esférico atravessou a parede e veio quicando até ele, que o parou com o pé.


            Era a cabeça de um dos Sladebots remanescentes, que estava de guarda na outra sala.


            Vendo isso, ele cruzou os braços atrás das costas, aguardando, enquanto testemunhava a porta metálica dupla se retorcer, encolher e se despedaçar, revelando a escuridão absoluta que estava do outro lado.


            Uma escuridão onde pulsavam quatro pontos de luz. Luz vermelha.


            E esta visão inspirou-o a proferir uma, e somente uma, palavra:


- Finalmente...


 


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            A cena que se desenrolava naquele galpão, à primeira vista, nada tinha de memorável. Mutano acorrentado a uma espécie de tablado vertical, e Slade aguardando a uma pequena distância dele, olhando para o vão escuro onde, até poucos segundos atrás, havia uma porta metálica.


            Sim, nada de memorável... até se notar a densidade da escuridão que estava do outro lado da porta e, principalmente, os dois pares de olhos vermelhos como rubis, que pulsavam lá dentro.


- Você está de posse de algo que me pertence. – A empata cruzou a linha da porta que destruíra. As sombras no interior de seu manto formavam tentáculos, que chicoteavam em várias direções, alguns abrindo rachaduras no chão de concreto. E a sua voz... não era a sua voz. Era algo diferente agora... algo que não era deste mundo.


            Mutano, que estava vendo tudo, estava com mais do que simplesmente medo: estava preocupado. Num primeiro momento, pensara que sua namorada estivesse encenando, da mesma forma que fizera na última aparição do Dr. Luz. Mas logo pôde sentir, no âmago de seu ser, que aquilo... era real. Luz e calor pareciam estar sendo banidas da sala enquanto Ravena entrava, e, se ainda lhe restavam quaisquer dúvidas quanto à seriedade da situação, elas desapareceram assim que a nova voz da empata se fez ouvir.


- Saudações, Ravena. – o vilão de armadura não parecia nem um pouco abalado em vê-la, apesar da terrível transformação que tinha se operado nela. De fato, ele curvou muito levemente a cabeça, em uma imitação de uma mesura. – Vejo que não está mais negando suas origens... seu pai ficaria orgulhoso.


            Assim que a voz pedante se extinguiu, um dos tentáculos de sombra que estava do lado de fora da capa fez um movimento rápido, e o contêiner mais próximo a Slade desmantelou-se, cortado em cinco pedaços.


- Você poderá dizer isso diretamente para ele, a menos que me devolva. – era apenas isso o que ela pretendia dizer, mas a postura irritantemente calma do vilão a levou a impor uma condição extra. – E neste caso, eu apenas quebrarei as suas pernas.


- Uma oferta tentadora... mas permita-me apresentar uma contraproposta. – O criminoso de um olho só respondeu, e então puxou a alavanca que Mutano tinha visto antes. O chão sob os pés dele se abriu e se moveu, revelando um poço cheio d’água, no qual o tablado a que estava preso começou, lentamente, a submergir.


            A primeira reação de Ravena e Mutano foi arregalar os olhos, surpresos com o fato de seu inimigo não virar as costas e correr, deixando-os para lutar com algum de seus servos ou outro tipo de armadilha. Mas apenas pelo equivalente a um segundo e meio, pois, no momento seguinte, tentáculos feitos de sombra atacaram, ao mesmo tempo em que contêineres brilharam com luz negra, antes de serem propelidos com velocidades próximas à do som.


            Slade, entretanto, desviou-se com uma graça felina. Ele se movia sem qualquer esforço, como se não estivesse vestido dos pés à cabeça com uma armadura. Além disso, apesar de se mover com uma agilidade que parecia sobre-humana, havia algo em sua expressão corporal... que não combinava com a de um homem lutando pela sobrevivência. Havia nele uma calma confiante, típica de homens que acreditam ter o corpo fechado. E isso enfurecia a empata ainda mais.


- Mas qualé a desse maluco? – o metamorfo não conseguia ver um sentido na atitude de seu adversário. – Ficar dando tapinha nas caixas que a Rae arremessa?


            E de fato, Mutano tinha percebido que, ao se desviar, o inimigo dos Titãs sempre dava um jeito de tocar os contêineres arremessados, com a pedra vermelha que antes estava presa à fivela de seu cinto. E isso, no entender do Titã verde, só podia ter um significado:


- Ele tá zoando com a nossa cara! – E, embora lhe perturbasse muito ver Ravena no estado em que estava, agora estava desejando que ela se recuperasse um pouco mais tarde... de preferência, depois de varrer o galpão usando Slade como vassoura.


            Mas, no momento, não havia muito que ele pudesse oferecer, além de pensamento positivo. O estranho jogo de gato e rato prosseguia, assim como a fúria da filha de Trigon, que parecia estar destruindo tudo à sua volta, enquanto proferia maldições impronunciáveis contra seu adversário. E ele, por sua vez, mantinha a mesma calma e silêncio sepulcrais. Mutano, assim como Ravena, estava certo de que Slade tinha sido atingido de raspão pelo menos umas oito vezes, mas isso provavelmente não passava de impressão: se um daqueles tentáculos negros tivesse conseguido tocar sua vítima, ela certamente teria sentido. E muito.


            Nenhum dos dois Titãs conseguiria entender o porquê do criminoso de um olho só estar lutando dessa maneira, mesmo que estivessem efetivamente preocupados com isso. Afinal, sabiam que ele não poderia continuar se esquivando para sempre, e, nesse momento, era só isso o que lhes importava.


            E realmente, foi com um grito de satisfação que o Titã mais jovem viu seu algoz ser atingido pela primeira vez: um tentáculo de sombra que descia sobre ele se contorceu no último instante, chicoteando-o bem no meio do peito. A própria forma sombria se desfez com o impacto, que foi forte o bastante para gerar uma onda de choque que arremessou Slade contra uma parede próxima, formando um buraco com a forma de seu corpo.


            O vilão mascarado, por sua vez, desgrudou-se da parede, sem trair o menor vestígio da dor que estava sentindo. Mesmo com as medidas preventivas que tinha tomado, este golpe o tinha atingido com força além do previsto. Realmente, considerou ele, os reforços extras adicionados à armadura estavam cumprindo o seu papel de forma exemplar.


            Mas não havia tempo para esse tipo de ponderação, pois, mal Slade terminara de se soltar da parede em que tinha afundado, e a empata estava novamente sobre ele, disposta a arrancar sua cabeça dos ombros. Num movimento improvisado, limitado pela falta de espaço, ele desferiu um soco, que foi realizado de forma horrível, capaz de deixar até mesmo um lutador novato com vergonha. No entanto, sua pontaria foi perfeita, pois acertou Ravena bem na ponta do nariz.


            Atordoada por um segundo, a empata fez uma cara que, de tão vesga, chegava a ser cômica, com os quatro olhos voltando-se para o nariz machucado. Claro que, nesse instante que outros gastariam rindo, o criminoso de um olho só consolidou sua vantagem, acertando a empata com um forte chute na região abdominal, desta vez em um golpe perfeito. Ela caiu a quase 2 metros de distância dali, e, caso estivesse em condições normais, estaria agora se contorcendo de dor.


- Levante-se, demônia. – desafiou ele. – Eu sei que você pode fazer melhor do que isso.


            Talvez jamais venhamos a descobrir qual foi o insulto mais grave. Se foram as palavras que ele tinha acabado de proferir, se era o fato de ele desafiar a herdeira de Trigon, ou se (Blasfêmia!) era a ousadia de acreditar que ainda podia vencer.


            O resultado, de qualquer forma, não demorou em se fazer perceber. Foram necessárias algumas frações de segundo para que Ravena se levantasse, e, se antes ela parecia furiosa, agora estava... bom, digamos apenas que é melhor não saber.


            E, se antes os ataques dela pareciam algo ao qual se podia sobreviver, a resposta agora era que... não. Simplesmente não. Os tentáculos de sombra agora tinham extremidades parecidas com pontas de lança, e, ao invés de chicotear, estocavam, tentando desesperadamente empalar seu alvo. Rajadas de energia negra também cruzavam o ar como se fossem tiros de metralhadora, e, como se isso não bastasse, caixotes e contêineres eram arremessados com tamanha força, que até os estilhaços que voavam faziam marcas na parede.


            Mutano, que a esta altura estava imerso na água até os joelhos, assistia à luta com um misto de horror e fascínio. Horror, porque a fúria infernal que tinha tomado sua amada parecia prestes a consumi-la: atacar, atacar, atacar, era tudo o que ela parecia ser capaz de fazer agora, indiferente até mesmo aos pedaços de contêineres que voavam e acertavam até mesmo a si mesma. Ele não acreditava nisso, mas o medo de que existisse um ponto do qual não houvesse retorno estava, gradualmente, ficando mais forte.


            E fascínio, pois esta era uma luta como poucas que este mundo jamais viu ou verá. Uma batalha que, se as crenças de Lamunda Superior estiverem corretas, mandaria um guerreiro para um lugar de honra no outro mundo, mesmo na derrota. Por mais que desejasse ver Slade esmagado, o metamorfo não podia deixar de admirar a resistência que ele estava oferecendo. Ele viu o vilão mascarado se desviar de quase todos os ataques e bloquear os demais, usando aquela pedra para se proteger. De fato, houve um momento em que ele bateu com ela em um tentáculo de sombras, que se desfez imediatamente. Esse foi um dos poucos momentos em que a face transfigurada de Ravena se contorceu de dor.


            Mas havia algo... mais. Aquela mesma sensação desagradável de antes, que o Titã verde tivera ao pôr os olhos na pedra que agora estava na mão de Slade, estava ficando mais forte a cada momento. Mais e mais e mais e mais forte. Do interior das câmaras em sua mente, a voz desenvolvida pela vida terrestre ao longo de três bilhões de anos gritava a uma só voz, e, talvez pela primeira vez na vida, Mutano podia entender claramente: Não-é-des-te-mun-do.


Não-é-des-te-mun-do.


Não-é-des-te-mun-do.


Não-é-des-te-mun-do.


            E isso fez com que ele mantivesse os olhos colados na pedra. Agora diferente do vermelho vivo de quando estava presa ao cinto, a gema era de um escarlate muito escuro, quase preto. Quando usada para bloquear rajadas, a energia se assemelhava a uma gota de água ao cair no chão e, nas vezes que seu captor a usava para tocar os objetos arremessados por Ravena, estes perdiam imediatamente o brilho, apesar de manter o impulso restante.


            O significado deste fenômeno só se tornou claro dali a vários minutos, quando Slade, seja por cansaço ou qualquer outro motivo, parou por um instante. Nesse interregno, que na verdade durou pouco mais do que dois batimentos cardíacos, os muitos tentáculos de sombra que o perseguiam juntaram-se no mesmo percurso, tão colados uns nos outros que pareciam um só, apontando diretamente para o coração do vilão de armadura, que, num movimento-relâmpago, se protegeu com a pedra losangular que tinha em mãos. O impacto dos tentáculos contra a gema não gerou som algum, mas produziu uma onda de choque que foi sentida por todos os presentes, e jogou os fragmentos de contêineres longe. Os tentáculos negros fizeram força contra a pedra por alguns momentos, mas logo, em outra onde de choque silenciosa, desapareceram, enquanto Ravena caiu de joelhos no chão, ofegante.


            Na verdade, conforme só a visão aguçada do metamorfo foi capaz de captar, os tentáculos negros não tinham simplesmente desaparecido: tinham sido sugados para DENTRO da pedra que Slade segurava, que agora estava mais escura do que nunca. Com essas novas informações em mente, não foi difícil chegar a uma conclusão:


- Rae! Cuidado! Aquela pedra na mão do Slade tá sugando sua energia! – Mutano começou a gritar. – Pára de atacar! Me solta aqui e a gente dá um cacete nele juntos!


            Mas a empata, se por acaso estava ouvindo, ignorou-o completamente. Havia um único objetivo para ela agora, reduzir seu adversário a uma ruína alquebrada e balbuciante, implorando por misericórdia. E, para isso, ela faria uso de seu maior e mais terrível poder.


- Ih, cara... – Foi só isso que o Titã mais jovem conseguiu dizer, ao ver sua namorada se esticar até ter quase quatro metros de altura, abrindo o manto sob o qual havia uma escuridão que parecia ser infinita. E de dentro dessa escuridão, saíram novos tentáculos de sombra, que se envolveram no vilão de armadura e começaram a arrastá-lo.


            Desta vez, no entanto, Slade não fez qualquer movimento para se defender. Simplesmente permaneceu parado, deixou-se agarrar pelos tentáculos, para então ser puxado para dentro da capa de sua adversária.


            E, assim que ele desapareceu lá dentro... silêncio. De repente, não havia mais luta dentro daquele galpão, que parecia ter ficado ainda maior. Demorou um momento para Ravena perceber a ausência de sua vítima, e então explodiu em uma gargalhada de triunfo.


            Gargalhada essa que logo foi interrompida por um som estrangulado.


- Nnnhg... algo está errado... o que é que está havendo...? NÃO! – Ravena curvou-se sobre si mesma, como se sentisse dor... ou como se estivesse segurando algo, tentando impedir que saísse... de dentro dela mesma.


            Mas a agonia da empata durou apenas uns poucos segundos, pois, em uma explosão de energia negra, ela foi jogada para longe. E, no local onde ela estava antes, agora Slade se erguia, triunfante. A pedra em sua mão estava completamente negra agora, e brilhava com a mesma aura que, momentos antes, pertencera a Ravena.


            Mutano, a esta altura, estava surpreso e preocupado demais para falar. Seu olhar estava fixo em sua namorada, que tinha voltado ao normal. Ela estava caída no chão, e tentava se levantar, sem sucesso. Mesmo de longe, era possível ver que ela estava muito fraca, tremendo como se fosse gelatina.


            Sim a reviravolta tinha sido tão inesperada, tão fora das expectativas, que os dois adolescentes só se lembraram que seu inimigo não estava derrotado, quando ouviram sua voz soar novamente:


- Sabe o que é isto, Ravena? – Perguntou o vilão de armadura, mostrando a pedra losangular que brilhava em sua mão. Estava se aproximando dela devagar, passo a passo, como se tivesse todo o tempo do mundo.


            A empata voltou o rosto para ele, mas sua cabeça ainda rodopiava, e seu olhar não tinha foco. Vendo isso, Slade decidiu responder à própria pergunta.


- Este artefato em minhas mãos é o Coração de Scath. Um nome familiar, não acha?


            A empata, apoiada em um dos poucos contêineres ainda intactos, lutava para se manter de pé. E não era só a fraqueza súbita que combatia, mas a sensação de estar... incompleta. De que algo essencial lhe tinha sido... arrancado.


- O que fez comigo? – Ela conseguiu perguntar, tendo, de alguma forma, reunido forças para encarar a face de seu inimigo.


            Slade sorriu por trás da máscara. Tinha obtido sucesso completo em seu plano, e agora dispunha da única ferramenta que precisava para colocar este planeta inteiro de joelhos. O Morcego de Gotham, a princesa amazona, o Lanterna Verde... nenhum deles seria páreo para ele agora. Talvez nem mesmo o Homem de Aço.


            Agora só precisava atar as duas pontas soltas que tinha em mãos, e então nada mais nesse mundo seria capaz de detê-lo.


            Mas, enquanto se adiantava para dar fim à primeira delas, uma memória lhe veio à mente. Uma memória com mais de um ano de idade, mais especificamente do dia em que esta adolescente petulante tinha humilhado-o, como se ele fosse um dos muitos inúteis com que ela e seus quatro amigos abarrotavam as penitenciárias locais.


            Sim, Slade se lembrava muito bem daquele momento. E essa lembrança ajudou a despertar um antigo desejo, desejo por algo que só o poder pode comprar.


            Vingança. Deixada fermentando em uma receita própria, envelhecida até o momento preciso, e extraída com as próprias mãos. Como um bom vinho.


            E então, o vilão de armadura acertou a empata com um chute bem na boca do estômago. Um golpe maligno, pois atinge uma parte do corpo com pouca proteção muscular, causando dores violentas. Além disso, o impacto afeta o diafragma, impedindo a vítima de respirar por alguns instantes. O resultado normalmente é uma pessoa de joelhos ou caída no chão, incapaz de suportar a dor, seja na barriga ou nos pulmões paralisados. Exatamente o que estava acontecendo com Ravena neste exato instante. A coitada estava tentando recuperar o ar que o chute tinha expulsado de seu peito, mas a dor era forte demais.


- O... o que diabos está acontecendo? – Mutano, agora mergulhado na água até a cintura, mal conseguia acreditar no que estava vendo. O caolho desgraçado já tinha vencido, mas AINDA ASSIM continuava batendo sem sua namorada?!? – SLADE!! TIRE ESSAS MÃOS IMUNDAS DE CIMA DA RAE!!


            Mas o criminoso de um olho só ignorou-o. Para ele o metamorfo era um nada, não mais do que uma mascote que poderia ser substituída por qualquer coisa comprada em uma loja de animais. A verdade, entretanto, é que a última palavra dele fez com que se lembrasse de algo. A razão pela qual tinha decidido usá-lo como isca, para começo de conversa. Havia também algumas contas a ajustar com o Titã verde, e algo lhe dizia que ele sentiria cada golpe aplicado na empata, que estava fazendo o possível para se levantar e lutar. Sim, seria como matar dois coelhos com uma cajadada só.


- Você sempre se perguntou se merecia seu lugar na sua “equipe”. Uma pergunta pertinente. – disse o vilão de armadura, andando muito calmamente em volta de Ravena. – Um enigma aparentemente insolúvel, o fato de os Jovens Titãs ainda te aceitarem, mesmo depois de você trazer Trigon, o Terrível, para este universo.


            A empata, que tinha acabado de se colocar em pé novamente, respondeu cuspindo em seu adversário. Sua recompensa foi uma rasteira tão forte que a fez rodopiar no ar. Por instinto, tentou levitar a si própria, mas, como não tinha mais seus poderes, acabou caindo de cabeça no chão. Sua visão encheu-se de pontinhos de luz que piscavam, enquanto uma dor pulsante fazia com que seu crânio parecesse prestes a explodir.


- Slade! Seu covarde desgraçado! Você se diverte espancando uma garota indefesa!??! – uma fornalha tinha se acendido no interior do metamorfo, e suas chamas não se apagariam tão cedo. – Lute comigo, seu monte de imundícies! LUTE COMIGO!


            Os desafios furiosos dele, infelizmente, não surtiram qualquer efeito no vilão mascarado. Pelo contrário: os gritos e xingamentos só serviam para lhe mostrar o quanto o Titã mais novo estava impotente e desesperado. Exatamente como ele queria que estivesse.


- Sabe como o Coração de Scath veio parar em minhas mãos, Ravena? Seu pai o entregou a mim no seu décimo sexto aniversário, e esperava que eu aprisionasse a VERDADEIRA filha dele aqui dentro, a parte de sua alma que se origina em Trigon, para só então abrir o portal. – Slade tinha se acocorado perto da empata, e falava com a mesma calma pedante com que estava habituado. E esperou até uma expressão de surpresa horrorizada se formar no rosto da sua vítima, para só então voltar a falar. – Sim, Ravena. ESTA é aquela que deveria ter sido a gema da profecia. E você desperdiçou todo o esforço de seus amigos, trazendo seu pai para este mundo... poupando o Coração para este momento, em que ele está sob o comando de seu verdadeiro mestre, eu. Não Trigon, mas eu. – e então, rindo, ele se levantou. – Talvez eu lhe deva um agradecimento, não concorda?


            Jamais saberemos se foi por causa das provocações, ou se era por não haver mesmo outra forma de escapar, mas o fato é que Ravena atacou seu adversário, tentando derrubá-lo com as mãos nuas.


            Foi uma decisão desesperada: a empata sempre fora uma garota forte, que sabia como cuidar de si mesma, mas, sem seus poderes, jamais seria páreo para Slade, que chegou até mesmo a se deixar atacar por um minuto quase inteiro, deixando-a machucar as mãos contra as placas de sua armadura. E, no momento em que se cansou de observar aquele esforço inútil, desferiu um soco que atingiu a garota em um ponto específico, alguns centímetros abaixo das axilas. Outro golpe maldoso, cujo objetivo era causar aquilo que os praticantes de artes marciais chamam de “dor viva”. Em bom português, o caolho dos diabos batia onde doía, mesmo.


            Mutano, por sua vez, estava fazendo todo o possível para se soltar, sem sucesso. Suas algemas eram feitas de uma fortíssima liga de aço-boro, com uma dureza quase igual à do diamante, que até mesmo suas formas maiores e mais fortes teriam dificuldade em destruir. E, como se não bastasse o soro que o impedia de se transformar em animais terrestres, ainda havia as salvaguardas elétricas, programadas para atuar caso sua estrutura bioquímica sofresse qualquer mudança: por duas vezes, elas impediram que o Titã verde se tornasse um cão de guarda tamaraneano, castigando seu corpo até a semi-consciência. Desta vez, ao que tudo parecia indicar, o vilão de armadura tinha planejado bem: não havia nada que pudesse fazer, além de assisti-lo torturar sua namorada.


            E torturá-la foi o que Slade fez, obtendo grande prazer ao fazer pouco das fracas tentativas de resistência por parte da empata. Ninguém, absolutamente ninguém, seria capaz de chamar aquilo de luta. Até mesmo Madame Rouge, no fundo de seu coração frio como gelo, consideraria aquilo... desnecessariamente cruel.


            O inferno do casal de Titãs durou até que o metamorfo estivesse imerso até o peito na água, pois foi nesse instante que Ravena foi atingida na face esquerda por uma cotovelada. Um golpe bastante temido, pois, apesar do curto alcance, é capaz de estilhaçar os ossos de um rosto, se aquele que o desfere possui força o suficiente.


            E o criminoso de um olho só tinha força o suficiente: Mutano pôde ouvir os milhares de estalos vindo da mandíbula de sua amada. Ouviu o som úmido do sangue que foi de encontro ao chão, e ouviu também o ruído abafado que a empata fez ao cair.


            Tudo isso ele ouviu, e mais:


- Eu SEI o que é que a desperta.


            Os eletro condutores acoplados aos grilhões do metamorfo foram então ativados, e a eletricidade parecia rugir enquanto era descarregada com sua potência máxima. O computador embutido à parede soltou um alarme, enquanto seu monitor revelava índices de atividade corporal que ultrapassavam as escalas.


- Um ser cuja fúria rivaliza até mesmo com a minha...


            Slade ignorou o alarme, enquanto andava calmamente para a adolescente caída. Estava se divertindo demais agora, até mais do que deveria: se a mascote dos Titãs pretendia se suicidar com os choques, muito bem, que assim seja. De uma forma ou de outra, morreria carregando o peso do fracasso nas costas.


- ... quando chegar a hora, VOCÊ MESMO vai decidir usar aquela força magnífica.


            Uma das algemas se estilhaçou, incapaz de conter seu prisioneiro. Dentes se alongaram e se afiaram, tornando-se presas. Pele engrossou e criou pêlos, tornando-se couro. Unhas cresceram e endureceram, tornando-se garras. E a razão foi rapidamente suplantada, enquanto uma fúria infinita trazia a Fera de volta para este mundo.


- RRRRRRRRRRROOOOOOOOOOOOOOAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRR!!!!!!


            O vilão mascarado estava com um pé sobre o pescoço de sua vítima, prestes a dar o golpe de misericórdia, quando ouviu o rugido. O soro que tinha aplicado no metamorfo deveria impedi-lo de produzir esse tipo de som, e por isso ele se virou, para que pudesse verificar se havia algo de errado.


            Não conseguiu. De fato, ele nunca conseguiu reconstituir completamente aquele momento de sua vida.


            Tudo o que ele jamais conseguiria lembrar seria de se virar um pouco, e então um impacto. Forte. Esteve vagamente ciente de sentir três costelas se transformando em farelo, e de sentir o concreto da parede se desfazer enquanto seu corpo era propelido através dela. E então viu-se caído de bruços no chão, com uma dor no flanco como não sentia há anos.


            E o vilão de armadura tivera sorte. Realmente, tivera tanta sorte que, caso acreditasse na sua existência, se ajoelharia para render graças: fora aquela simples precaução de verificar o que estava acontecendo de errado, aquele leve movimento de se virar cinco centímetros para a esquerda, que garantiu que apenas três de suas costelas fossem despedaçadas, ao invés de sua coluna dorsal.


            Ainda caído no chão, ele levou o Coração de Scath até se flanco ferido, e a aura negra que emanava da jóia tornou-se azul, restaurando seus ossos e regenerando a carne lacerada de forma quase instantânea.


            Curado, Slade levantou-se, ignorando um pequeno remanescente de dor que ainda subsistia no local onde fora ferido. Atento, ele atravessou o buraco na parede, disposto a descobrir o que é que tinha acontecido. E, assim que colocou os pés do outro lado, pôde ver que tanto a empata quanto o metamorfo tinham desaparecido: de fato, o tablado ao qual o Titã verde estivera preso agora estava partido em três pedaços, no fundo do poço de água. O que, afinal de contas, acontecera naqueles poucos instantes em que esteve caído? Uma missão de resgate?


            Um leve som mostrou-lhe que a resposta para essa pergunta era negativa. Na outra extremidade do galpão, havia movimento, e assim que conseguiu localizar sua fonte, o vilão mascarado pôde ver que se tratava de um grande animal verde, que tinha pendurada na boca uma coisa azul, preta e cinza. Parecia estar vasculhando o local, e após mais alguns instantes farejando, depositou delicadamente a sua carga no chão, no canto mais distante possível. A criatura farejou a garota caída duas vezes, e lambeu seu rosto.


            E então se virou para o criminoso de um olho só. Havia algo naqueles olhos brancos e sem pupila, que fez com que ele, pela primeira vez em muito tempo, sentisse as garras geladas do medo na base de sua espinha. Um pequeno esforço de vontade suprimiu essa sensação, mas nada podia mudar o fato... de que ela estivera lá.


            Mas a troca de olhares durou pouco, pois quase quinze metros foram cruzados em um único salto, colocando os dois oponentes um de frente para o outro, a dez metros de distância.


            Diferente dos muitos animais nos quais Mutano se transformava, as mudanças físicas pelas quais ele passara nos últimos meses se refletiam na Fera agora. Se antes a criatura se erguia a cerca de dois metros e meio do chão, agora certamente chegava a três, e seus braços pareciam troncos de árvore verdes de musgo, com músculos que faziam lembrar cordas torcidas. No lugar de cabelo agora havia uma juba, que caía selvagem pelo pescoço até chegar aos ombros. Presas enormes saíam para fora da boca, e nas mãos e nas patas, estavam garras longas e afiadas como lâminas. Havia uma palavra, e apenas uma, capaz de definir o ser que agora desafiava Slade.


- ... Formidável... – O vilão de armadura deixou escapar, enquanto avaliava seu oponente. Aquela certamente não era a forma de um animal terrestre, o que explicava o porquê de seu soro não ter funcionado. Além disso, parecia ter resistido muito bem aos choques elétricos, o que sugeria uma fortitude muito além de qualquer coisa que já tivesse abatido em suas caçadas. Muito, muito além.


            E, quando a Fera rugiu pela segunda vez, um som que seria ouvido a quilômetros se tivesse sido feito em campo aberto, ele soube o que aquilo queria dizer: Par-ta, era a mensagem que a criatura estava lhe dando, Par-ta-e-nun-ca-mais-vol-te, ou-mor-ra. Apenas três coisas podem levar animais a lutar até a morte; território, crias e fêmeas, e a surra que tinha dado em Ravena era certamente o bastante para inspirar um frênesi.


            Mas se esta variável no plano preocupava o criminoso de um olho só, ele não deu quaisquer mostras disso. Sim, havia algum medo ali: a garganta estava seca, um músculo na perna tremia, e as costelas doloridas davam uma sensação azeda na barriga, mas, entremeado a tudo isso... havia empolgação. Com os poderes da filha de Trigon presos no Coração de Scath, Slade tinha diante de si todo um universo de possibilidades, e aquela coisa, aquela... Fera que lhe fazia oposição agora, certamente o faria estender seu novo poder até os limites.


            E isso... era motivo de júbilo. O júbilo do guerreiro, que só se alcança em combate contra oponentes de igual ou maior valor. O prazer de olhar a morte nos olhos e cuspir em seu rosto. A calma da batalha, quando o corpo parece adquirir vida própria, apenas para roubá-la daqueles que o enfrentam. Slade quase podia sentir a juventude retornando para seus ossos, enquanto se adiantava para atacar.


- Habilidade nova, metamorfo? – ele respondeu ao desafio da Fera. – Dois podem jogar esse jogo.


 


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-Hora de mudar de estratégia. – Pensou Slade, enquanto usava o Coração de Scath para restaurar seu organismo pela enésima vez.


            Sua armadura estava destruída em alguns pontos: o ombro esquerdo, a coxa direita e o meio do peito estavam completamente expostos, sua proteção há muito despedaçada. E o resto dela estava cheia de cortes profundos, que chegavam mesmo a atravessar o metal. Sua salvação tinha sido o artefato que tinha em mãos agora, que tinha curado as inúmeras feridas impostas pelo combate.


            O vilão de armadura relembrou os acontecimentos da luta até aquele instante, protegido por um domo de força conjurado. Era uma tarefa mais difícil do que parecia, pois os golpes da Fera ecoavam como trovões, e suas garras chegavam até mesmo a perfurar o domo, exigindo um pouco mais de concentração para mantê-lo e repará-lo


            Ele lembrou de como a luta tinha começado. “Dois podem jogar esse jogo”, dissera, para então disparar uma rajada de energia contra a criatura verde. Não contara, no entanto, que aquele bicho pudesse ser tão ágil, que ele pudesse se desviar de seu ataque com um salto e, que nesse único salto, conseguisse não só vencer os mais de dez metros que os separavam, como ainda pousar bem em cima dele. Lembrava de os dois terem rolado no chão, num rodamoinho de garras, rosnados e dentes.


            Mas antes que aquela mandíbula se cravasse em sua garganta, fora capaz de disparar uma rajada. A Fera fizera um som parecido com um miado, enquanto as chamas negras queimavam seus pêlos, ao mesmo tempo em que a jogava para o alto com força o bastante para fazê-lo afundar no teto. Um ser humano teria sido esmagado pelo impacto, mas o monstro simplesmente cravou as garras das mãos no concreto e usou isso como apoio para torcer o corpo, apoiando ambas as patas traseiras no teto. Então, com um grande impulso, saltou de volta para cima dele.


            Esse processo todo levou menos de um segundo para se desenrolar.


            Foi nesse instante, relembrou Slade, que ele perdera a peça de armadura que protegia o ombro. Naquela fração de segundo, naquele instante que vira a besta-fera apoiando os pés no teto, erguera um escudo rente ao corpo, e saltara para o lado, tentando se esquivar.


            Mas fora lento demais. Ou, talvez fosse mais adequado dizer, a criatura tinha sido rápida demais. O golpe desferido podia ter errado sua cabeça, mas as garras afiadas conseguiram romper o escudo, atingindo-o de raspão no ombro. Boa parte da força do golpe tinha sido desperdiçada contra a barreira mística, mais ainda assim a armadura, feita de Kevlar e reforçada com ligas de polissilicatos, foi cortada como se fosse manteiga: a carne de seu ombro fora rasgada até o osso.


            E mal tocara as patas no chão, a Fera já estava de volta ao ataque. Saltando. Mordendo. Arranhando. Rosnando. Não era possível prever qual seria o próximo ataque, pois a única coisa que aqueles olhos brancos e sem pupila mostravam eram sede de sangue, fúria e selvageria. Não era possível se esquivar, pois a coisa se movia com uma velocidade surpreendente para o seu tamanho, e cada tentativa de evitar seus golpes resultava em mais marcas de garras na armadura. E não era possível bloquear os golpes, pois eles eram pura e simplesmente fortes demais: mesmo suas melhores técnicas, executadas com precisão, não impediam seus braços de vibrar a cada impacto. Se um de seus ossos se partisse, e ele largasse o Coração de Scath, seria o fim.


            A solução veio através da estratégia. Com um leve esforço de concentração, um dos poucos contêineres ainda intactos brilhou com luz negra, e depois veio voando de encontro às costas da Fera, em uma velocidade absurda. Sabendo que o impacto jogaria o monstro direto para cima de si, Slade levitou, tentando passar por cima dele.


            A idéia teve sucesso... parcial. Sim, o contêiner acertara em cheio as costas da Fera, arremessando-a com toda a força contra uma parede próxima, e sim, ele tinha conseguido se erguer no ar a uma altura um pouco maior que a de seu oponente. O problema é que, naquela fração de segundo entre o salto e o impacto, a criatura erguera a cabeça, cravando os dentes bem no peitoral de sua armadura.


            E aquelas mandíbulas tinham-se fechado como um torno, arrastando-o junto para a colisão contra a parede. Talvez tivesse sofrido menos que o animal verde, já que suas pernas bateram contra sua carne ao invés da parede, mas continuava preso pelo peito: a Fera, que só parecia ter ficado mais zangada com a batida, apoiou-se sobre os quatro membros, e sacudiu a cabeça com toda a força.


            Slade lembrava-se de ter tido a impressão de estar dentro de uma centrífuga, de tanto que fora chacoalhado. Tinha batido a cabeça, os braços e as pernas no chão mais vezes do que podia contar, e tudo o que fora capaz fazer foi manter o artefato de Trigon seguro em suas mãos. Esse pesadelo durou um minuto quase inteiro, até a placa peitoral finalmente ceder. Lembrava de ter rolado pelo chão por vários metros, mas, pelo menos, estava livre. Fora nesse instante que erguera o domo protetor atrás do qual estava agora. As garras da Fera ainda perfuravam a barreira de energia negra, mas os cortes eram muito pequenos, e eram fechados quase que instantaneamente.


            Sim, fora tudo isso que acontecera até o presente momento, e Slade, enquanto se curava, pensava na melhor maneira de vencer a criatura que desejava seu sangue. Tinha tido sorte mais uma vez, já que os dentes de seu oponente tinham se cravado na armadura e não no seu peito, e sabia que, se fosse atingido novamente, nem toda a sorte do mundo o salvaria. Hora de tentar uma abordagem mais sutil.


            O que ele já sabia? Sabia que estava lutando contra um ser forte demais para se derrotar em combate corpo-a-corpo, mesmo com a ajuda de escudos místicos. Sabia também que seu inimigo, seja devido a uma resistência natural, ou a uma fúria insana, parecia ignorar completamente a dor dos ferimentos. E, por fim, sabia que a besta-fera estava mais protegendo Ravena do que atacando-o: em nenhum momento, o espaço entre ele e a empata chegara a ficar desobstruído.


            E talvez fosse essa a resposta que o criminoso de um olho só procurava: se o Titã verde estava disposto a proteger a garota caída com a própria vida, bom, quem era ele para negar esse desejo?


            Ele localizou o último contêiner que ainda não tinha sido despedaçado na refrega, e, baixando o domo protetor, arremessou-o. O objeto foi propelido com uma velocidade bem inferior à máxima, mas tinha sido disparado... contra um canto específico do galpão.


            No instante que a barreira que a separava de sua presa desapareceu, a Fera, correndo com as quatro patas, avançou para cima dela. Mas suas orelhas tremeram uma vez quando o contêiner passou assobiando por sobre sua cabeça, e então suas garras fizeram um som horrível ao raspar o chão, numa tentativa desesperada de frear o próprio impulso. E, quando finalmente conseguiu parar, saltou para interceptar o objeto que ameaçava sua protegida, e podia-se ver algo parecido com preocupação, estampado em seu focinho.


            Exatamente conforme Slade esperava. Tão logo as patas de seu adversário deixaram o piso, uma bola de fogo negra foi disparada, atingindo-o uma fração de segundo após acertar uma pancada no contêiner que voava, desviando sua rota.


            O impacto das chamas negras jogou a Fera com força contra a parede, e empesteou o ar com o cheiro de pêlos queimados. Mas, antes que caísse, esmagando a empata no processo, garras cravaram-se na parede até quase a falange dos dedos, fazendo com que aderisse a ela.


            Mais ou menos no mesmo instante em que uma segunda bola de fogo escuro atingiu seu alvo. Uma das mãos soltou-se da parede, mas a outra continuou firme. Firme o bastante para permitir que, com um balanço, caísse a alguns metros de distância de Ravena, mais especificamente em meio ao conteúdo de um contêiner destruído.


            Esse contêiner estava carregado com artigos esportivos velhos, e uma bola de boliche rachada cortou o ar como um meteoro, com destino à face mascarada do vilão de armadura, mas a esfera azul-turquesa bateu no escudo de energia conjurado por ele, espatifando-se em mil fragmentos. Com um sorriso de desprezo ante a tentativa patética de realizar com contra-ataque, Slade baixou o escudo, já com uma nova rajada pronta para disparar.


            Mas não teve essa chance: mal permitira que a barreira mística se dissipasse, e a Fera caiu sobre ele com um salto, fazendo com que ambos rolassem pelo chão novamente. Desta vez, no entanto, a criatura cravou os dentes em seu antebraço direito, atravessando armadura e carne até quase chegar ao osso. De novo. E esse era justamente o braço que segurava o Coração de Scath.


            O vilão de armadura mordeu os lábios até quase arrancar sangue, enquanto fazia uso de toda a sua força de vontade para não largar a pedra, pois seus dedos estavam dormentes devido às ligações nervosas rompidas. Tal esforço teve um sucesso além das medidas, pois não apenas permitiu que ele superasse a dor, como também que se concentrasse o bastante para formar um pequeno campo protetor, separando seu antebraço das mandíbulas daquele animal verde.


            No exato instante em que sentiu sua boca abrindo-se contra a vontade, a Fera atacou com as garras, em um golpe duplo que certamente arrancaria a cabeça de sua presa; mas, quando suas mãos tinham percorrido apenas a metade da distância que as separavam de seu alvo, uma aura negra envolveu ambas, imobilizando-as.


            Finalmente, a abertura que Slade precisava para se curar. Estava, logo após restaurar a carne e os nervos lacerados, pronto para arremessar a criatura insolente longe... quando lhe ocorreu uma idéia. Sua vítima já estava na posição que ele queria, então por que mudar isso?


            A Fera continuava a lutar contra a energia escura que prendia suas mãos e boca. Estava conseguindo, ainda que lentamente, superar a magia que o prendia. Mas quando estava a meramente um metro de distância de seu inimigo, as amarras místicas pareceram receber novo fôlego: a força que faziam multiplicou-se várias vezes, imobilizando-a.


            O criminoso de um olho só precisou recorrer até a última gota de sua formidável força de vontade, mas, pouco a pouco, lentamente, começou a superar a força do metamorfo; a energia que prendia os braços parecia fazê-los esticar-se mais e mais, e a esfera negra na boca também estava crescendo lentamente, forçando-a a se abrir cada vez mais.


- Só mais um pouco agora. Só. Mais... um... pouco... – Slade encorajava a si mesmo mentalmente. Só mais alguns instantes, e aquele animal teria a mandíbula arrancada, ANTES de ser partido ao meio por sua magia. Só não podia se esquecer de colher algumas amostras de material genético: se conseguisse clonar essa criatura, então teria à sua disposição uma arma de terror capaz de devastar uma cidade inteira. Seria questão apenas de soltar meia dúzia delas, e voltar uma semana ou duas depois, para tomar posse das ruínas.


            Felizmente para o resto do mundo, o planejamento do vilão de armadura foi interrompido, quando ele descobriu que a Fera era muito mais do que uma besta estúpida que só sabe arranhar e morder: a criatura levantou um dos pés, pousando-o no topo da cabeça de seu adversário. As garras encurvadas cravaram-se em seu capacete, prendendo-o.


            E, um instante depois, a fera baixou o pé até o chão. Com força. Com TODA a força. A cabeça de Slade abriu um buraco no piso e, se não estivesse muito bem protegida por seu capacete blindado, teria sido esmagada como se fosse um ovo. Mesmo assim, ele lutou contra a dor e a tontura, e não perdeu sua concentração: sua vítima continuava muito bem presa, e logo seria derrotada.


            Mas a palavra-chave aqui é “seria”, pois a coisa verde puxou a pata de volta para seu lugar, raspando-a no chão da mesma forma que um touro usaria para revolver a terra. O resultado foi que suas garras levaram consigo a metade esquerda da máscara, parte da carne da face, e algumas lascas do osso do queixo do vilão de armadura, que acabava de fazer uma nova descoberta:


            Que a dor de ter quase metade do rosto arrancado... ERA INSUPORTÁVEL!


            Uma explosão de energia negra jogou a Fera longe, e ela, com os braços dormentes e o queixo deslocado, não conseguiu se contorcer no ar para cair em pé. Não há como saber se foi o impacto da explosão, o fato de ter caído no chão como uma bigorna, ou se foi o tempo gasto forçando o queixo de volta para o lugar, mas o fato é que ela demorou quase vinte segundos para se levantar, tempo esse que foi bem usado por Slade, para restaurar sua face. Mas seja por conta da dor residual do ferimento, seja por que razão for, ele finalmente tinha abandonado a aura de calma calculada que sempre ostentava: para resumir, estava pura e simplesmente furioso.


- CHEGA! CHEGA DESSA BRINCADEIRA! – na verdade, “furioso” também não é uma palavra capaz de descrever o estado de espírito dele, pois chamas negras irromperam do Coração de Scath, a ponto de envolvê-lo completamente, e criaturas feitas de chamas escuras, muito parecidas com os soldados de Trigon, formaram-se aos montes no interior do galpão. – MORRA, METAMORFO! MORRA LOGO DE UMA VEZ! EU ORDENO QUE VOCÊ MORRA!


            “Ordeno que você morra”? Eis o tipo de frase que ninguém jamais esperaria um dia ouvir dele. Seria a dor tão forte assim, a ponto de sobrepujar uma força de vontade que mesmo os inimigos consideravam inabalável? Seria a influência de Trigon tomando conta, através do artefato infernal que tinha em mãos? Ou seria apenas sua mania de grandeza, irrefreada pelo fato de comandar novos e terríveis poderes?


            A Fera era indiferente. Já sabia tudo o que precisava saber a respeito de seu adversário, ou seja: que ele era capaz de sangrar, e portanto, também era capaz de morrer.


- RRROOOAAARRR!


            Foi a resposta que Slade recebeu, um instante antes da luta recomeçar.


 


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- Nnnnghh... – gemeu Ravena, enquanto recobrava a consciência. – Então... então não foi um pesadelo...


            Ela não se lembrava de ter sentido tamanha dor antes. O braço direito estava dormente, por ela ter ficado caída em cima dele numa posição inapropriada. O corpo estava coberto de manchas avermelhadas que estavam inchando. A visão estava sem foco, pois o olho direito estava tão inchado que não lhe permitia enxergar coisa alguma. E o rosto... a adolescente não ousava tocá-lo. Era talvez a parte de seu corpo que mais doía, e haviam poucas dúvidas quanto a seu maxilar estar fraturado.


            Tudo o que ela queria agora era desmaiar de novo, e assim, quem sabe, escapar da dor... mas não podia fazer isso. Não precisava de seus poderes para saber que estava correndo grave perigo; que precisava dar um jeito de soltar Mutano, fugir, e, assim que pudesse, procurar assistência médica.


            Demorou bastante para que ela conseguisse reunir forças para conseguir se ajoelhar no chão, e foi só então que pôde ver o que estava acontecendo à sua volta. Num primeiro momento, pensou estar em um depósito de sucata, e havia uma infinidade de caixas de madeira e contêineres destruídos, seu conteúdo esparramado pelo piso. As paredes do galpão tinham buracos enormes, que lhe permitiam ver as outras salas e até mesmo a rua, bem como um sem-número de marcas de garras e manchas pretas que deviam ter sido causadas por fogo.


            E havia também o cheiro. Ravena não poderia deixar de notá-lo, de tão forte que ele era. Era cheiro de sangue, suor e cabelo queimado. Um odor repulsivo, pungente, que faria seu estômago se revirar, se não estivesse sentindo dor demais para isso.


            Mas o que realmente fez com que ela voltasse a atenção para o lugar certo foi o som, uma cacofonia de gritos, ordens, rosnados e rugidos, que vinha de trás dela. Dolorosamente, Ravena se virou, apenas para se deparar com uma cena que não iria esquecer tão cedo:


            A cerca de uns vinte metros de distância, havia o que parecia ser um grupo de uma dúzia de fogueiras, feitas de chamas negras como a noite. A adolescente reconheceu as formas como sendo a dos soldados de seu pai, embora ainda não soubesse a razão de a cor deles ser diferente. Um deles voava e disparava bolas de fogo preto, contra um adversário que se movia rápido como um raio. Uma observação mais cuidadosa revelou que esse não era um mero servo de Trigon, mas Slade, e ele parecia estar em um estado lastimável: mesmo através das chamas negras que estavam envolvendo-o, era possível ver que sua armadura estava destruída, completamente despedaçada em vários pontos, e com enormes marcas de garras nos demais. A metade esquerda de sua máscara também se fora, revelando um tapa-olho e metade de um cavanhaque cinzento.


            Mas, se ela pouco se importava com o estado do criminoso de um olho só, o mesmo não podia ser dito a respeito daquele com quem ele estava lutando: Mutano, ou melhor, a Forma Bestial que assumira seu lugar, estava combatendo agora, com uma selvageria que ela mal e mal conseguia acreditar, quanto mais compreender. Um turbilhão de garras e dentes, que fazia em pedaços as chamas que se aproximavam.


            Infelizmente, apesar de todo o seu valor em combate, seu estado não parecia muito melhor que o de Slade: estava tão salpicado de sangue que mal era possível ver o pêlo verde, e seu couro tinha marcas de cortes e queimaduras em diversos pontos. Uma das patas estava torcida em um ângulo estranho, talvez quebrada.


            Atônita, Ravena nada pôde fazer, a não ser assistir aos dois adversários se digladiando. Por incrível que pareça, ela pensava estar reconhecendo uma espécie de padrão naquela luta. As chamas negras avançavam para cima da Fera, apenas para serem destruídas uma a uma, enquanto o vilão disparava suas rajadas a partir do ar. Não parecia ter qualquer escrúpulo em atingir os próprios servos, pois, para cada chama negra que se extinguia, outra emergia do chão para tomar seu lugar. De tempos em tempos, Mutano... quer dizer, a Fera, conseguia arremessar algum destroço do chão contra seu inimigo, ou saltar para atacá-lo diretamente. Os projéteis eram sempre defletidos por escudos místicos, mas os golpes com as garras quase sempre conseguiam despedaçar tais proteções, fazendo o sangue do vilão espalhar-se pela sala. Infelizmente, porém, parecia ser nesse momento que Slade conseguia acertar seu adversário com uma rajada, ou que um bando de seus soldados conseguia se jogar sobre ele. Os segundos de que necessitava, para se recuperar ou se livrar das chamas negras, era normalmente o tempo que o vilão mascarado usava para se curar. E então o ciclo recomeçava.


            A jovem não saberia dizer por quanto tempo essa batalha continuou, mas em um determinado momento, tudo mudou: Slade parara de atirar, concentrando energia para um ataque maior que todos os outros, mas nesse interregno, a Fera já tinha despachado as presas menos importantes, e saltara para atacar. Desta vez, diferente das demais, o salto atingiu seu alvo em cheio: as garras de ambas as mãos se enterraram até o fundo no peito exposto dele, e suas presas chegaram a milímetros de seu rosto.


            Exatamente no momento em que ele disparou. O fogo negro queimou todo o pêlo da criatura, e seu couro se encheu de queimaduras de terceiro e segundo grau. Além disso, o impacto a jogou longe, com força o bastante para quebrar uma das colunas que sustentava o complexo, afundar na parede a vários metros de distância, e depois cair no chão, inerte.


            Mas a Fera tinha cobrado seu preço: em nenhum instante relaxara seu aperto sobre sua presa, e as garras que tinha cravado no peito dele tinham-se enganchado nas costelas. A caixa toráxica dele se partiu de dentro para fora, quando a rajada de chamas arremessou a criatura para longe.


            Ravena já tinha tido pesadelos horríveis antes. Mas nunca, NUNCA, fora forçada a presenciar uma cena tão dantesca. Slade, com o peito estraçalhado, cuspia sangue e sua respiração vinha por espasmos. E Mutano, ou o que quer que ele fosse agora, mal era capaz de se mexer, mas, ainda assim, estava, de alguma forma, tentando se levantar. Ela não precisava de seus poderes, para perceber a agonia indescritível pela qual ambos estavam passando, e mais: naquele momento, Ravena odiou a si mesma por isso, mas viu-se desejando que seu namorado tivesse morrido. Assim, pelo menos, ele não estaria mais sofrendo dessa maneira.


            Mas o horror, infelizmente, ainda estava por terminar. De alguma forma, o Coração de Scath na mão de Slade começou a brilhar com luz azul, e suas costelas fizeram um som repulsivo ao serem forçadas de volta ao lugar e se regenerarem. Ele começou a levantar, de forma incerta e hesitante, sua linguagem corporal revelando uma dor ainda grande demais para ser suportada. E, após o que pareceu ser uma eternidade, conseguiu se firmar sobre ambos os pés, e recomeçou a concentrar a energia contida na pedra.


            Isto acabaria aqui e agora.


            E a Fera não tinha feito por menos. De algum modo, de alguma forma, fora capaz de, rosnando, ganindo e grunhindo, se colocar sobre as quatro patas. Estava terrivelmente ferida, mas, ainda assim, não parecia estar nem um pouco amedrontada: na verdade, com um rugido final, começou a correr na direção de sua presa.


            Isto acabaria aqui e agora.


            Foi nesse instante que Ravena agiu. Compreendera que ambos os lutadores iriam se destruir mutuamente, e, embora não desse a mínima para o destino de seu inimigo, jamais aceitaria deixar seu namorado correr esse risco. Portanto, ela ignorou a dor, ignorou os membros contundidos, e ignorou o cansaço, para correr e tirar a pedra das mãos de Slade, mesmo que isso significasse ficar entre ele e a Fera.


            De uma forma ou de outra, isso acabaria aqui e agora.


- O quê? – Surpreendeu-se o vilão mascarado, ao sentir a energia que tinha acumulado se dissipar, bom como o controle sobre o artefato diminuir de repente. Olhando mais para baixo, viu que a adolescente que a coisa estivera protegendo estava agora segurando o Coração de Scath junto com ele, tentando arrancá-lo de suas mãos.


- Você está de posse de algo que me pertence! – a voz de Ravena estava muito diferente, pois ela não conseguia mover o queixo fraturado de forma adequada, mas não perdera nada de seu desafio. – Ele é meu e o poder é meu! Devolva!


            Slade tentou puxar a pedra de volta, mas não conseguiu. As mãos de ambos estavam presas ao artefato, em cujo interior estavam aprisionadas energias capazes de reconhecer aquela que por direito era sua mestra, mas que também, em última instância, se curvariam apenas à vontade mais forte.


            Quanto a Mutano, diferente das outras vezes em que se transformara na Fera, estava mais ou menos consciente de tudo o que vinha acontecendo a seu redor. Desta vez, foi como se estivesse sentado no assento traseiro de um carro, sem controle, mas ainda capaz de ver. E, no momento em que percebera sua namorada se colocando entre ele e Slade, dera um jeito de saltar para o banco da frente, empurrar o motorista de lado e pisar fundo no freio. O resultado dessa disputa mental foi a Fera retornando ao normal em meio a um salto, e o metamorfo acabou caindo de cara no chão, menos de um metro atrás da empata.


            Ao ver isso, o criminoso de um olho só teve a certeza da vitória. Tinha sentido uma pontada de medo, ao ver os poderes de seu artefato falhar enquanto aquele ser monstruoso avançava, mas agora que a mascote inútil dos Titãs estava de volta ao normal, nada poderia detê-lo. A garota que se opunha a ele agora podia ser dona de uma vontade forte, mas não se comparava com a sua.


            A balança da batalha metal entre ambos começou a se desequilibrar, pois chamas negras começaram a envolver as mãos de Ravena, que ainda assim não soltou o artefato. Slade, então, teve uma idéia: um sorriso pôde ser visto na metade exposta de seu rosto, enquanto ele desferia um chute na garganta da empata.


            Não foi um chute de verdade, pois um golpe nesse local a teria matado de forma quase instantânea. Na verdade, ele encostou a sola do pé no pescoço dela, de uma forma que foi quase... gentil. E só então que, pouco a pouco, começou a fazer força. O que é que iria acontecer com a garota primeiro? Largaria a gema, ou morreria sufocada?


            Ravena estava sentindo a sua respiração ficar cada vez mais difícil, à medida que suas vias respiratórias iam sendo bloqueadas. Uma coisa, no entanto, era certa. Ela não iria recuar. Não iria ceder um centímetro sequer. Ela agora era o último obstáculo entre o vilão e sua vitória, e se precisasse morrer tentando impedi-lo, aceitaria esse destino com boa vontade.


            Enquanto isso, Mutano, caído no chão, tentava se levantar, sem sucesso. Toda a sua força parecia ter ido embora de uma vez só, e agora, sem o corpo poderoso de antes, sentia toda a extensão dos ferimentos que tinha recebido em combate. Ele estava prestes a perder a consciência e sabia disso. A única coisa que ainda o mantinha acordado era a preocupação para com a sua namorada, que agora estava lutando em seu lugar.


- Ravena. Ravena! RAVENAAA! – esse parecia ser o único pensamento que ainda tinha lugar na mente dele. Não tinha forças para se transformar em nada grande ou médio, mas sabia que precisava fazer alguma coisa. Qualquer coisa.


            Mas foi só quando ouviu um chiado, que vinha da garganta espremida de Ravena, é que o desespero se tornou maior do que os danos que seu corpo tinha sofrido. Um beija-flor verde zumbiu entre Slade e Ravena, e parou no ar um instante, como se estivesse avaliando a disputa entre os dois. O olho único do vilão acompanhou o vôo do pássaro, talvez se perguntando o que uma criatura tão pequena e frágil poderia fazer.


            Bem, ele teve sua resposta exatamente meio segundo depois, quando o metamorfo, usando seu bico como se fosse um dardo, atacou seu único ponto vulnerável. Um borrão verde foi a última visão que Slade Wilson teve.


- AAAAARRRGHHH!! – Agora cego, ele gritou de dor como nunca antes, levando as mãos ao rosto, para arrancar o metamorfo dali. Mutano foi jogado ao chão com força e, de volta à sua compleição original, ali ficou.


            E foi isso que selou sua derrota: Ravena, agora de posse do Coração de Scath e novamente com o comando sobre seus poderes, entoou seu mantra, liberando a maior rajada de energia que o artefato jamais liberaria. A potência do ataque abriu um canal com metros de diâmetro no chão, e propeliu o vilão através das duas colunas de sustentação ainda intactas, coisa que levou todo o galpão a desmoronar como se fosse um castelo de cartas.


 


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            Um silêncio sepulcral pairava sobre a pilha de aço e concreto que, até cinco minutos atrás, fora um grande galpão abandonado. Toda a estrutura viera abaixo quando seus centros de sustentação foram destruídos, e não havia nada que pudesse sobreviver debaixo de tudo aquilo.


            Ou pelo menos, era isso que um casal de adolescentes, do outro lado da rua, pensava. Ambos estavam com uma aparência horrível, e era claro que tinham sido brutalmente espancados, talvez até torturados.


- Rae... – Mutano estava caído de bruços no chão, e até falar parecia ser um esforço grande demais para ele. – Eu tô sentindo dor em lugares que eu nem sabia que tinha...


            A garota não respondeu. Seu rosto estava horrivelmente roxo e inchado, e ela tinha agravado essa condição momentos atrás, ao falar com o maxilar fraturado. Entretanto, ela encostou a pedra losangular que carregava na testa do rapaz verde, e em seguida, também encostou a testa nela.


            A gema preta emitiu uma forte aura azul, que envolveu ambos. Seus ferimentos se fecharam e se regeneraram, sem deixar para trás nenhuma lembrança de sua existência, salvo por uma leve dor residual.


- Melhor agora? – Perguntou a empata, seu rosto novamente o produto de sonhos que tanto cativava o metamorfo.


- Demais. – respondeu ele, abraçando sua namorada com força. – Ainda bem que você conseguiu nos tirar dali antes do teto cair.


            Os dois permaneceram juntos, abraçados, por um longo tempo. Tinham temido perder um ao outro para sempre, e agora que estavam novamente unidos, precisavam de um tempo a sós, sem se dar conta de nada além deles mesmos.


            Foi Ravena quem quebrou o silêncio:


- Você acha que Slade está morto? – Perguntou ela, apontando para as ruínas onde minutos atrás, eles o tinham enfrentado.


- Duvido. Vaso ruim não quebra. – respondeu o metamorfo. – Aposto que até o seu pai é capaz de devolver ele.


- Não acha que deveríamos procurá-lo? – Ravena inquiriu mais uma vez, mas não havia muita convicção em sua voz.


- Deixa quieto. – Mutano respondeu novamente. – Mesmo que tinha conseguido escapar, vai demorar um bom tempo até ele perturbar nossa paz novamente. Ele tem que tatear até achar o caminho de casa, primeiro.


            Essa resposta levou a empata a dar de ombros. Sabia que não era a coisa mais responsável a se fazer, mas, por outro lado, tanto ela quanto seu namorado estavam exaustos, com ou sem cura. Tentar localizar os restos de Slade nesse estado seria igualmente irresponsável.


- Vamos para casa, minha linda. – convidou o Titã mais jovem. – A gente bem que merece um descanso.


 


Notas do Autor


 


Uau! Treze mil oitocentas e tantas palavras! Eu DISSE que esse seria o capítulo mais longo, não disse?


Seguinte, pessoal, agora estamos na reta final. (eu sei, eu sei, já disse isso antes, mas desta vez, DESTA VEZ, é para valer). A próxima atualização será o epílogo da nossa história. Coloquem a fic em seu alert, para receber um e-mail quando o final for postado.


 


Paz, galera. Até breve (agora, garantia que é bom, necas, né?) :P


 


Que suas penas jamais descansem.


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