Never Means Forever escrita por Shiori McQueen


Capítulo 2
Capítulo 2 - Tempestade




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Dois meses atrás, quando Chase Mastriani deixou o escritório do diretor Goodhart, as nuvens miúdas que ele vira surgir através das janelas haviam se transformado em gigantescas formas volumosas abrindo um apertado caminho pelo céu escuro. A tarde antes calma tinha agora um estranho aspecto de noite e Chase se viu desejando estar em casa e não ter ido para a escola aquele dia.

Skip estava sentado em um dos bancos puídos do corredor, esperando. Torcia as longas e finas mãos e olhava pela janela de meio em meio segundo. Sentia que aquela ia ser uma tempestade daquelas e parecia sinceramente apavorado. Nem mesmo percebeu quando Chase se aproximou.

– Vem, vamos.

E aquela foi uma das caminhadas mais silenciosas que os dois fizeram pelo corredor do Ernest Pyle.

No ponto de ônibus, a inquietação se estendia também aos outros alunos que, apesar dos fones de ouvido e da música alta, resmungavam coisas e trocavam constantemente de pés.

Chase e Skip eram os dois únicos sentados no banco.

Skip olhava para frente, aéreo. Chase olhava para trás, analítico. Encarava os cartazes e avisos inúteis do Grêmio Estudantil, convocando reuniões onde se as moscas comparecessem já seria muito. Havia avisos de baile e estes tinham muito destaque, com suas letras garrafais e imagens chamativas. E ali, impressos em tinta preta e branca, havia panfletos de crianças desaparecidas.

Uma pequenina garota sardenta de cabelo dividido em tranças e sorriso meio banguela parecia feliz ao gargalhar para a câmera no momento da fotografia. Annelise Brookberry, oito anos. Bem ao lado havia um garotinho sério, de cabelo loiro claríssimo cortado em formato de cuia. Matthew Couglham, seis anos.

Chase encarou as imagens e uma sensação de medo frio se apossou de sua coluna. Parecia errado que fotografias tão felizes servissem para ilustrar uma situação tão sombria como a perda de um filho. Olhar para aqueles cartazes por muito tempo acabaria deixando-o taciturno, mas, felizmente, seus olhos foram atraídos pelo barulho alto da buzina do atrasado ônibus escolar. "Aquela lata de sardinhas", como sua mãe costumava dizer, vinha subindo a rua deixando para trás uma enorme nuvem de poeira no tempo seco.

Skip, soltando um guincho baixo, saltou de pé como se houvesse recebido uma descarga elétrica. Chase o seguiu, arrumando a pesada mochila sobre o ombro.

No momento em que entraram no ônibus as nuvens pesadas estavam ainda maiores, inchadas de água, pairando ameaçadoramente sobre suas cabeças. Os relâmpagos saltavam de nuvem em nuvem, causando um clarão ocasional e, pelo que Chase previa, não ia demorar muito a chover.

De fato não demorou.

Quando a chuva começou a cair, a força da água era tanta que as gotas mais pareciam pedras atiradas contra o teto do ônibus escolar. Mais de um aluno contorceu-se para olhar lá para fora e constatar por si mesmo que não, não estavam chovendo granizos. Chase e Skip foram desses.

O clima tão seco que por semanas permanecera inabalável e imponente resolvera agora dar uma guinada violenta com a pior tempestade da história, ao que tudo indicava. As estradas de terra estavam sendo literalmente escoadas com a chuva e não pareciam outra coisa agora a não ser um grande rio de chocolate, capaz de fazer Willy Wonka morrer de inveja com sua lagoazinha medíocre em uma fábrica de doces.

Chase olhou para o lado só para ver se Skip estava bem, tremendo convulsivamente daquele jeito. Percebeu então que suas próprias mãos estavam aferradas em volta de sua mochila, como se afrouxar um pouco o aperto fosse uma questão de vida ou morte.

Lá na frente, o motorista do ônibus estava lívido por trás dos bigodes, com as mãos gordas suadas escorregando toda hora do volante. Ele fazia três ou quatro orações simultâneas enquanto encarava o vidro da frente com seus olhinhos miúdos e via as comportas do céu se abrindo em cima deles, despejadas contra seu velho ônibus como que arremessadas pelo imenso balde divino. Lá em cima, no céu, São Pedro – o sacana – devia estar dando uma festa daquelas e descontando sua ira nos mortais dali de baixo.

A visibilidade àquela altura era nula e a bateria de chuva parecia ainda muito longe de acabar. A água perfurava a terra, criava sulcos, arrastava arbustos. Chase estava rezando para que Deus (sempre considerando que ele existisse, agora) não os deixasse atolados e sem ajuda no meio do nada. Tirou o celular do bolso e constatou o óbvio: a operadora deixara de oferecer cobertura. Outra coisa que acabou deduzindo por si mesmo foi que as linhas de emergência deveriam estar superlotadas aquela hora.

Mais assustador do que a força da água era a impetuosidade com que os relâmpagos cruzavam o céu, acompanhados pelo sinistro brado dos trovões. Ao avistar um clarão branco-azulado, todos involuntariamente retraiam-se no lugar e esperavam a assustadora pancada do tambor celeste para completar a sinfonia cacófana do medo generalizado, que passava de um para o outro como a pior das infecções contagiosas.

O motorista – que se chamava John Melklins, muito prazer – jamais vira uma coisa daquelas em todos os seus anos de vida. Já havia visto tempestades, é claro, mas não um dilúvio. Que Deus os abençoasse agora. Secou as palmas das mãos na jaqueta, aferrou as mãos ao volante e pisou fundo no acelerador, fazendo o motor gorgolejar e cuspir fumaça. Pouco a pouco, o ônibus foi ganhando alguma velocidade.

A chuva enfraqueceu um pouco, mas voltou a ficar violenta, e a onda de alívio que invadira os estudantes naquela fingida trégua foi sufocada outra vez pelo pânico contido. Os que arriscaram um olhar lá para frente, para a estrada, alegaram não poder enxergar nem mesmo um palmo diante do nariz. O que eles não sabiam era que John Melklins podia fazer uma declaração semelhante de onde estava.

Quando interrogados mais tarde, ninguém saberia dizer de onde veio aquele par de faróis brilhantes na escuridão.

John, o motorista, comprimia apertado os olhos para enxergar os limites da rodovia quando o brilho amarelo atingiu-o como uma pancada.

Estava muito perto.

Não havia nenhuma distância segura entre seu ônibus lotado de estudantes – Deus, são todas crianças! – e a dianteira do caminhão. Questionado mais tarde sobre o ocorrido, Melklins diria que o mundo passou a girar mais devagar naqueles poucos segundos que os separaram da morte certa e que sua mente simplesmente trabalhara na direção de encontrar uma saída.

Seria mentira.

Quando John esterçasse completamente o volante do ônibus, fazendo-o girar como um pião tombado na direção do barranco, a única coisa em que estaria pensando seria em salvar seu próprio pescoço, porque, Meu Deus, ele tinha três filhos pra criar e uma esposa doente.

Quando salvou todas aquelas vidas com esse simples ato, John Melklins, o motorista, estava agindo puramente por instinto.

Skip jamais admitiria, mas depois do barulho alto da buzina do caminhão e da fricção aguda dos pneus ele estivera a ponto de urinar nas calças. Ao invés disso, segurara a mão de Chase com tanta força, tanta força que, se não estivesse apavorado demais para perceber, teria ouvido os ossos estalando com o esforço.

Para Chase, sim, as coisas aconteceram em câmera lenta.

Os faróis, Skip apertando sua mão e escancarando a boca junto com uma dezena de estudantes para bramir em uma só voz o grito aterrorizado, o ônibus começando a rodar, as pessoas caindo como se jogadas dentro de uma centrífuga, a dor em seu próprio corpo ao ser arremessado de um lado para o outro.

O som da histeria humana.

O sacolejar lento da lataria quando o ônibus ensandecido foi enfim perdendo a velocidade. O momento em que batera a cabeça com força demais e o mundo se desfizera em uma nuvem negra de dor e imaginara ter perdido os sentidos.

Chase se lembraria de todos os detalhes depois e os diria com precisão se alguém perguntasse, mas a verdade é que, mais tarde, ninguém iria querer saber sobre isso.

O ônibus permaneceu tombado de ponta cabeça, com as rodas girando ignóbeis para o céu. A chuva continuava tão forte quanto antes, alheia ao acidente que havia causado ali na estrada e os estudantes todos estavam caídos como sacos de batata, a maioria desacordada ou com ferimentos feios. Quando Chase conseguiu ficar sentado, viu o braço de uma garota contorcido em um ângulo tão engraçado que poderia fazer parte de uma pintura cubista ou uma obra de Escher. Ele havia batido a cabeça, sentia-se tonto e não estava pensando coerentemente.

O que fez sua mente realmente estalar e voltar a trabalhar com uma velocidade assustadora foi a pressão em sua mão machucada ir diminuindo devagar. Com um medo terrificado, uma demora proposital, uma prolongação da dor, virou o rosto para o lado e encarou a figura esguia de Skip esparramada no chão (que já fora teto) do ônibus. Havia um ferimento enorme em sua testa, exatamente do mesmo lado que Chase também batera, mas havia sangue.

Sangue demais.

Tudo o que Chase não gritara quando o ônibus tombou, ele estava gritando agora.

Olhou ao redor, muito mais cônscio do que jamais estivera, e o pânico borbulhante surgiu efervescente em algum lugar em seu interior, atingindo níveis estratosféricos.

Ele devia ser a única pessoa ali dentro capaz de levantar-se e caminhar, ou mesmo a única capaz de pensar e entender o que havia acontecido e isso, por mais estranho que pudesse parecer, era o que o assustava mais. A sensação de estar sozinho, de ser responsável agora por todos os outros e, acima de tudo, de não saber o que fazer é que o enchia desse medo incontrolável.

Chase cambaleou ao tentar levantar, mas permaneceu muito bem seguro sobre as duas pernas. Gritou ainda mais, vendo o sangue de Skip formar uma poça no chão. Ouviu os gemidos e lamúrias dos outros feridos e gritou mais, mais, até sentir que podia controlar um pouco a histeria e parar de tremer como uma criança.

Chase não estava pensando na tempestade elétrica quando saiu correndo para o descampado.

Na verdade, ele não estava sequer pensando. Quando enrolou a jaqueta preta em torno do braço e esmurrou com força o vidro da janela, nem ao menos lhe passou pela cabeça usar a saída de emergência. A única coisa que queria era sair, preservar a sanidade e fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Algo que ajudasse Skip. Algo que ajudasse todo mundo.

Passou com dificuldade pela abertura que criara, caindo do lado de fora com um baque na lama. Suas costas doeram absurdamente com a batida, mas ele se levantou no instante seguinte e correu pelo cenário desolado da imensidão pantanosa, com o barro criando armadilhas pegajosas onde ele tropeçava e caía, levantando-se penosamente para correr na direção onde julgava ficar a estrada.

Chase correu por duzentos metros antes de ser atingido por um raio.

Num instante ele estava correndo. No outro, o clarão o cegou e a dor parecia capaz de perfurá-lo, atravessá-lo e ele chegou a desejar a morte nos últimos instantes de consciência.

Chase permaneceu algum tempo em pé mesmo depois dos sentidos terem o abandonado, com as mãos fechadas em punhos tão firmemente que as unhas se enterravam nas palmas e o sangue escorria em finos filetes. Os olhos permaneceram abertos, revirados nas órbitas, e um dos pés ainda estava pairando no ar, sem em momento algum ter tocado o chão. No instante da colisão, o raio atravessou-lhe a planta deste mesmo pé, estourou a sola do sapato, encontrou a terra e culminou em um enorme estouro de trovão.

Nem bem o barulho acabou, Chase caiu inerte como morto.

.

.

Mastriani dormira por tempo demais.

A sensação que se apoderava dele era a de estar submerso em profundas águas, preso por uma pedra atada aos seus pés. Era difícil respirar, pensar; era difícil até mesmo viver e ele se perguntou naquele instante como é que estava sobrevivendo ali embaixo sem oxigênio. Aos poucos a pressão que o prendia foi se desfazendo e a escuridão foi dando lugar a uma luz clara que o alcançava devagar com suas mãos gentis à medida que emergia à superfície.

Chase dormira por tempo demais, isso ele sabia, e foi essa consciência simples que teve ao acordar, sem nem mesmo abrir os olhos.

Seu corpo doía como se houvesse disputado a maratona cívica de Arthur Bluffs e depois achado divertido tentar carregar seus irmãos mais velhos nas costas.

Fez uma primeira tentativa de abrir os olhos e a luz branca que o atingiu fez suas retinas doerem e as pálpebras se fecharem ainda mais cerradas. Resmungou alguma coisa que soou mais ou menos como "Não me acorde para ir para a escola" enquanto se contorcia na cama. Havia um pesado cheiro de éter em seu quarto e ele teve ganas de perguntar quem é que havia deixado um vidro de álcool aberto ali dentro.

– Mãe, ele acordou.

Doug?

Por que Douglas estava ali, para começo de conversa?

Então sua memória toda voltou com a velocidade de um trem bala chocando-se em uma montanha, tão fresca como limonada gelada em dia de verão.

O acidente. Raio. Skip.

– Doug... – Sua voz falhava como se houvesse engolido uma bola de pelos. Era um som rascante e visceral.

– Não fala, Chase. Você tem que descansar.

– Doug. – Firmou a voz fraca. Abriu os olhos. Encarou o quarto de hospital e as pessoas. – Onde... – Parou. Respirou. – ... está o Skip?

Ele nunca admitiria o quanto teve medo da resposta.

– Chase, querido... – Sua mãe interrompeu Douglas quando ele estava a ponto de responder. – Chase... – E as lágrimas molhavam os cantos de seus olhos por trás da armação fina dos óculos.

– Mãe, pare com isso, ele vai pensar que ele morreu. – Douglas revirou os olhos – Skip está bem. Foi trazido para cá junto com todos os outros e já foi para casa. Ele passa todo o tempo aqui, quando não está na escola.

– Desculpe Chase, mas é que só o fato de você ter acordado-

– Como assim, acordado? – Chase estacou, voltando os olhos vidrados para a mãe que buscava apoio no ombro de seu pai. – E como assim todo o tempo aqui, quando não está na escola? O acidente foi sexta-feira. Hoje deveria ser sábado. Por que Skip foi pra escola no sábado?

Absolutamente todos os presentes no recinto, mesmo a enfermeira que havia sido chamada para trocar o soro do garoto, pararam qualquer ação que houvessem planejado e olharam para Chase Mastriani – confuso com seu rosto magro, abatido, branco, marcado com profundas olheiras – atrelado àquela cama de hospital. Todos piscaram longamente, sem saber o que dizer.

Foi Tommy quem tomou a palavra.

– Você foi atingido por um raio, cara. Quando o resgate chegou, os paramédicos acharam que você tinha morrido. – A mulher mirradinha que era sua mãe soltou um guincho – É um milagre que você esteja vivo. Ninguém dava nada por você quando chegou nesse hospital. Entende isso?

Chase parecia assustado, mas fez que sim com a cabeça e Thomas continuou.

– Eles fizeram o que podiam. Trataram seu ferimento na cabeça, seu ferimento no pé, tentaram te reanimar. – Tom fez uma pausa e esfregou o rosto – No fim, você sobreviveu. Ficou muito mal. Muito mal mesmo, mas sobreviveu. Te levaram para a Unidade de Terapia Intensiva. Fizeram uma porrada de exames em você-

– Tommy, já chega. É informação demais! Ele acabou de acordar, por Deus!

– Mãe, eu quero ouvir. – Chase implorou com a voz cansada. – Por favor.

Ela torceu os lábios no lugar e não interrompeu mais.

– Eles descobriram que não havia nada de errado, afinal. Ao menos, não tão errado como se esperava. Esperavam um dano permanente em algum órgão vital ou no sistema nervoso. Mas a verdade, Chase, é que agora você vai ter disritmia e dores de cabeça. Só isso! Você foi atingido por um raio e, ao invés de ser assado como uma torrada consegue me sair só com uma dor de cabeça!

– Por isso passamos todo esse tempo expulsando os jornalistas do seu quarto.

O homem robusto que era seu pai apontou lá para fora, pelo vidro, e Chase conseguiu enxergar algumas pessoas paradas no corredor.

– É. Nem me fale. – Samuel, que havia acabado de chegar, irrompendo pela porta, balançou a cabeça e jogou o corpo para trás no sofá, sentando-se ao lado de Douglas e Tommy. – Foi um sufoco até me identificar na portaria como seu irmão cara, quanto mais passar por estes urubus na porta. Imagino que desculpa eles inventaram para subir aqui.

Houve um silêncio desconfortável enquanto Chase permanecia com os olhos vidrados no lugar, parecendo deslocado dentro daquela pintura de família. Seus irmãos olhavam de um para o outro, seu pai apenas ficava quieto olhando para fora, mas sua mãe, mirrada como ele mesmo era, engolia o choro quietinha em seu lugar.

Por fim, ela explodiu.

– Estávamos com tanto medo, Chase. – Soluçou, assustando os demais. – Mesmo que tudo estivesse certo... você... você não abria os olhos. Nós pensamos que você... que fosse entrar em um coma profundo. Só Deus sabe como rezei para que acordasse!

Chase piscou longamente, sentindo-se fraco como nunca estivera.

Coma.

Essa palavra parecia tão distante, vinda de algum documentário médico ou seriado, que quando Chase viu-se encarando-a de frente como algo que poderia ter-lhe acontecido (e que talvez lhe acontecera), parecia mais como uma passageira sombria sorrindo de algum lugar dentro dele, acenando com suas pequeninas mãos cruéis.

Todas as coisas pareceram sair de foco, girando na velocidade da luz, girando na velocidade de um ônibus tombado. Chase sentiu seu estômago engraçado e, por um momento, imaginou que fosse colocar tudo para fora antes de poder articular a pergunta que tanto queria fazer.

Seu corpo doía, sua cabeça doía e agora ele entendia o que Thomas quisera dizer com isso. Não era uma dor de cabeça normal. Era uma dor de cabeça extraordinária. Seu cérebro, dali a pouco, viraria pasta de amendoim e poderia ser drenado pelo ouvido.

Mesmo assim, ele tentou o mais que pôde não deixar isso transparecer em sua expressão, comprimindo os olhos tanto quanto lhe era possível e franzindo o cenho para enxergar por trás da dor.

Abriu a boca. Fechou-a. Abriu outra vez.

– Quanto tempo... – Parou. Esperou a dor se acalmar. – Por quanto tempo...

Um suspiro.

– Duas semanas e meia.

E o mundo escureceu outra vez.

.

.

Chase conseguiu ir para casa no fim daquela semana, depois de ter enfrentado um batalhão de médicos e jornalistas, ter respondido um número absurdo de perguntas e feito um número absurdo de exames.

Não estava completamente recuperado.

No hospital havia precisado fazer exercícios de fisioterapia para avaliar se não havia realmente nada de errado com seus músculos. Exercícios para firmar as pernas, exercícios para alongar os braços, exercícios para a coluna. Apesar de ter sentido alguma dificuldade para realizá-los no começo, quando foi para casa no fim de semana estava se sentindo em melhor forma do que jamais estivera em toda a vida.

Skip fora visitá-lo várias vezes, contrabandeando videogames e comida não-saudável dentro da roupa. Chase se sentia tentado a recusar, com medo de perguntar de onde ele tirava tudo aquilo, mas depois de passar muito tempo à base da sopa insossa do hospital qualquer coisa pareceria melhor para seu estômago faminto. Ainda mais se fossem barras de chocolate, bolachas recheadas e salgadinhos sabor requeijão.

Era estranho ver Skip sentado sobre seu leito de hospital, carregado de doces e jogos, quando Chase o havia visto desacordado sobre uma poça de sangue em meio ao desespero iminente. Era estranho encarar seu rosto esguio e esbranquiçado sorrindo para ele, estendendo balas de goma, jujubas e chocolate e comentando sobre as dificílimas fases de Super Mario Bros.

Era estranho, mas não era ruim.

Chase recebera muitas flores e cartões com desejo de melhoras no tempo em que permanecera internado. Em sua maioria eram de estudantes que haviam estado no ônibus no momento do acidente, mas também havia alguns com declarações bastante inusitadas de garotas que consideravam que o que ele havia feito lá atrás fora um ato de heroísmo. Chase não conseguia entender como sair correndo na chuva para ser atingido por um raio sem de forma alguma ter sido de ajuda aos feridos podia ser considerado um ato de heroísmo, mas agradeceu aos cartões mesmo assim.

A atmosfera do hospital, naqueles dias em que lá permanecera, o havia sufocado. O cheiro de éter, a claridade excessiva, a comida sem gosto. O garoto não via como esperavam que alguém se recuperasse em um local tão deprimente e deu graças a Deus por ter recebido alta antes do fim de semana.

Voltar para casa atribuía à sua vida uma característica de normalidade que retornava aos poucos, em contraste com a rotina imposta no hospital.

Era simplesmente normal passar as noites em sua cama com uma lanterna e revistas em quadrinho, lendo avidamente as aventuras de seus heróis favoritos. Era normal descer para tomar café da manhã e ver Douglas, Samuel e Thomas discutindo para ver quem ficaria com as panquecas, disputando cada uma delas com o garfo. Era natural ir para a escola com Skip, voltar para casa, ver os irmãos dependurados na janela para espiar Claire Lippman.

Mas os pesadelos não eram normais.

Os primeiros pesadelos que Chase tivera foram visões turvas, ensandecidas, sem aparente conexão com a realidade. Eram retrospecções do acidente, visões de si próprio analisando os cartazes no ponto de ônibus e clarões inesperados atingindo-o em meio à chuva. Havia imagens desconexas e risos de criança, gritos, choro e sempre que sonhava com isso Chase acordava apavorado, corria pelo quarto e procurava desesperadamente o interruptor. Olhava em volta, segurava-se à porta e constatava que sim, ainda estava tudo bem.

Na terceira noite, Chase sonhou com a garotinha.

Ela sorria para ele e ria, com seu sorriso meio banguela feito de janelas. Olhando com mais cuidado Chase percebeu que ela gritava. Gritava. E não estavam mais no campo de camomilas onde ele a havia visto, mas em um porão escuro onde as sombras criavam sinistras formas nas paredes.

A garotinha estava presa ao porão.

Tinha um dos tornozelos amarrado por uma corda. Estava imunda, vestida com farrapos, sentada no chão frio perto de uma tigela e Chase tinha medo de chegar mais perto e ver o que havia dentro. Ela cantarolava uma canção sobre meninas e lobos.

– Ann... – Ele a chamou.

E ao tentar chegar mais perto havia um par de olhos vermelhos brilhando na escuridão.

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Naquela semana Chase sonhou com o assassinato de Annelise Brookbery e sua mãe nunca o viu tomar café daquele jeito.

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Chase chegou em casa naquele dia com uma aparência péssima.

Estava branco, com os olhos apertados de sono e pesadas olheiras no rosto. Bocejava constantemente. Mal se aguentava em pé, com a mochila sobre os ombros.

Fazia mais ou menos oito noites onde os pesadelos se repetiam e, durante esses oito dias, Chase viera tomando mais cafeína do que um viciado, tentando ficar acordado a qualquer custo. Não havia conseguido dormir direito, o que era bom, mas toda vez que se surpreendia cochilando eram olhos vermelhos que o espiavam de volta do escuro.

Seus pais estavam assistindo ao noticiário e havia um barulho chilreante na cozinha, onde a panela de pressão apitava com sua válvula girando monotonamente.

– Chase, desliga essa panela pra mim!– Gritou sua mãe da sala. – Seu café está pronto na garrafa, mas não vá tomar agora. Nem sei por que você toma essa porcaria de noite.

Chase passou na cozinha, desligou a panela e não soube exatamente como chegou à sala e se jogou no sofá, desabando como uma gelatina humana com mochila e tudo. Estava um caco. Seu corpo implorava por sua cama, mas sua mente implorava por mais café e por mais horas acordado, ou os pesadelos voltariam. E nada seria pior do que isso.

– Como é possível, não? – Anita Mastriani comentou com o marido, encolhendo-se no sofá.

– É.

– Isso que fizeram com a filha dos Brookberry... Que coisa mais triste.

Chase ajeitou-se sentado, com a orelha em riste.

– Prender uma garota num porão por meses...

– ... matá-la de pancadas...

– ... tentar sumir com o corpo daquele jeito.

– Como é que um ser humano é capaz de- Chase! Ei, Chase!

Mas ele já havia saído correndo escada acima.

.

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Annelise Brookberry foi a primeira. Depois Matthew Couglham. E Amelia Jordan. Katherine Johnson. William Aschter. A imensa maioria das crianças nos cartazes e nas caixas de leite; crianças desaparecidas.

Chase sonhava com elas.

Sonhava com suas mortes.

E, invariavelmente, elas morriam.

.

.

Assim, naquela manhã de outono, Chase acordou com uma dor de cabeça lacerante após ter tido um pesadelo horrível com a morte de Frederik Wilkins.

Já havia se passado dois meses desde o dia do acidente e, desde então, Chase não havia tido boas noites de sono. Seu comportamento que mesmo antes não era exemplar, simplesmente tornara-se agressivo e irritadiço. Era facilmente tirado do sério pelas menores coisas e reclamava de dores de cabeça constantes.

Naquele dia, sua dor de cabeça estava particularmente insuportável.

Os pesadelos vinham se repetindo e repetindo e o desfecho era sempre igual. As crianças geralmente acabavam no noticiário e, com uma precisão maior ainda, em salas do necrotério.

Chase acabou percebendo naqueles dois meses que se não visse os cartazes não sonharia com as crianças, então passara a fugir deles como o diabo da cruz. Conseguira diminuir a quantidade de pesadelos pela metade, o que já era bom, mas isso não o impedira de passar inúmeras noites em claro se perguntando por que Deus o havia amaldiçoado com as visões.

Embora houvesse evitado os cartazes, panfletos e as caixas de leite, naquela tarde no Ernest Pyle, quando deixara o escritório de Goodhart, Chase olhara para cima de propósito. O rosto de Freddie Wilkins ficara marcado em suas retinas simplesmente porque quisera assim. Não sabia explicar o que o fizera olhar, mas a sua suposição era a de que, talvez só dessa vez, os pesadelos pudessem dar lugar aos sonhos e o corpo de Frederik não estivesse em algum lugar nos limites do país (ou fora dele) alimentando os vermes. Quando Chase olhara para aqueles cartazes naquele dia estava se testando.

Mas os pesadelos vieram como sempre vinham e Chase chorou como há muito não chorava porque essa maldição jamais acabaria.

.

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Chase pensou longamente por três dias antes de resolver fazer alguma coisa.

O sol já estava alto no céu quando ele apanhou sua jaqueta vermelha do encosto da cadeira e levantou-se com pressa da mesa do café da manhã. Sua mãe reclamou que estava comendo pouco, estudando menos ainda e arrumando brigas demais, mas Chase deu de ombros, disse que ia ver o que podia fazer e então saiu.

Andou por um bom tempo a pé tentando entender por que não estava indo à escola, e aproveitou a caminhada para colocar seus pensamentos em ordem. Robin Wilkins não iria à escola naquele dia. Chase, bem, iria até lá falar com ele sobre os pesadelos.

Só então estacou onde estava, incrédulo.

Ia mesmo fazer isso? Ia mesmo ir à casa de um sujeito que conhecia apenas de vista do colégio para dizer que tivera um pesadelo e que por isso seu irmãozinho estava morto? Por qual tipo de louco seria tomado, Senhor?

Mas, estranhamente, Chase permaneceu resoluto nessa decisão.

Na metade do caminho tomou um ônibus para Saint Deutricy, que ficava em uma região completamente fora da cidade, para além dos limites rurais. Era normal que muitos dos estudantes de Arthur Bluffs viessem das cidades-satélite ou mesmo de bairros tão afastados que já não eram considerados parte integrante da própria cidade. Robin Wilkins, Chase sabia, vinha de um bairro afastado de Saint Deutricy, onde trabalhava com o pai em uma oficina. O que ele não sabia era até onde essa informação estava correta.

E se Wilkins houvesse se mudado?

Mas não havia.

Chase desceu em um ponto de ônibus no meio do completo nada e caminhou por horas a esmo, perguntando para quem aparecesse no portão onde é que ficava a tal oficina ou mesmo a casa dos Wilkins. Por um longo trecho do trajeto ninguém soube responder.

Cansado e com fome, Chase pensou em desistir. Pegou seu celular do bolso e o visor lhe disse que já passava do meio dia.

Pensava seriamente em voltar ao ponto de ônibus e ir embora quando avistou uma construção ao longe que se parecia vagamente com aquela que estava procurando.

Caminhou para lá, dizendo a si mesmo que se não fosse o lugar certo simplesmente desistiria daquela loucura, voltaria para casa e assistiria aos desenhos na Cartoon Network e, internamente, desejou que não fosse o lugar certo.

Mas, tanto para seu alívio como para sua infelicidade, era. As letras garrafais pintadas de vermelho na fachada diziam "Oficina Wilkins" e Chase achou o nome um atentado à criatividade. Havia carros estacionados em todo lugar onde se podia ver e alguns estavam içados no alto por alavancas de suspensão. O garoto, parado do lado de fora, mordeu a bochecha até sangrar e então resolveu que se havia vindo até ali, era hora de fazer alguma coisa além de ficar imóvel como estátua.

– Robbie! – Chamou.

– Robin Wilkins?

Sem resposta.

– Ei, Robbie! Você não me conhece, mas eu conheço você.

Ok, estava sendo idiota.

– Ei, Ro-

– Será que dá pra parar de gritar, Mastriani?

Chase se viu segurando todo o ar.

Ali, do lado de fora, estava Robin Wilkins com suas calças de brim, seus coturnos de operário e absolutamente nenhuma camisa. E, meu Deus, trabalhar numa oficina havia feito muito bem àquele cara.

– Ei. – Tentou manter a voz firme, mesmo à luz da abençoada visão.

A bem da verdade, Chase nunca fora atraído por garotas.

A primeira vez que se dera conta disso foi quando Skip aparecera em seu quarto com revistas afanadas cheias de mulheres nuas em posições ditas sensuais. Enquanto Skip se excitava só de olhar para elas, Chase franzia o cenho, arqueava as sobrancelhas e tentava entender que tipo de contorcionismo era preciso fazer para tirar apenas uma fotografia daquele jeito.

Depois, quando estava na sexta série, passava tempo demais pensando em Andrew Douvar, o garoto mais legal da classe. Os dois eram amigos, aquilo era completamente normal, mas Skip parecia simplesmente muito tentado a perturbá-lo por ficar escrevendo Andrew em todo lugar.

E, por fim, havia Claire Lippman, da casa ao lado. Enquanto seus irmãos se dependuravam na janela de Douglas para arriscar um único olhar para aquelas curvas, Chase achava nojento uma garota expor-se ao ridículo daquela maneira para ser vulgar de propósito.

– Mastriani?

E agora havia Rob Wilkins, com sua barriga de tanquinho e seu bronzeado indecente.

Aquilo era atentado violento ao pudor.

– Sim? – Chase chacoalhou a cabeça, tentando parecer casual e passou a concentrar-se ao máximo em olhar para cima.

– Eu perguntei por que você está aqui.

– Ah, claro.

– E então?

– E então o quê? – Sinceramente, alguém devia estapeá-lo por não estar sendo racional.

– Por que você está aqui?

– Bem, eu... precisava falar com você. – Chase torceu os lábios, recobrando a consciência. Aquilo não ia ser fácil, droga. – Em particular.

– Sobre o quê? – As sobrancelhas de Wilkins estavam tão arqueadas que dali a pouco iriam fazer parte do cabelo.

– Sobre Freddie.

E soube ali que tinha a atenção total do outro.

Um olhar para o rosto de Rob Wilkins e Mastriani pôde dizer que ele havia passado tanto ou mais tempo acordado do que ele próprio fizera. Era um rosto tenso, vincado. Tinha marcas de olheiras, olhos inchados e, se Chase não estivesse tão ocupado antes em observar outras áreas de sua anatomia, teria percebido o quanto sua aparência piorara desde que o vira pela última vez na escola, três dias atrás.

Chase tentou não vacilar, mas um suor tenso estava empapando suas mãos.

– Você sabe alguma coisa sobre o meu irmão? Você o viu?

– Sim para a primeira, não para a segunda. Podemos conversar em outro lugar? – Engoliu em seco e passou a trocar de pés como uma criança. – Não vai ser legal se mais alguém ouvir, você sabe.

– Claro. – Mas a dureza de seu rosto contrariava a afirmação – Espera que eu vou pegar uma camisa.

Graças a Deus!, Chase completou em pensamento, mas permaneceu calado e parado do lado de fora até Robin voltar devidamente vestido. Percebeu, com certa hilaridade, que era bem mais fácil raciocinar agora.

– O que você queria falar?

Rob foi direto ao contornarem a oficina, dando do lado de fora de um galpão abandonado, onde peças e motores de carros jaziam amontoados pelos cantos. Era um lugar afastado, distante dos outros que trabalhavam àquela hora e isso era bom. Já seria ruim ter uma pessoa para ouvir aquilo, quanto mais duas.

O vento assobiava contra a vegetação seca, contrariando o sol brando que brilhava lá em cima. Naquele silêncio tenso, Chase preferiu ficar olhando para longe, para sua casa, que deveria estar em algum lugar além da linha do horizonte.

Desejou não ter vindo.

– O que é que você sabe, afinal? – Wilkins pressionou.

Chase buscou as palavras certas para dizer por que viera, mas elas se prendiam em algum lugar de sua garganta, se agarrando com tentáculos e ventosas; se agarrando e bloqueando a passagem de ar. Queria falar e não queria; queria, mas ao mesmo tempo não via como seria capaz. Sentiu um bolo indissolúvel na boca, uma vermelhidão no rosto e, acima de tudo, sentiu muita raiva de si mesmo.

Limpou a garganta.

Ia dizer. Tinha que dizer.

– Mor-...

Mas Wilkins cortou suas palavras pela metade.

– Aquele garoto é a minha vida sabe? Desde que nasceu.

– Ah, sério? – Chase engoliu em seco, sorrindo um sorriso que mais parecia uma careta de dor.

Como, meu Deus, como seria capaz de dizer uma coisa dessas?

– Ele não é meu irmão de verdade. É filho da minha irmã.

Mastriani tentou demonstrar surpresa, mas com a quantidade de coisas que tinha com que se preocupar no momento acabou falhando miseravelmente.

Robin continuou.

– O infeliz que a engravidou a abandonou com a criança e ela era muito nova, sabe? Deu o menino pra minha mãe criar. Eu vi aquele garoto crescendo. Brinquei com ele nesse quintal mesmo. Estava ensinando pra ele como lidar num motor. E aí acontece uma merda dessas. – Uma pausa e Rob olhou para longe, para o horizonte – Como é que a criança sai pra brincar e não volta mais? – Virou-se para Chase com o rosto agoniado. – Eu fico pensando e não consigo entender. Vai que ele está perdido ou-

– Ele está morto! – Chase cuspiu as palavras com desespero, querendo que Robin parasse de falar.

(Doía mais com o falatório todo)

Nem bem falou, o rosto de Wilkins se fechou como o tempo em tempestade dois meses atrás.

Se antes pudera ver um sorriso, agora não havia dele mais nem sombra. Robin parecia um tigre ameaçado que, para não ser pego por um predador maior e mais forte, prepara seu último ataque decisivo.

Chase arrependeu-se do que dissera, mas o que estava dito já não podia ser desdito.

– O quê?

– Você ouviu.

Deu as costas para ir embora e esse foi seu erro. Seu capuz fora puxado com tanta força que a gola da jaqueta o esganou como uma forca, para então ser arremessado com as costas contra a parede do galpão. Seu corpo todo estalou, dolorido, mas Chase limitou-se a ranger os dentes enquanto aquele par de mãos de mecânico se aferrava à sua blusa.

– Repita.

E com a coragem que sabia que tinha, repetiu sem tremular:

– Morto. Ele está morto. Tão morto como Kennedy ou Roosevelt. E você, de certo, pensa que eu fico feliz em sair da minha casa pra vir nesse fim de mundo te dizer uma coisa dessas? Eu podia deixar você procurar por ele pra sempre ou até encontrar o corpo você mesmo, mas não: eu vim até aqui te dizer para conseguir ter um pouco de paz de consciência. Se não quiser aceitar, não aceite, mas não vai poder negar a verdade pra sempre.

Mastriani e Wilkins se encararam nos olhos por um período assustadoramente longo, enquanto chispavam faíscas e desafiavam o outro a desviar o rosto, mas nenhum dos dois o fez.

Robin afrouxou um pouco o aperto, mas não deixou Chase ir.

– E como é que você sabe disso?

Chase permaneceu ali, parado e incrédulo, abrindo e fechando a boca como um peixe fora d'água.

Isso seria ainda mais difícil de explicar.

– Eu sei que pode parecer difícil de acreditar...

Silêncio.

– ... mas, é que... você sabe, eu...

Gaguejando daquele jeito, Chase já nem parecia mais o garoto corajoso que enfrentara Wilkins momentos antes.

– ... eu posso ver esse tipo de coisa.

– Eu não estou entendendo nada do que você está falando, Mastriani.

– Pessoas. desaparecidas. – Pausas longas entre as palavras – Eu posso vê-las, sabe? Você ficou sabendo do acidente com o ônibus, não ficou? E do raio.

– Sim, mas o que isso tem a-

– Alguns especialistas afirmam que pessoas que conseguem sobreviver a esse tipo de trauma, geralmente despertam áreas do cérebro que ficam adormecidas na maior parte dos seres humanos-

– Será que dá pra falar o que-

– E por causa disso eu consigo ver pessoas desaparecidas nos meus pesadelos.

Por um instante Chase pensou que Wilkins fosse esmurrá-lo e chegou até mesmo a fechar os olhos diante do impacto, mas o soco tão esperado não veio.

Ao invés disso, Robin desatou a rir desgovernadamente e Chase contorceu o rosto, ofendido. De todas as reações que ele imaginara, rir como se não houvesse amanhã certamente não era a que ele estava esperando.

– Ei, será que dá pra parar com isso?

Robin o soltou e agora se debruçava sobre os joelhos.

– Não é que... É só que... Ai, cara! – As lágrimas pulavam alegremente de seus olhos. – Você acredita mesmo nisso?

– Eu não acredito, eu sei! – E a seriedade em sua voz fez Rob erguer o rosto – Annelise Brookberry morreu e eu sonhei com ela. E Matthew Couglham. Amelia Jordon. Katherine Johnson. William Aschter. Foram tantos que eu perdi a conta, Wilkins. E eu sonhei com seu irmão.

Silêncio tenso.

– Você está falando mesmo sério?

– Estou.

– Mas não foi algum tipo de coincidência ou-

– Que tipo de coincidência acontece tantas vezes?

Robin encolheu-se como se fosse apunhalado.

– Você tem certeza? – Pausa – Sabe, certeza mesmo?

– Eu sonhei com Annelise Brookberry oito dias antes dela aparecer no jornal. E com Matthew Couglham sete dias antes de ver seu nome no obituário. Você acha que eu não tenho certeza?

Robin arregalou os olhos e Chase imaginou que Arquimedes devia ter tido uma expressão parecida quando fizera sua tão famosa descoberta sobre a coroa de ouro.

– Oito dias, você disse?

– Sim.

– Oito dias?

– Já falei que sim, porra. – Irritou-se com toda aquela animação crescente.

– Há! – Wilkins não pareceu se importar – Meu Deus, cara! Então pode ser que ela estivesse viva quando você sonhou com ela! Sabe, que nem uma premonição. Meu irmão pode estar vivo, Mastriani!

Um balde de água fria não descreveria a sensação que Chase teve diante daquela afirmação. Era mais como se a terra estivesse se abrindo sob seus pés, o enviando diretamente para o fogo do Inferno.

Havia passado tanto tempo praguejando a maldição que possuía que essa possibilidade jamais passou por sua cabeça. E se todas aquelas crianças estivessem vivas quando sonhou com elas? Ele poderia ter feito alguma coisa. Poderia ter ajudado. Se houvesse feito alguma coisa, talvez as mortes horríveis que via em pesadelos jamais acontecessem. Mas aconteceram e a culpa era sua, sua, sua...

A dor de cabeça veio com a velocidade de um tornado, abrindo caminho por seu cérebro como uma britadeira. Todos os pensamentos se embaralharam e os pesadelos jamais pareceram tão vívidos. Sua cabeça estava latejando, sua visão tornou-se turva e Chase via Robin através de estranhas nuvens negras.

– Ah meu Deus.

E branco como papel, Chase perdeu a consciência.


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