Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 11
Capítulo 11




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Teen Titans não me pertence, ou estaria no ar até hoje.

 

 

- Terminei. – disse Mutano, fechando um livro pequeno e fino. - Finalmente! – Ele pensou enquanto largava o volume.

- Então leia mais uma vez. – Respondeu o Sr. Smith, sem tirar os olhos do livro que ele próprio estava lendo.

- O QUÊ!!! Mas você já me mandou ler esse livrinho quatro vezes hoje! – Revoltou-se o metamorfo.

- Mandei.

- Por quê?

- Porque tem uma lição muito importante escondida nesse livro, e você ainda não aprendeu. – Foi a explicação que o homem mais velho deu.

- Que lição? Esse livro é uma droga! O cara não explica nada! – Mutano não tinha aceitado as palavras do Sr. Smith. – Tudo o que este livro diz é que “isto é aquilo, treine até entender esse conceito”. Não dá para fazer nada com essa porcaria! A única lição que presta aqui é que “sua espada deve sempre tentar cortar o adversário”. E isso é coisa eu se precise ensinar? O que os samurais faziam naquele tempo? Usavam a espada para passar manteiga no pão?

- Ora. – O Sr. Smith falou com toda a calma. – Myamoto Musashi foi o maior samurai de todos os tempos. Você questiona sua sabedoria? – e, após uma breve pausa. – Não foi você que saiu dando pulinhos, gritando para meia biblioteca que ia aprender a ser um samurai?

            Ao ver o velho olhando para ele, com aquele sorriso esquisito de sempre, Mutano se sentiu envergonhado de ter perdido a calma e levantado a voz. Mas não ia dar razão a ele. Sabia que estava certo e ia provar isso.

- Talvez ele tenha mesmo sido o maior de todos. – falou o metamorfo. – Mas era um péssimo professor. E um péssimo escritor também. O livro dele é horrível, e não ensina nada.

            O Sr. Smith nada disse, meramente continuou olhando para o rosto de seu jovem amigo. Era a sua maneira de dizer “continue”.

- Se este livro não ensina, então não serve para nada. É lixo. Talvez naquela época, séculos atrás, esses “conceitos”, estes “caminhos”, como ele diz, fizessem sentido, mas hoje, não. Para nós, este livro não serve de nada. – disse o metamorfo, que também comentou entre dentes. – E sinceramente, acho que nem naquela época serviu para alguma coisa.

            O Sr. Smith balançou a cabeça, concordando.

- Muito bem, jovem. Mas me diga uma coisa: Você disse que tinha uma única lição que prestava. Que a “espada deve sempre tentar cortar o adversário”. Só que você também falou que isso era óbvio. Por é que a lição presta, já que ela é óbvia para qualquer um?

            Mutano parou um instante para pensar. Aquele homem sentado à sua frente nunca, mas nunca fazia perguntas fáceis.

- Hmmmm... acho que é por causa desses movimentos que a gente vê nos filmes de artes marciais. – ponderou o garoto verde. – Tem muitos golpes que são, nossa, demais da conta, mas não atingem o inimigo. Tipo, é bonito de se ver, mas não serve para nada. Acho que o livro quer dizer que mais vale dar uma porrada que realmente derrube o bandido do que ficar fazendo firula.

- Muito bem. Você aprendeu a lição que eu tinha mencionado. – Declarou o velho, sorrindo.

- Aprendi? – Mutano estava confuso. Sabia que ele não estava se referindo à resposta que acabara de dar.

- Aprendeu sim, mas está tudo no seu inconsciente. Transforme em palavras.

- Hein? – perguntou o metamorfo. – Transformar em palavras?

- Isso mesmo. Senão você vai se esquecer dela.

- Mas eu... – Mutano tentou escapar, mas foi interrompido.

- Alto lá, jovem. O que foi que eu te falei antes sobre a preguiça de pensar?

            O garoto baixou as orelhas, resignado. Foi uma lição que recebera nos primeiros dias de leitura com o Sr. Smith, e ele nunca iria se esquecer dela. Em outras palavras, estava preso ali até resolver o enigma que o velho lhe propunha.

            Ia ser uma longa tarde.

 

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            Ravena teve sua meditação interrompida por batidas à sua porta.

- Amiga Ravena, seu eu, Estelar. Preciso conversar com você. – Dizia a tamaraneana, do outro lado da porta.

- Estelar, agora é uma hora ruim. Estou tentando meditar.

- Temo, amiga, que sua meditação vai precisar ser adiada. O assunto que me traz aqui é de suma importância.

            Essas palavras fizeram Ravena levantar-se e dirigir-se à porta. Estelar não insistia em conversar, a não ser que o assunto fosse realmente importante. Claro que importância é um conceito subjetivo, mas, mesmo assim, era melhor ouvir. “Suma importância”, no dicionário da princesa alienígena, significava “você-vai-me-ouvir-nem-que-eu-tenha-que-pôr-sua-porta-abaixo”. Literalmente.

- Entra. – disse a empata ao abrir a porta de seu quarto, dando espaço para a amiga entrar.

- Amiga Ravena, estou muito preocupada. – Disse Estelar assim que entrou.

- Com o quê? – Respondeu a empata.

- Com você, amiga.

            Essa resposta fez com que Ravena se perguntasse o que sua colega de equipe tinha em mente. Normalmente, ela preferia falar sobre passeios ao shopping, maquiagem, revistas femininas, etc.

- Como assim?

- Amiga Ravena, você não tem sido você mesma ultimamente. Tem se comportado de forma estranha, especialmente a partir do último passeio que todos tivemos juntos, dois dias atrás. – Declarou Estelar.

            A empata ficou rígida ao ouvir essas palavras. Agora tinha uma idéia das perguntas que viriam a seguir, e não gostava nem um pouco disso.

- Tem alguma coisa que você esteja escondendo de nós, amiga? – Insistiu a princesa alienígena.

- Estelar, eu realmente não sei do que você está falando... – Respondeu Ravena, fazendo-se de desentendida. Dessa forma, ela esperava fazer sua amiga explicar melhor a razão pela qual queria tanto essa conversa.

- Amiga, por várias semanas, antes de nossa última batalha contra a H.I.V.E., você esteve mais reclusa e mais calada do que o normal. Somente após a derrota de Chip, Mamute e Jinx é que você abandonou sua prisão auto-imposta.

- Estelar, eu sempre fui uma pessoa calada e reclusa. – Disse a empata.

- Mas nunca antes você se isolou por um mês e meio, amiga. – retrucou a tamaraneana. – E, nas poucas vezes em que você vinha comer, parecia muito incomodada com alguma coisa.

            Ravena sabia do que Estelar estava falando. Realmente, tinha sido uma época... difícil. Mas já estava superada. De fato, as preocupações da empata eram bem maiores agora.

- Na verdade, amiga, acho que você voltou para nós por causa daquela batalha. Eu admito que senti um pouco de inveja.

            Ravena ficou encarando sua amiga, que agora estava dando risadinhas. Ela teve que lembrar a si mesma de que a tamaraneana não era burra nem louca. Só seguia uma lógica... tortuosa. Mas, mesmo assim, esta última declaração parecia total insanidade.

- Claro, aposto que estar quase indefesa e à mercê de um maluco como Mamute é o sonho de qualquer um... – Disse a empata, com tanto sarcasmo na voz que até uma pessoa inocente como Estelar entenderia.

- Não amiga Ravena, não me refiro à luta em si, mas à parte em que você foi resgatada!

- Como? – Perguntou Ravena, confusa. Achava esquisito isso. Normalmente ela é que dava as explicações. Mas não hoje, pelo visto.

- O desafio do amigo Mutano contra os nossos adversários, logo após derrubar Mamute (Com um só golpe! Preciso me lembrar de perguntar a ele como foi que realizou tal façanha). – explicou a tamaraneana, sonhadora. – Robin nunca realizou um gesto similar por mim.

            Foi então que a empata entendeu o que sua amiga queria dizer. Lembrou-se daquele momento, cerca de dois meses atrás, em que a voz do metamorfo ecoou pela rua destruída onde todos estavam lutando. “Vocês vão ter que passar por cima de mim antes de encostar num só fio de cabelo da Ravena!”. Naquele dia, ela tinha se sentido embaraçada por ouvir uma coisa dessas na frente de todo mundo, mas agora, neste instante, era muito diferente. Ela não saberia dizer exatamente como, e nem porque, mas gostava dessas palavras.

            Mas é claro que não tinha a mínima intenção de revelar isso para sua curiosa amiga.

- Estelar, não tem nada demais naquilo que Mutano disse. – mentiu Ravena. – Só serviu para mostrar o quanto ele foi tolo em atrair a atenção de dois inimigos ao mesmo tempo, especialmente porque naquele dia ele mal podia se manter de pé.

- Mas você gostou do que ele disse, não gostou, amiga? – Pelo visto, nada ia diminuir o entusiasmo da princesa alienígena.

- Evidente que... Não!!! Lógico que não! – A forma como a empata falou isso foi suspeita, para dizer o mínimo.

            Nesse ponto, Estelar finalmente teve a certeza de que sua amiga estava escondendo algo. Ela não tinha planejado relembrar a última batalha contra a H.I.V.E., mas, ao ver a forma como a menina diante dela reagiu a essa lembrança, começou a ter um palpite. Não sabia bem o que poderia ser, mas sentia que, o que quer que fosse, tinha relação com o comportamento estranho de Ravena. Por isso, retomou a linha original da conversa que estava tendo com ela.

 

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            Mutano estava cansado. Cansado de ficar preso na sala de estudos. Cansado de ficar pensando naquela “lição escondida”, da qual ele não tinha a mínima idéia do que poderia ser. Já tinha pensado em várias coisas, mas nenhuma delas era a certa. Até porque nem se aplicavam àquele livro, mesmo. Mas o Sr. Smith não iria deixá-lo sair enquanto não recebesse a resposta que queria.

            Ele já tinha lido o livrinho mais três vezes, tentando encontrar alguma pista, alguma coisa que não tivesse visto das outras vezes. Alguma dica que o ajudasse a solucionar a charada a ele proposta. Mas não havia nada. O que até fazia um pouco de sentido. A “lição escondida”, de acordo com o velho sentado do outro lado da mesa, já estava em seu subconsciente, e precisava agora ser trazida para fora. Parecia loucura, mas Mutano já tinha aprendido que o Sr. Smith dificilmente falava algo sem ter um motivo para isso.

- Mesmo que ele esteja errado... – Pensou o metamorfo.

            Sim, ele não tinha dúvidas. Desta vez o idoso estava errado. Não tinha nada para se aprender neste livro. Estavam perdendo tempo ali à toa. Poderia muito bem estar jogando com Ciborgue. Pelo menos os games eram divertidos.

- Olha, vovô, não tem nenhuma lição escondida nessa porcaria de livro. – disse o garoto verde, colocando o pequeno volume sobre a mesa. – Nada mesmo. Não acho que quebrar a cabeça com essa droga possa nos levar a algum lugar.

- Por quê? – a pergunta do Sr.Smith soou em seguida. – Não sabe que Myamoto Musashi tinha a reputação de ser o maior samurai de todos os tempos? Eu já te falei isso antes, não falei?

- Nada a ver, cara. Reputação não tem nada a ver com este livrinho aqui. – respondeu Mutano, balançando o livro na mão. – E, por mais reputação que o Mia-sei-lá-quem tivesse, isso não fez o livro dele ficar melhor. Diz para mim: o que é que VOCÊ acha deste livro?

- Perguntei primeiro, jovem.

            Mutano suspirou, cansado. Era difícil debater com o homem à sua frente.

- Olha, Sr. Smith, reputação não conta. O que conta é o que a pessoa é de verdade. E também não importa se é uma lição do passado ou coisa assim. NÓS é que estamos vivos agora, ora bolas! Por isso, a gente ouve a história antiga, pega o que é importante, e o resto a gente deixa de lado! Aliás, não foi você que falou alguma coisa sobre aprender história para não repetir a história ou coisa assim? – Discursou o Titã verde.

            Clap, clap, clap.

            Mutano preparou-se mentalmente. Sabia que ia ter que agüentar o Sr. Smith discorrendo sobre cada um dos pontos que acabara de falar, explicando um por um e porque eles estariam errados.

            Clap, clap, clap.

            Demorou algum tempo até perceber que ninguém estava falando. Que era outro o som se propagando pela sala de estudos.

            Clap, clap, clap.

            O Sr. Smith estava batendo palmas de forma lenta, pausadamente. Batia palmas de uma forma acadêmica, por assim dizer. O Titã mais jovem nunca tinha visto isso antes, e, por essa razão, simplesmente ficou olhando para a cara dele, sem se mexer.

- Parabéns. – disse o velho. – Era isso o que eu queria ouvir. Um pouco tosco, é verdade, mas essencialmente correto.

- Mas... eu já sabia disso. Eu até falei isso antes. Não com essas palavras, mas falei. – espantou-se o metamorfo. De fato, ele tinha dito que o autor “podia ser o maior samurai de todos, mas era um péssimo escritor”, e também que “se o livro não ensina nada, é lixo”. – Por que me fez ficar aqui todo este tempo?

- Primeiro, porque você precisava transformar a lição em memória consciente, ou ia acabar esquecendo (Eu já disse isso antes, não disse?). – e então fez uma breve pausa, tempo o bastante para abrir aquele sorriso estranho de sempre. – Além disso, é divertido ver você se contorcendo como um peixe no anzol, pensando no que poderia ser a resposta.

- Ha. Há. Há. Muito engraçado. – Respondeu Mutano sarcasticamente.

- Mais do que imagina, rapaz. Mais do que imagina. – Disse satisfeito o Sr. Smith.

            Os dois ficaram se olhando alguns minutos, sem falar nada. Isso era incomum, pois só ficavam sem falar enquanto liam ou jogavam xadrez. Mas este silencio era diferente. Não era uma aura de concentração, mas uma tensão, prestes a ser quebrada pelo menor movimento.

- Sabe, garoto, você progrediu bastante. – disse o homem mais velho, pondo um fim ao silêncio. – Não achei que você fosse chegar à sua última lição tão rápido.

- Última lição? – O garoto verde não sabia o que pensar dessas palavras.

- Exato.

- Mas... por quê? – Perguntou Mutano.

- Porque já te ensinei tudo o que você precisava saber. Nunca estranhou o fato de a gente ter parado de ler poesia antiga meses atrás? – Inquiriu o Sr. Smith.

- Bem, fiquei aliviado de não precisar mais ler aquelas por... obras. Mas aí a gente embarcou em filosofias como a de hoje.

- Precisamente. Sabe o por quê?

- Não. - Respondeu Mutano, dizendo a mais absoluta verdade.

- Jovem, quando encontrei você naquele parque, você parecia uma criança perdida. Até sabia o que queria fazer, mas estava sem rumo. – falou o homem mais velho, solene. – Você cresceu muito desde então. E não estou falando da parte física.

            Ao ouvir isso, o metamorfo não foi mais capaz de se conter: levantou-se, colocou um pé sobre a cadeira, estufou o peito, e disse:

- Quando eu cheguei, era uma criança, e agora eu sou um homem, é?

- Claro que não! – Mutano murchou ao ouvir isso. – Agora você é um garoto que tem o necessário para um dia, quem sabe, poder chamar a si mesmo de homem.

            Na verdade, o Titã mais novo esperava mesmo que ele dissesse algo assim. O velho diante dele nunca o deixava inflar demais o ego. Sem-graça.

- Continuando, o que eu venho te ensinando aqui é mais do que poesia e cultura. Tentei passar algumas coisas que podem te ajudar na vida. Ajudar você a andar com as próprias pernas. Eu diria que você está pronto para iniciar sua jornada.

- Mas... – Mutano não estava gostando nem um pouco do rumo que aquela conversa estava tomando. - ... e se eu tiver dúvidas? E se eu cometer erros?

- Ora, garoto. – disse o Sr. Smith, ainda sorrindo. – Errar faz parte do crescimento. E a maneira como você vai reagir a isso, a maneira como você vai fazer para corrigir seus erros é que vão determinar que tipo de pessoa você é. Além do mais... – concluiu ele. – na hora que REALMENTE importa tomar a decisão certa, sempre se está sozinho.

            Ah, sim, O Titã verde sabia exatamente o que ele queria dizer. Mesmo assim, não pretendia se calar ainda.

- Mas e se eu precisar de você de novo? – Ele reclamou.

- Você vai andar com as próprias pernas, ora! Eu sempre disse que o dia de hoje chegaria.

            O metamorfo cruzou os braços, chateado. O velho costumava dizer que “estava pondo penas nas asas dele”, mesmo. E sentia que o que tinha que fazer agora era levantar a cabeça e seguir em frente.

- Como é que eu posso agradecer por tudo o que você fez por mim? – Perguntou o rapaz verde ao homem mais idoso, enquanto ambos se dirigiam para a saída da biblioteca.

- Isso é fácil. – retrucou o Sr. Smith. – Um dia, você vai ter a minha idade, e vai ver um garoto zanzando confuso por aí. Quando isso acontecer, ensine a ele o que eu te ensinei.

- Conhecimento é feito para se passar adiante, né?

- Você está aprendendo, Mutano. – Disse o Sr. Smith, estendendo a mão direita.

            Ao ver isso, o metamorfo repetiu o gesto, mas com a mão esquerda. Os dois ficaram algum tempo com as mãos esticadas, olhando um para a cara do outro, até que o idoso resolveu que precisava falar.

- Ei, jovem? Não está confundindo nada não?

- Não.

            Essa resposta lacônica despertou a curiosidade do Sr. Smith. Com sua mão esquerda, ele fez um gesto que Mutano aprendera a interpretar como “por quê?”.

- Em Lamunda Superior, onde passei parte da infância, - explicou Mutano. – quando um guerreiro vai apertar a mão do outro, ele o faz com a mão esquerda. Para isso, ele tem que largar o escudo, ficando indefeso. Dessa forma, demonstra ao outro que confia nele o bastante para deixar a própria vida em suas mãos.

            Esse breve discurso impressionou bastante o Sr. Smith. Pela primeira vez desde que se conheceram, ele ficou sem uma resposta para dar. Em vez de falar, esticou o próprio braço esquerdo, apertando a mão de seu jovem amigo, antes de se retirar.

            Mutano não sabia dizer o que estava sentindo naquele momento. Era assustador saber que ia ter que se virar sozinho, que não ia mais ter alguém para lhe dizer o que era melhor fazer. Mas, por outro lado, se sentia confiante. Respeitava o velho que se afastava, o bastante para dar valor às opiniões dele, e, se ele julgara que o metamorfo estava pronto para caminhar sozinho, então ele deveria estar mesmo.

            Então, sem dizer uma palavra, dirigiu-se para outra parte da cidade. As palavras de despedida do Sr. Smith tinham-no deixado com confiança o bastante para tomar uma decisão. Uma decisão que precisaria de preparativos. Muitos preparativos.

 

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            Ravena estava tendo uma tarde difícil.

            Primeiro, ela já começara o dia com um monte de coisas para preocupá-la. Segundo, porque Estelar tinha interrompido sua meditação para uma conversa. E terceiro, porque sua amiga queria saber de coisas para as quais ela mesma não tinha respostas, e, pelo visto, não iria deixá-la em paz enquanto não satisfizesse sua curiosidade. O que ainda parecia longe de acontecer.

- Mas amiga, por que foi que você ficou não nervosa com aquilo que amigo Mutano disse para Ciborgue, dois dias atrás? – perguntou Estelar.

- Uma coisa idiota como todas as outras que ele fala. – respondeu Ravena. – E não quero falar mais sobre esse assunto.

- Amiga Ravena, de acordo com suas próprias palavras, Mutano sempre está falando coisas idiotas. – pelo visto, Estelar ignorou completamente o pedido de privacidade feito pela empata. – E eu nuca te vi com raiva daquele jeito. Isto é, além da viagem a Tóquio.

            Ravena suspirou, revirando os olhos. Já nem sabia há quanto tempo estava suportando este interrogatório. A tamaraneana sabia ser persistente, e, apesar de encarar tudo com um olhar de inocência, era bem mais perspicaz do que parecia. Por isso, decidiu falar pelo menos uma parte da verdade, na esperança de satisfazer sua amiga e finalmente ser deixada em paz.

- Estelar, Mutano está sempre me incomodando, seja com suas piadas sem graça, seja com suas teorias insanas, ou com o barulho que ele sempre está fazendo. E eu reajo de acordo. – Explicou a empata.

- Não como anteontem. Não como anteontem, amiga. O que ele poderia ter dito ao amigo Ciborgue, capaz de te deixar tão brava? – Perguntou Estelar mais uma vez.

- Ainda tem dívida? – Ravena respondeu por impulso, sem prestar atenção no que estava falando. – Ele disse que estava fazendo aulas de dança para ficar no meio de um monte de “gatinhas”! Para “pegar” qualquer uma delas sempre que der vontade!

            A tamaraneana ficou sem saber o que dizer ao ouvir essas palavras. Especialmente por causa do desdém com que as palavras “gatinhas” e “pegar” foram ditas. Nunca tinha ouvido sua amiga falar dessa forma antes.

- Amiga Ravena, isso não faz sentido. Posso não entender muito dos costumes deste planeta, mas sei que a aquisição de jovens felinas não é de forma alguma ofensiva. Eu mesmo já vi diversas lojas no centro vendendo esses animaizinhos, e os clientes sempre pareciam estar encantados com isso.

            A empata suspirou ao ouvir Estelar. E fez uma nota mental de lhe comprar um dicionário de metáforas, gírias, e outras figuras de linguagem na primeira oportunidade. No entanto, como não podia sair ainda, explicou para sua amiga o que os meninos queriam dizer quando diziam que pretendiam “pegar gatinhas” por aí.

- Então é por isso que eu só ouço os garotos da Terra usando tais expressões. – Respondeu a princesa alienígena, ao ouvir a explicação de sua amiga.

- Entendeu agora, Estelar? O que ele disse é uma coisa insensível, rude e ofensiva! – concluiu a empata, falando um pouco mais alto que o normal. – Como é que eu podia deixar ele ficar falando de garotas desse jeito? Como se elas fossem objeto!

- Sim, acho que agora consigo ver a lógica por trás de seu comportamento anteontem, amiga Ravena. – concordou a tamaraneana, pensativa. – Mas ainda há um ponto que permanece obscuro: Já que tal forma de falar a incomoda tanto, por que você ainda não confrontou nosso amigo Ciborgue? Ele fala coisas assim todos os dias.

            Essa pergunta simplesmente deixou Ravena sem reação. Era algo no qual ela nunca tinha pensado. Realmente, Ciborgue se gabava de ser o maior pegador da cidade, e isso nunca a incomodara antes. Pelo menos, não mais do que outras atitudes infantis de seus colegas, como, por exemplo, o gosto de Robin por gel de cabelo. E ela lembrava que sentira vontade de dar um soco em Mutano, duas noites atrás, quando todos estavam no shopping. A empata só conseguiu ficar calada, de cabeça baixa e braços cruzados, sem saber o que responder para sua amiga.

- De qualquer forma, amiga. – Continuou Estelar, ao ver a empata lutando para achar palavras. – Não creio que você precise se preocupar com o risco do amigo Mutano transformar suas palavras em atos. Afinal, ele estava mentindo.

- SÉRIO?!? – Ravena praticamente gritou, levantando os olhos para a tamaraneana. Uma forte brisa soprou pela quarto, apesar de a porta e as janelas estarem fechadas. Mas logo retomou a fachada apática, ainda que tenha sido um pouco mais difícil que o normal. – Aham, por que você acha isso?

- É porque nosso amigo verde sempre faz isso quando está engajado em desafios contra Ciborgue. Por exemplo, ele sempre diz que vai atropelá-lo quando estão jogando seus jogos, e até hoje ele nunca tentou fazer tal coisa. Na verdade, amigo Mutano nem carro tem, então como poderia atropelar outra pessoa? Acredito que seja outro ritual social dos garotos da Terra...

            A explicação de Estelar fazia sentido. De fato, Ravena já tinha visto Mutano e Ciborgue provocando um ao outro antes. E o metamorfo inventava as coisas mais estapafúrdias nessas horas. Como naquela vez em que ele atribuiu uma derrota humilhante, numa maratona de games, a uma cãibra no dedo mindinho... do pé. Ou a outra ocasião em que declarou ser capaz de comer mais do que seu amigo cibernético, e como resultado ficou dois dias com dor de barriga, inchado como um baiacu. E, naquela noite no shopping, ele tinha acabado de ganhar uma aposta quando falou aquela... coisa. Realmente, a tamaraneana tinha razão. Mutano parecia mesmo estar provocando Ciborgue...

            A empata sentiu que uma pressão enorme tinha sido tirada de seu peito. Por um momento, ficou imóvel, com os olhos cerrados, ignorando completamente a garota à sua frente.

- Amiga Ravena? Você está se sentindo bem? – Perguntou Estelar, assustada com o mutismo súbito de sua amiga.

- Sim, Estelar. – A empata respondeu, quase sorrindo (a palavra-chave aqui é “quase”). – Estou muito bem.

 

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            Expectativa. A cabeça de Mutano estava cheia de expectativa.

            Estava tão ansioso para chegar à Torre que nem conseguia andar. Sua forma de guepardo era um borrão verde ziguezagueando pelas ruas da cidade. Ele sabia que estava correndo o risco de trombar com alguém ou alguma coisa, mas não conseguia parar. Estava agitado demais para isso. Estava apressado demais para isso.

            Toda a agitação do metamorfo tinha uma razão de ser. Ele tinha gastado o resto de sua tarde fazendo preparativos. Tinha visitado três lugares diferentes e coletado toda a informação que precisava. No caminho, recebera a atenção de um ou outro fã, mas, embora apreciando isso, conversara apenas brevemente com cada, antes de seguir em frente para seu objetivo. Agora, tudo estava pronto. Tudo estava preparado.

            Só faltava ajustar um detalhe. Tudo dependia dele.

            Mutano chegou à Torre e foi direto para o banheiro. Precisava se lavar após ter percorrido todo o trajeto do centro até seu lar. Após ter a certeza de que estava limpo, voltou para o quarto, onde, cuidadosamente colocados na parte superior de seu beliche, estavam dois pedaços retangulares de papel, cada qual com uma data e horário escrita neles.

- Ah, amanhã. – disse o metamorfo, quase que acariciando os diminutos itens. – Amanhã vai ser um grande dia.

            Após guardá-los cuidadosamente em um bolso, terminou de trocar de roupa e se pentear. Enquanto tentava dar alguma semelhança de ordem àquela bagunça que chamava de cabelo, repetia para si mesmo, sem parar.

- Coragem, cara, coragem. Você consegue. É só dar quatro passos, bater na porta e falar. Ela não vai te atirar pela janela. E, se atirar, é só voar de volta e dizer de novo. Moleza.

            Ah, sim. Ele também estava se sentindo confiante. Talvez mais do que deveria. E, assim que terminou de se arrumar, dirigiu-se corajosamente para o quarto ao lado.

 


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