Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 12
Capítulo 12




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Teen Titans não me pertence, ou eu faria desta fic uma nova temporada. Talvez até duas.

 

 

            Estelar sentia que tinha algo muito importante escapando à sua atenção. Algo que ela sentia ser a chave para explicar porque sua amiga estava diferente. E a tamaraneana sentia que era algo óbvio. Algo que já deveria ter percebido há muito tempo. Ela lamentou que sua amiga nunca se abrisse mais do que o absolutamente necessário; talvez pudesse ajudar mais de soubesse um pouco mais sobre a empata. Elas podiam ser as melhores amigas, e até conversar bastante sobre uma variedade de assuntos, mas a princesa alienígena reconhecia que as tais “conversas” consistiam basicamente em ela falar e Ravena ouvir.

            Mas mesmo assim, depois de horas conversando com a empata, Estelar esperava ter reunido mais peças do quebra-cabeça. Ela já tinha inquirido a respeito de todos os outros eventos dos últimos dias, incluindo o momento em que a surpreendera recebendo cócegas (então eu não estava mesmo sonhando...), até a sessão de filmes, onde ela, ao invés de testemunhar o assassinato de Mutano, acabou vendo sua amiga com um gato verde deitado no colo. Era inacreditável ver como ela conseguia responder às suas perguntas sem realmente dizer nada que lhe esclarecesse a situação. No entanto, Estelar sabia que a empata estava escondendo algo. Algo eu deveria ser óbvio.

            A tamaraneana sabia que estava forçando os limites da boa-vontade de Ravena, que parecia estar mais impaciente a cada minuto. Mesmo assim, não iria parar. Sua amiga precisava de ajuda e iria ter, querendo ou não. De todas as coisas ditas (e principalmente não ditas), duas estavam incomodando Estelar mais do que as outras: primeiro, era a forma como a empata quase tinha batido no metamorfo no shopping. Segundo, era a maneira como ela se comportara ao lado dele no dia seguinte. Eles pareciam muito próximos naquela hora. Próximos demais.

            Procurando entender sua amiga, a princesa alienígena pensou no que poderia fazê-la ficar zangada com Mutano daquele jeito, mas não conseguia pensar em nada. Ambos eram bastante parecidos. Sempre alegres, felizes, vendo e aproveitando o melhor que a vida podia oferecer. Portanto, a mente de Estelar voltou-se para a única pessoa na Torre cuja personalidade era similar à de Ravena, ou seja, fechada, introspectiva, que precisava de ajuda para revelar mais de si mesmo: Robin.

- O que poderia fazer meu Robin se zangar comigo da mesma forma que amiga Ravena se zangou com amigo Mutano? – Perguntou-se mentalmente a tamaraneana.

            A primeira coisa que veio à sua mente foi “Slade”. Mas sabia que não era essa a resposta correta. Sempre que se encontrava sob os efeitos de sua obsessão pelo criminoso de um olho só, o menino-prodígio ficava hostil a tudo e todos, descontando sua frustração naqueles que estavam próximos. Não era um sentimento dirigido a ela, disso Estelar tinha certeza. A única vez que ela tinha visto-o inquieto, nervoso e impaciente COM ELA, fora há bastante tempo atrás, quando o trono de Tamaran fora usurpado e por pouco a ela não acabara entregue em matrimônio a uma criatura asquerosa, vinda do outro lado da galáxia. Ela guardava bem na memória a forma como Robin tinha se comportado naqueles dias. Ele provavelmente nunca iria admitir, mas tinha ficado louco de ciúmes. Ciúmes...

- Xh’al!! – Exclamou a tamaraneana, surpresa. – Será que...?

            Ela finalmente tinha encontrado a resposta para o enigma. Finalmente tinha descoberto uma explicação para a mudança de comportamento de sua amiga. E era tão simples! Era óbvio! Estelar mal podia acreditar que tinha demorado tanto para perceber isso.

            Sem perder mais um segundo, voou direto para o topo da Torre. Ravena tinha terminado a conversa entre as duas algum tempo antes, dizendo que não podia mais adiar sua meditação, e que a faria no teto, durante o crepúsculo.

- Amiga Ravena! Amiga Ravena! Descobri! Descobri! – Chamou a tamaraneana, gritando a plenos pulmões.

            A empata não pôde conter um grunhido de irritação ao ter sua meditação interrompida pela segunda vez naquele dia. Definitivamente, sua paciência estava sendo submetida a uma dura prova.

- O que é desta vez, Estelar? – Perguntou Ravena, cansada, enquanto se virava para encarar sua amiga, que só não estava dando pulinhos de alegria porque já estava flutuando.

- Amiga, finalmente entendi porque você quase bateu em nosso amigo Mutano anteontem! – Exclamou Estelar, que parecia tão contente que até incomodava.

            A empata revirou os olhos, frustrada. Sua amiga já tinha levantado esse assunto pelo menos cinco vezes hoje, e pelo menos cinco vezes recebeu a resposta. Se fosse um dos rapazes a incomodando desse jeito, ele há muito já teria aprendido uma dura lição sobre como não meter o nariz onde não é chamado. Mas esta era Estelar. Sua melhor amiga. E aquilo que tinha de mais próximo de uma irmã.

- Então me diga. – respondeu ela sarcasticamente. – Mal posso esperar para saber.

- Amiga, está claro como a luz do dia! – Estelar declarou, quase histérica. – Você estava com ciúmes!

            Ravena não saberia dizer se foi a visão de sua amiga dando voltas em torno dela, feliz da vida, se foi o absurdo que ela disse, ou se foi uma combinação dos dois, que a fez reagir da maneira como reagiu. Nada de seu habitual olhar de irritação. Nada de meramente perguntar de onde tinha saído essa idéia. Nada de dizer a Estelar que ela estava enganada. Ravena não pôde fazer nada disso.

            Porque sua mão se moveu com uma velocidade que ela nem sabia que tinha. Antes mesmo que a tamaraneana conseguisse fechar a boca, teve a mesma tapada de modo a impedir qualquer som de sair dali. A empata ainda carregou sua amiga embaixo do braço como quem carrega um rolo de jornal, verificando cada canto do telhado, quase em pânico.

            Somente após trancar a porta que ligava o telhado ao interior da Torre é que Ravena colocou sua surpresa amiga no chão. Tinha verificado tudo e sabia agora que não tinha ninguém ouvindo.

- Estelar. – sibilou a empata. – Que brincadeira de mau gosto é essa?

- Brincadeira? – a pergunta tinha confundido a tamaraneana. – O assunto que me trouxe novamente até você é de suma importância, amiga. Até mais do que antes.

            Ravena viu, pela expressão de sua amiga, que ela realmente estava falando sério. Mas, mesmo assim, estava começando a ficar com raiva dela. A “conversa de meninas” (aquele interrogatório!) já tinha sido ruim, mas fazer palpites desse calibre já era passar dos limites.

- Estelar. – repetiu a empata, falando bem devagar. – Isso incomoda. Não sei o que...

- Claro que incomoda, amiga Ravena! – interrompeu Estelar. – É uma sensação mais que desagradável, correr o risco de perder seu amado para uma outra pessoa qualquer. Eu sei como é isso. – E, após uma breve pausa. – Você deve gostar muito de nosso amigo Mutano.

            Ravena não conseguiu fazer nada, a não ser ficar abrindo e fechando a boca. Queria responder, mas a voz não vinha. A capacidade de sua amiga de saltar para essas conclusões a tinha deixado completamente sem reação. Essa última declaração parecia ainda mais absurda do que a anterior. E, pela segunda vez naquele dia, a empata teve que lembrar a si mesma que Estelar não era burra nem louca. Além disso, ela mesma, por alguma razão, tinha tido uma estranha sensação ao ouvir essas palavras, como se tivesse deixado um segredo escapar.

            Ao ver a cara que sua amiga fez, Estelar não teve mais dúvidas quanto ao que deveria fazer. Agarrou-a pela mão e a arrastou até seu quarto, onde pretendia ministrar as explicações necessárias.

            A empata, ainda atordoada, só se deu conta de onde estava ao se ver dentro de um quarto cor-de-rosa. Tinha rosa para todos os lados. A cama ali dentro era rosa. Os lençóis e travesseiros eram rosa. A penteadeira era rosa. O berço onde Silkie estava dormindo era rosa. Em nome de Azar, até mesmo ela estava se sentindo rosa.

            Não teve, no entanto, tempo para refletir sobre isso, pois, em instantes, se viu numa cadeira escolar, ao passo que Estelar estava com um jaleco branco de professora e óculos, apontando uma vara para algumas figuras desenhadas num quadro branco. Eram versões em estilo “chibi” dela mesma, Mutano e algumas figuras genéricas que deviam representar outras pessoas.

- Amiga Ravena, quando você gosta de alguém. – disse Estelar, com a vara encostada num desenho de Ravena e Mutano de mãos dadas, ambos parecendo envergonhados de olhar diretamente um para o outro, com coraçõezinhos em cima de suas cabeças. – É normal experimentar o sentimento de ciúme. – agora a vara estava sobre outro desenho, no qual uma figura genérica estava sendo eletrocutada por um raio preto lançado por uma Ravena zangada. Ambas estavam numa espécie de ringue, ao passo que, amarrado numa cadeira (com uma placa onde se lia “primeiro prêmio”), estava Mutano.

- É minha crença que você se zangou com ele. – continuou a tamaraneana, apontando para uma figura onde Ravena, com uma cabeça gigante e zangada, com dois pares de olhos vermelhos e dentes afiados, parecia gritar (ou prestes a devorar) com um Mutano muito menor, meio entortado para trás, como se estivesse prestes a ser levado pelo vento. – Porque não queria que ele pensasse que podia... qual é mesmo a palavra em seu idioma? Ah, sim, se afastar. – Concluiu Estelar, apontando agora uma quarta figura, onde Mutano parecia marchar, carregando uma trouxa de roupa na vara como se fosse um fuzil, e logo atrás dele, tinha uma Ravena olhando para baixo, triste, sob uma nuvenzinha preta que chovia só na cabeça dela.

            A empata ainda não estava completamente certa do que tinha acabado de ouvir. Realmente, Estelar parecia pensar que a vida é um grande conto de fadas ou coisa parecida. Só assim mesmo para poder sequer cogitar essa hipótese. Ravena gostando de Mutano? Seria mais fácil a gosma de Plasmus virar perfume...

- Essa idéia de eu gostar daquele moleque imaturo, verde e irritante só não me revolta porque... porque... eu... bem... – O pensamento morreu antes mesmo de terminar de se formar dentro da cabeça de Ravena.

            Estelar, entre uma risadinha e outra, estava observando sua amiga, que estava com uma expressão indecifrável, olhando para o vazio como quem procura uma grande resposta ali. E decidiu que era a hora de desferir o golpe de misericórdia.

- Amiga Raveenaa... – Chamou a tamaraneana, quase cantando.

- O quê? – Respondeu a voz cansada e entediada da empata.

- Você não tem nada para me dizer não? – Perguntou Estelar, no mesmo tom de antes.

- Ah, que legal. – pensou Ravena, encarando os olhos verdes e fosforescentes de sua amiga. – Agora ela quer que eu confesse amor eterno e sem limites pelo coleguinha mais novo dela. Acho melhor explicar algumas coisinhas logo de uma vez. Acho que essas figurinhas fofinhas do quadro-branco talvez consigam entrar na cabeça dela...

            Com isso a peculiar cena no quarto da tamaraneana se inverteu. Agora era ela que estava sentada num assento escolar, usando um chapéu cônico equipado com duas longas orelhas de papel, e era a empata quem estava de pé ao lado do quadro, trajando o jaleco branco e óculos, bem como um marcador laser para apontar as figuras (também em estilo chibi) ali gravadas.

- Estelar, eu NÃO gosto dele. Nós vivemos brigando. – disse Ravena, o ponto vermelho do marcador laser pousando sobre duas gravuras. Uma a retratava voando em perseguição a um coelho verde, disparando rajadas de energia negra. A outra mostrava um elefante verde (com um sorriso na ponta da tromba) sentado em cima dela. – As piadas dele são horríveis. – agora o marcador apontava uma figura onde Mutano parecia flutuar, batendo os braços como se fossem as asas de um beija-flor, com um enorme balão de fala sobre sua cabeça, cheio de figuras aleatórias. A seu lado, estava uma Ravena sentada, com a cara enfiada na mesa, fumaça preta saindo de sua cabeça, bem como um balão de pensamento no qual podia se ver a figura de uma tora sendo cortada por um serrote. – E eu não suporto ficar perto dele muito tempo. – Continuou a empata, mostrando uma figura onde estava representada a Torre Titã, com uma pequena explosão preta em uma janela. Dessa janela saía uma linha curva, com uma bolinha na ponta. Havia uma seta apontando para essa bolinha, e na base da seta, estava escrito “Mutano”.

- E é por isso que eu não posso ter tido “ciúme” ou coisa parecida. – concluiu Ravena. – Porque. Eu. Não. Gosto. Dele.

            Ao ouvir isso, Estelar levantou-se. Estava novamente com o jaleco, os óculos e a vara de apontar. Seu quarto agora se parecia com um auditório de debates acadêmicos.

- Você está enganada, minha amiga. Nada mais poderia explicar sua atitude dois dias atrás. – A tamaraneana contestou, apontando uma figura onde Ravena martelava o chão usando uma marreta com três vezes o seu tamanho. Embaixo de tal marreta, podia-se ver uma mãozinha verde. – E, por favor, não tente me convencer que as palavras dele eram ofensivas. Do contrário, veríamos esta cena quase todos os dias. – Concluiu Estelar, com a vara encostada em uma figura que retratava uma vassoura (com um brilho negro envolvendo-a) varrendo para um canto um Ciborgue desmontado.

            Ravena ficou sem saber como responder à tese de sua amiga. Na verdade, quando as duas conversaram antes, tal questionamento fora feito diversas vezes, e, em todos os casos, a empata tinha dado um jeito de não responder à pergunta. Mas agora era diferente: se não conseguisse convencer Estelar do contrário, ela provavelmente iria transmitir a “boa nova” para toda a Torre. Que Ravena gostava de Mutano. E a empata não tinha a mínima vontade de ver esse... boato passeando de boca em boca.

            Mas o que responder? Como explicar, de maneira convincente, a diferença no tratamento que ela dispensava a Mutano e Ciborgue, em reação a basicamente o mesmo comportamento por parte de ambos? Ravena nem sabia ao certo porque explodira com o metamorfo antes. É verdade que as palavras dele, naquele dia, foram mesmo rudes e insensíveis, e é verdade que ela não gostava de ouvir ninguém falando assim. Mas, por outro lado, apesar de um pouco incomodada, nunca se sentira ofendida antes. Não entendia porque, naquela hora, sentira tanta raiva e... medo. A empata só sabia que não deveria ter sentido nada disso.

            E o pior de tudo isso era Estelar falando com ela agora.  A tamaraneana tinha tanta convicção do que estava falando, que tornava difícil para a empata negar suas afirmações. Talvez fosse mesmo ciúme o que ela sentira. Talvez ela, quem sabe...

- NÃO! Eu não gosto dele! – Ravena gritou mentalmente. – Não gosto, não gosto, não gosto!

- Raveenaa... – Estelar chamou sua amiga, no mesmo tom cantado de antes. A empata precisava responder, e responder já.

            Desesperada, virou o quadro-branco do avesso, e revirou as gavetas de uma escrivaninha (que não estava ali até um segundo atrás), espalhando papel para todos os lados. Após alguns segundos de busca frenética, encontrou uma folha, a qual foi prontamente colada no quadro-branco.

- Eu só estava tentando ser uma boa amiga, Estelar. – disse Ravena, dirigindo o marcador laser para o papel colado no quadro. Nele, estava um chibi Mutano, sentado no chão, de olhos fechados e linhas de lágrimas saindo deles. Havia também um coração rachado flutuando em cima de sua cabeça. – Ciborgue sabe se cuidar, mas Mutano ia acabar com o coração partido se começasse a se meter com um monte de ... fãs... que não iriam se importar com nada além da fama que ele tem. Gosto demais dele para me arriscar a vê-lo assim qualquer hora dessas.

            Antes mesmo de terminar a frase, a empata ouviu um som abafado à sua frente. Ali estava Estelar, com as duas mãos cobrindo a boca. Seus olhos brilhavam como estrelas, e, por debaixo de suas mãos, era possível ver um grande sorriso.

- Amiga Ravena. – disse ela momentos depois. – Você falou.

- Como? – A empata não imaginava o que sua amiga poderia ter em mente.

- Amiga. – A tamaraneana repetiu. – Você falou.

- Falei o quê? – Perguntou Ravena, irritada.

- Que gosta dele. Você disse!

- Estelar, que idéia é essa? Eu não... – Ravena tentou protestar, mas sua voz morreu no meio da sentença, pois se lembrou do que tinha dito momentos antes. – Eu... disse...?

            E tinha dito mesmo. “Gosto demais dele para me arriscar a vê-lo assim qualquer hora dessas”. Essas foram as palavras que tinha usado. Claro que as tinha empregado num contexto totalmente diferente. Claro que qualquer outra pessoa entenderia que ela gostava dele só como amigo.

            Pena que Estelar não era qualquer outra pessoa, não é mesmo?

            Ravena observou sua amiga superagitada vasculhando todos os guarda-roupas de seu quarto, em uma velocidade impossível. Provavelmente estava procurando algum vestido para forçá-la a usar em algum tipo de comemoração tradicional tamaraneana. O que poderia ser dito ali para fazê-la aceitar o fato de que a empata NÃO estava apaixonada pela colega verde de ambas? Ela achou a resposta bem depressa. Nada. Não havia nada que pudesse convencer Estelar do contrário.

            Mesmo assim, Ravena continuou sua busca por algum argumento ou palavra, capaz de pelo menos instilar dúvida na tamaraneana. Os minutos se passavam e a única diferença que se podia notar naquele quarto eram as pilhas cada vez maiores de vestidos, que Estelar estava separando para sua amiga.

            As divagações da empata só foram interrompidas quando ela ouviu a porta do quarto se abrindo. Antes que Estelar pudesse sair, no entanto, foi impedida por Ravena, que não iria deixá-la à vontade por aí, espalhando a conversa eu acabaram de ter.

            Ela estava incomodada. Tinha muita coisa acontecendo, e ela não sabia o que fazer. Estava irritada; sua amiga não estava lhe dando um minuto de paz. Estava frustrada; os acontecimentos recentes, incluindo a conversa de agora, a estavam fazendo desejar algo que ela não podia ter, de jeito nenhum, para sua própria segurança e a dos demais. Estava com inveja; o responsável por tudo isso não parecia nem um pouco incomodado com toda essa situação, ao contrário dela. Mas, acima de tudo, estava triste. Em grande parte, por causa daquilo que ela se sentia forçada a dizer agora.

- Estelar. – disse Ravena, segurando o braço da princesa alienígena. – Mesmo que eu gostasse dele (e eu não estou dizendo que gosto), não aconteceria aquilo que você está pensando. Não há possibilidade de existir um... romance... entre nós. Porque... eu não sou o tipo de pessoa que ele possa querer.

            A forma como a empata falou faz com que Estelar parasse na hora. Ela definitivamente não parecia bem. Na verdade, a tamaraneana nunca a tinha visto assim antes. Sabia apenas que agora, sua amiga precisava de seu apoio. Mais do que nunca.

            Tinha sido difícil para Ravena dizer tudo isso. Muito mais do que imaginara possível. Era quase... doloroso. Mas, mesmo assim, ela não parou de falar. Estava, pela primeira vez em muito tempo, se abrindo: deixando a garota parada a seu lado finalmente saber o que ela pensava e sentia.

- Nós dois somos diferentes demais. Ele adora agitação, ruído, ar livre e diversão. Ao passo que eu prefiro o silêncio do meu quarto, e ler quieta. Não conseguimos ficar perto um do outro sem acabar brigando. E, além disso...

            A empata fez uma pausa, como se estivesse reunindo forças para continuar. Estelar permaneceu imóvel, aguardando as próximas palavras dela.

- Ele preferiria uma garota diferente. Uma garota bonita, que goste de diversão como ele. Alguém como... Terra. – Ravena falou o nome da geomante como se fosse veneno. Pelo visto, ainda não tinha perdoado sua traição. – Mutano não iria suportar uma... namorada... que não fosse sair com ele para o parque de diversões, que não conseguisse ser agradável. Que não pudesse demonstrar sentimento. Alguém que nem ao menos seja... bonitinha ou coisa assim. – Completou ela, a voz mais amarga do que nunca.

            Um longo silêncio se seguiu a isso. Estelar observou sua amiga, que estava sentada, com a cabeça baixa, esfregando uma mão na outra como se não soubesse o que fazer com elas. A tamaraneana pôde sentir claramente a angústia na voz da empata. E, finalmente, conseguiu entender o que havia de errado com ela.

- Você realmente gosta dele, não é? – A princesa alienígena perguntou, mas, na verdade, parecia mais estar constatando um fato.

- Estelar, eu já disse que n... – Mas a empata foi interrompida antes mesmo de terminar a primeira frase.

- Amiga Ravena. – o tom de voz da tamaraneana era doce e carinhoso. – Acha mesmo que seria capaz de falar tudo isso se não gostasse dele? Acha mesmo que seria capaz de colocar o coração diante de nós duas assim, sem ter uma razão para isso? Sem ter a maior de todas as razões? Você falou, minha amiga. Mas sabe o que você disse?

- Eu... – O olhar de Ravena continuava apontado para baixo.

- Você disse, minha amiga, que já entregou seu coração a ele. E que quer que ele lhe entregue o dele. Mas também disse que tem medo. Medo de que ele não te aceite. Ou que ele se arrependa ou te machuque depois. – Falou Estelar, agora segurando as mãos da amiga nas suas. – Eu tenho algo a te dizer, amiga Ravena. Você não precisa ter medo.

            A empata não queria concordar com nenhuma dessas palavras. Nenhuma. Mas não era capaz de contra-argumentar. Pensava e pensava, mas não conseguia encontrar nada que contradissesse sua amiga. E, realmente, em pelo menos uma coisa Estelar tinha razão: por mais que fosse proibido, por mais que ela tivesse aceitado o fato de que jamais seria amada, ela desejava ser. Do fundo do coração.

            Ela se lembrou da tarde do dia anterior. Lembrou-se de como se sentira inundada por uma torrente de sentimentos diferentes, a maior parte dos quais ela ainda não era capaz de dizer se eram seus ou dele. Mas sabia que, entre a miríade de emoções presentes naquele momento, estavam afeição. Carinho. Desejo. E, quando Mutano chamara seu nome, ela, ainda que por um momento, se sentiu amada. Verdadeiramente amada.

- Ele não gosta de mim. – Falou Ravena de forma abrupta. Tinha se lembrado de que ele desistira dela no último momento.

- Você está enganada, minha amiga. – Estelar respondeu instantaneamente.

- Infelizmente, eu não estou. - Retrucou a empata, sem perceber o que tinha acabado de dizer. Estava tentada a contar para sua amiga o que realmente acontecera em seu quarto, após ser surpreendida à mercê da pena do metamorfo. E estava também surpresa com a força da tentação. Mas a verdade. No entanto, é que não estava pronta para contar isso a outra pessoa. Ela mesma ainda não tinha assimilado bem os acontecimentos daquela tarde.

- Amiga Ravena. – disse Estelar, com uma seriedade anormal para ela. Parecia até formal. – Amigo Mutano gosta de você. Mais do que você pensa. Talvez mais do que ele mesmo perceba.

            Foi preciso um grande esforço de vontade para que Ravena conseguisse permanecer imóvel. Ela não queria alimentar uma esperança que sabia ser infundada. Sabia que sua amiga estava, como sempre, romantizando tudo o que estava ouvindo. No entanto, nem todo seu autocontrole pôde impedi-la de perguntar:

- Por que você acha isso? – Indagou a empata, incapaz de conter a vontade de saber a resposta para essa pergunta.

- Responda-me, amiga Ravena. Qual é o comportamento do amigo Mutano para com você? – Estelar perguntou de volta, ainda séria.

- Você sabe muito bem. Todos aqui sabem. – Ravena não entendeu bem por que a tamaraneana perguntaria uma coisa dessas. – Ele me irrita, me incomoda, perturba minha paz, faz barulho, conta aquelas piadas estúpidas, não me deixa sozinha, tenta me convencer a participar de atividades que não quero, se comporta como criança, discute com Ciborgue por besteiras, reclama nos treinos...

- Eu não perguntei o que você pensa a respeito das atividades diárias dele. – Estelar interrompeu o resmungo de sua amiga (que de outra forma teria durado muito, mas muito mais). Era perturbador ver a princesa alienígena dessa forma, inflexível, olhando para Ravena como quem está prestes a proferir uma sentença. – E sim qual é o comportamento dele para COM VOCÊ.

            A empata hesitou um instante, sem saber o que pensar de sua amiga neste momento. Mas, após alguns segundos de silêncio, falou:

- Ele me conta piadas, tenta me fazer rir. Ele tenta fazer com que eu passe mais tempo junto com o resto do grupo. Ele tenta fazer com que eu me divirta. Não me deixa sozinha. Uma vez... ele... disse que queria me ver feliz.

- Agora me diga: Isto é uma coisa ruim? – Questionou a tamaraneana.

            Ravena bem que tentou dizer que sim. Que isso poderia fazê-la perder o controle de seus poderes. Que seria perigoso se arriscar a sentir qualquer coisa que fosse. Que desse jeito acabaria ferindo aqueles que estivessem próximos. Mas a única palavra que saiu de sua boca foi:

- Não... – A empata respondeu baixinho.

- Então ele trata você bem. – Disse Estelar.

- Acho que sim. – retrucou Ravena. – Mas o que isso tem a ver com esta conversa?

- E você, amiga Ravena? – perguntou a tamaraneana, ignorando o que sua amiga tinha acabado de dizer. – Você trata bem o nosso amigo Mutano?

            A resposta para essa pergunta era fácil de encontrar. Mas a empata não achou nada fácil dar essa resposta para sua amiga. Pensar nisso a fez sentir-se... horrível.

- Não. – Ravena respondeu secamente.

            E, realmente, ela não tratava o metamorfo bem. Uma pessoa estranha ao dia-a-dia da Torre Titã provavelmente usaria as palavras “intolerância”, “sarcasmo”, “insultos”, e “violência” para definir o tratamento que ela dispensava a seu amigo verde. E, lamentavelmente, não estaria muito longe da verdade. Claro, Mutano costumava ser irritante, barulhento e obtuso. Podia ser enxerido e teimoso. Mas todas as suas ações para com ela eram gestos de amizade e carinho. Todas. Ele merecia as broncas que levava? Quase sempre. Merecia o sarcasmo com que era tratado? Só de vez em quando. Merecia os insultos e os tabefes? Quase nunca. E, merecia ele quando Ravena o maltratava por uma coisa que nada tinha a ver com ela? Definitivamente não.

            A empata já tinha perdido a conta de quantas vezes tinha ficado olhando para o chão hoje, sem saber o que dizer. Se Estelar estava tentando fazê-la se sentir mal consigo mesma, então estava fazendo um ótimo trabalho.

            E a tamaraneana, que até aquele instante mantivera no rosto uma expressão dura e firme, voltou à sua face de felicidade habitual, liberando as risadinhas de costume.

- Então, amiga Ravena, responda-me. Se você não o trata bem, por que, mesmo depois de todo o tempo que estamos juntos, ele jamais desistiu de, como você disse há pouco, “perturbar sua paz”?

            Essa pergunta atingiu Ravena como um soco. O que ela disse não era novidade, Mutano nunca (salvo por cerca de um mês e meio, não muito tempo atrás) desistiu de tentar animá-la, mesmo com todas as ameaças e castigos. A empata tinha acalentado o desejo que ele desistisse por anos, mas, recentemente, descobriu que não mais queria isso. A novidade aqui, estava na lógica que sua amiga tinha aplicado a esse fato.

- Ele gosta de você, minha amiga. – Estelar não conseguiu esperar pela resposta da empata. – Se não fosse assim, o ressentimento iria crescer até se tornar insuportável. E, quando isso acontecesse, ele simplesmente se afastaria. Lembra do que aconteceu no ano passado? Quando do nosso retorno triunfante, após derrotar a Irmandade Negra?

            Mais uma vez, Ravena permaneceu em silêncio. Ainda estava atordoada com o que sua amiga estava dizendo. E também com o quanto estava gostando disso.

- Quando aquela menina que ele encontrou negou ser Terra, e expressou um desejo de que ele não a procurasse mais, ele aceitou. Deixou-a. No passado. Mas não você, amiga. Ele suportou protestos bem mais... veementes de sua parte, e nunca, jamais, sequer vacilou em sua determinação de lhe dar atenção. Amiga Ravena, eu não tenho dúvidas. O sentimento que ele nutre por você... é poderoso. – Concluiu Estelar.

            A empata não conseguia encontrar uma falha na lógica da princesa alienígena. Realmente, não parecia possível que alguém pudesse agüentar todos aqueles anos sem uma razão muito forte para isso. Se Mutano quisesse, há muito poderia ter voltado para a Patrulha do Destino, e eles o aceitariam de braços abertos. Ou simplesmente poderia ter passado a ignorá-la. Mas ele não fizera isso. Muito pelo contrário. E a tarde do dia anterior estava aí para provar. Uma tarde que, agora, ela sabia ter um significado.

- Mas por que ele nunca falou nada antes? Ou fez? – esta dúvida alcançou a voz de Ravena antes dela mesma.

- Talvez ele não tenha tomado consciência do que sente ainda. – respondeu estelar. – Sabemos que ele pode ser bem... distraído de vez em quando.

            Mais uma vez, a tamaraneana tinha dado uma resposta que fazia sentido. Ravena não queria dar razão a ela, mas como contra-argumentar? E, além do mais, a verdade é que ela não sentia mais vontade de provar que sua amiga estivesse errada.

            Porque estava gostando muito do que estava ouvindo. Especialmente, porque, agora, tudo parecia ser verdade. Agora, ela entendia o que era aquela emoção, aquela que se sobrepusera às demais, quando os dois estiveram juntos na tarde anterior. Mais do que entender, ela agora acreditava no que tinha sentido naquele momento. E isso era bom, muito bom. Melhor do que quando... a empata nem sabia dizer quando foi a última vez que se sentira mais contente. Podia perceber que sua amiga estava falando alguma coisa (provavelmente sobre flores, borboletas, felicidade eterna e tudo o mais), mas não estava prestando atenção. Sua jovem mente estava se ocupando com assuntos bem mais relevantes:

            Alguém gostava dela; não se importava com o quê ela era.

            Alguém gostava dela; não se incomodava com sua incapacidade de mostrar sentimento.

            Alguém gostava dela; era corajoso o bastante para não temer o perigo que seus poderes representavam.

- Essa não. – pensou Ravena de repente. Acabara de lembrar de uma coisa terrível. Seus poderes. – Santa Azar, eu odeio eles.

            E como odiava. Aqueles poderes eram uma maldição. Elas a proibiam de fazer tudo, até sentir. Ser filha de Trigon já era ruim o bastante, mas esses poderes eram ainda piores. E agora, mais do que nunca.

            Alguém gostava dela, e não havia outra escolha a não ser rechaçá-lo.


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