A Quarta Máscara escrita por psyluna


Capítulo 1
Paraíso e inferno.


Notas iniciais do capítulo

Minha idéia inicial era postar de uma vez, mas a história é muito maior do que eu pretendia. Ela virá em partes. Não se matem de ansiedade, eu enrolo muito pra atualizar.



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A noite escura e sombria tinha vindo mais cedo, como em todo inverno. Longos campos de terra vermelha, estéreis e frios, se cobriam de poeira levantada pelo vento. Montanhas distantes, algumas vezes, podiam ser vistas ao sul. Mas apenas terra nua se estendia ao norte.

Mais, mais e mais vazio. Nada a perder de vista.

Poderia alguém viver ali?

Talvez não, mas vivia.

Um poço fundo estava cavado no chão. As paredes de pedra ficavam geladas com o pôr-do-sol. Um lugar desconfortável, medonho, do qual muitos manteriam distância, principalmente de seu fundo invisível.

Uma menina fazia do buraco seu lar.

Ela podia ver a luz da lua minguante, refletida nos dois olhos brilhantes de criança que encaravam o céu. O astro sorria com sarcasmo, reforçava sua solidão e seu abandono.

Ou assim ela considerava.

Os pêlos de seu corpo se arrepiavam com o clima noturno, por baixo de uma fina e longa camisola rasgada, cheia de manchas secas.

Sangue.

Mal cabia ali dentro. O espaço era pouco, e a cada movimento, a pele toda parecia ser torcida, puxada por um único ponto. Estava cheia de marcas, nos mais diferentes estados. Cortes, arranhões, hematomas e furos. A maioria ainda recente, outros em cicatrizes brancas, espalhadas por todos os cantos. Mesmo o rosto e o pescoço, sensíveis e vitais, não estavam livres.

A garota abraçava suas pernas, tremendo, mas sem se incomodar.

Tudo aquilo era costume. Não se lembrava de conhecer outra vida.

Embalada pela noite sem sono, a voz rouca e sofrida começou a pronunciar sílabas de uma canção. A melodia profunda soava para o nada, enquanto ela se acolhia melhor no ninho das sombras.

Era dia. A menina olhava para cima, para a saída do buraco, vendo o céu cheio de nuvens escuras. Nenhuma luz, nenhuma direção.

Aguardava pacientemente por algo terrível.

Uma pessoa vinha caminhando do lado de fora. Era uma mulher baixa e magra. Um vento forte batia, indo de oeste para leste e levantando seus cabelos escuros longos para o lado. Ela parecia determinada em seguir. Cobria o corpo com uma comprida e grossa vestimenta verde-escura.

Dentro do poço, a garota escutou os passos que se aproximavam.

Encolheu-se num susto, mas já sabia o que estava por vir.

Os pés externos pararam, fazendo uma longa sombra sobre o poço.

Trêmula, ela esticou mais os olhos para o topo.

Ela tinha vindo.

Não havia como se proteger, nem como escapar. Sempre, sempre aconteceria. Era seu destino.

A primeira.

A pedra dura e fria voou do alto de encontro a sua cabeça. Acertou.

Doeu. Um tiro forte. Já havia um corte na testa, que se abriu outra vez.

Mais uma. Outra, outra, outra, outra, outra. Duas mãos a atacavam sem pena.

A chuva de ataques cessou.

Ferida. Marcada. Em pedaços. Era o suficiente.

Satisfeita, a mulher sorriu. O mesmo sorriso, o rosto de quem tinha certeza de ter feito justiça.

Ela deu as costas para o poço e seguiu o caminho de volta.


Durante dias e dias, o mesmo.

Pedra após pedra, humilhação depois de humilhação.

A cada dia, um novo motivo, uma nova risada de desprezo. Era sempre feia demais, triste demais, quieta demais. Não deveria se abrigar ali. Não deveria reclamar.

Nunca estava certa. Nem quando fazia o certo.

Em seu buraco solitário, ela amava, mas odiava. Queria matar, mas faltava-lhe coragem. Não suportava mais, mas nada queria fazer.

Porque aquela era sua mãe.


Na calada de uma nova noite, um sono leve pairava por sua consciência. Largada no estreito espaço onde vivia, com a cabeça pendente, a frágil garota descansava, com os olhos entreabertos.

Revirava em seu peito uma vontade de dormir para não mais ter que acordar.

Em sua mente, tudo vinha. Absolutamente tudo, como em uma onda. Vinha para mostrar que era uma péssima pessoa, por nunca sair dali, por não ser forte, por qualquer mínimo motivo.

Sem perceber, já estava encarando o céu.

Para sua surpresa, uma enorme luz tocou-lhe a vista.

Reluzente, ofuscante, distante. Linda.

Tão bela que chegou a hipnotizá-la. Não conseguia pensar ou se focar em outra coisa a não ser naquela luz. Ela se postava no céu, imóvel, parecendo esperar.

De repente, uma chama acendeu-se no peito daquela garota. Uma força que ela nunca tinha conhecido, uma vontade que nunca pensara existir.

O que mais desejava, dali para frente, era tocar aquela estrela.

A solução para tudo. Se alcançasse a luz, nunca mais seria ferida. Nunca mais precisaria se esconder, ninguém iria pisá-la como um tapete ou tratá-la como lixo. Estaria sempre no alto, sentindo o vento selvagem dos céus, livre de qualquer problema.

Era tão perfeita.

A menina levantou-se do chão frio e começou a saltar.

Colocava toda a força de seu corpo nas pernas. Esticava o braço até que os músculos rangessem. O suor descia, pingando-lhe pelo rosto. Cada salto era uma queda, e cada queda, uma pancada em um local diferente. A insistência fazia sua pele branca ficar dolorida e roxa.

Mas nenhum cansaço ia lhe impedir de chegar até lá.


Dia nublado e cinzento sobre as terras vermelhas. Ventava muito, e fortemente.

O fundo do poço nada tinha de novo.

Mais escuridão. Mais chuva. Frio e isolamento.

Costume.

Sem ter coisas melhores onde se concentrar, a garota analisava as linhas de sua mão. Com a palma esquerda aberta, seguia-as com o dedo, fazendo uma trilha do início ao final. Seu toque era tão delicado e frágil que até sentia cócegas.

Uma atividade simples, mas que a mantinha entretida por horas.

A ventania violenta carregava um papel. Tinha aspecto envelhecido, como um pergaminho amarelo. Ele voava seguindo o curso do ar, virado e revirado a bel-prazer da natureza.

Mas ele tinha um destino certo.

Quanto mais se aproximava do poço, mais descia, até quase o nível do chão. Fez como se fosse começar a rastejar pelo solo seco, mas deslizou ainda no ar para dentro do buraco.

A partir dali, caiu, até a garota percebê-lo e esticar a mão para agarrá-lo.

Animou-se apenas ao ver a folha.

Desamassou os cantos e iniciou a leitura.

Era um recado de um lugar distante. Uma comunicação que tinha começado do nada, com uma pessoa de quem nunca tinha visto o rosto.

Mas alguém a quem admirava muito.

As palavras eram escritas a tinta preta, desenhadas artisticamente com pena, todas escolhidas a dedo para compor um texto metódico. Palavras, aquelas, que contavam sobre a mente e o pensamento. Palavras descrevendo um modo de vida frio, alheio a tudo e a todos. Um lar restrito, resistente e imponente onde só os melhores podiam entrar. Armas para se defender. Sabedoria a perder de vista.

Palavras vindas da mão de uma menina jovem.

Cada linha que lia era uma certeza, uma alegria, mas uma ponta de depressão.

Ficava feliz, por ser digna de receber atenção de uma pessoa tão estrita. Também por ser seu simpatizante alguém vindo do alto, do sonho, da estrela.

Alguém perfeito.

Tão perfeito que lhe causava inveja.

Afinal, se ela fosse como a garota da carta, não sofreria.

Se morasse numa alta torre de muros fortes, ninguém poderia jogar-lhe pedras. Seria respeitada e forte, vista de longe como poderosa.

E seu corpo não teria uma só cicatriz.

Ao acabar de ler, dobrou a carta e deixou-a no chão. Deitou-se com as costas no fundo do poço e as pernas dobradas, as mãos cruzadas sobre o peito, como um cadáver.

De repente, a estrela apareceu, mesmo com tantas nuvens. Um brilho intenso e poderoso. Seu rosto encheu-se de alegria. Fechou os olhos e começou a sonhar.

Caiu a primeira gota de chuva.

As coisas eram tão ideais, lá em cima.


Estranhamente, alguns dias tinham ido, e a moça não aparecera.

Aquela mulher de olhar duro, de crueldade sem fim.

Foram dias onde ninguém tinha ferido a garota.

Mas não era preciso.

Ela chorava com insistência. Com raiva e reprovação. Socava-se, beliscava-se, se riscava com as unhas. Humilhava a si mesma, batia a própria cabeça contra as paredes até não suportar e apagar, inconsciente. Chamava-se de incapaz, imprestável, de todos os nomes de desprezo dos quais se lembrasse.

A dor de não poder alcançar a estrela era suficiente para manter o hábito.


Ela não tinha perdido por esperar.

–Achou que eu não voltaria?

Uma pedra.

Bem do fundo do poço, um fio de voz tímida surgiu.

–Não, senhora...

–IDIOTA!

Duas, três, quatro, cinco, seis pedras.

Uma acertou-lhe o nariz.

Ela gritou, sentindo uma dor enorme.

–Eu já disse, inútil. Já disse. Saia desse maldito buraco. Mas você nunca faz o que eu mando.

Acuada e assustada, ela não queria olhar para cima. O sangue do rosto misturava-se com algumas lágrimas salgadas que lhe banhavam.

–LEVANTE ESSE ROSTO, MALDITA.

Com o pescoço travado, a menina virou a face para o alto lentamente. Tremia de medo, de raiva, de todos os sentimentos que pudessem incomodar um ser humano.

Mais uma rocha veio de encontro a sua testa, com força descomunal.

Tinham findado-se as forças para reclamar. Apenas esperava a dor se espalhar, como uma gota de tinta na água. Mas ela não queria se dispersar pela testa machucada. Queria apenas pulsar no mesmo lugar, fazendo-lhe papel de coração.

–Não vou mais perder meu tempo por hoje.

Mal podia entender as palavras duras. Chegavam a seus ouvidos como ondas amorfas, sem sentido.

A presença se dissipava dali, pouco a pouco.

O fim de tarde vinha, e o sol baixava, até que seus últimos raios abrissem espaço para a chegada da noite.


Silêncio. Total silêncio. Nenhuma voz, nenhum som.

Nenhum que pudesse ser ouvido, aliás.

Do fundo da escuridão, um choro baixo e abafado vinha. O choro de quem tentava esconder-se, com as mãos pressionadas contra o rosto. Os prantos contínuos de quem sentia várias coisas, mas não sabia exatamente o quê. Lágrima após lágrima, os pensamentos se confundiam uns com os outros. Misturas de cenas, de sensações, de emoções.

“Por quê?”

Ela se perguntava, mas não sabia responder.

“Por que eu?”

Enxugava os olhos, mesmo que tivesse que esfregar fortemente seus ferimentos.

Como sua fiel amiga, a dor estava sempre ali.

Longe de ser um incômodo. Não, nem pensar. Alguém que a acompanhava em todas as horas só podia ser um amigo, não?

A menina parou de soluçar. Um sorriso tímido de alívio surgiu nela.

Começou a passar as unhas sobre o corte na testa. Afundava-as na carne viva, para fazer o sangue escorrer. Descia os dedos, arrastava-os, deixando um rastro vermelho que serpenteava até os ombros. Tudo muito devagar. Um gemido leve escapou de seus lábios.

Seria de prazer ou de sofrimento?

Talvez nenhum. Talvez os dois. Ela não sabia.

Mas ia continuar.


Tonta de tanto perder sangue, a garota estava em delírios.

Era a mesma noite, ainda. Ela se rasgava com as próprias mãos, apenas para ver se os dedos podiam ficar totalmente vermelhos. Ria como uma louca doente, e brincava como uma criança demoníaca.

Até que um tiro de realidade chegou a sua mente e ela acordou do transe.

A dor começou a voltar, pouco a pouco, para seus lugares. Em desespero, a menina olhava para os lados, sentindo-se perdida. Levou a mão molhada ao peito e encharcou-a mais. Olhou-a. A luz da lua não mostrava tudo a ela, mas o cheiro de ferro no ar deixava claro o que estava acontecendo.

Soltou um grito de susto e bateu a palma na parede de pedra do poço à sua frente. Esfregou-a com força, porque não queria ver nem vestígio daquilo.

Não queria reconhecer que estava se matando, pouco a pouco.


Quando acabou de tirar as manchas da pele, já tinha ido uma hora e meia e era dia quase nascido. O couro dos dedos e do resto da mão tinha se esfolado, tamanho o atrito.

Admirava a palma ardente e limpa, parecendo mais calma em não ter sua alma derramada sobre ela.

Depois de contemplá-la durante um bom tempo, começou a notar as marcas que todo o sangue deixara na parede do poço. Eles representavam seu desespero, de um modo tão preciso que ela nunca tinha conseguido fazer.

E reparou que não estava mais sentada sobre o chão. Flutuava no ar, em um piso incerto.

De súbito, concluiu. Marcar as paredes com seu sangue estava fazendo-a subir. Ascender e deixar o fundo do poço.

Em direção à estrela.

Por dentro, vibrava em vida como fogo. Por fora, uma animação incomum tomou-lhe da cabeça ferida aos pés descalços.

Era aquela a chave. Enfim, descobrira o segredo.


Passava dias e dias concentrada. Traçava com os dedos palavras e desenhos, pessoas e sentimentos, outras vidas, mundos de fantasia, novos universos. Histórias intermináveis, onde seus personagens sofriam como Cristo do começo até o distante fim.

Ela se divertia com aquilo.

As pedradas diárias, cada vez mais fortes, não lhe importavam mais. Batiam, doíam, mas ignorava as feridas.

Eram tão habituais que passavam em branco.

E depois de cada traço, seus pés pareciam estar cada vez mais distantes do fundo.

Subindo vertiginosamente para a amada estrela.


Um fim de tarde tingia o céu de laranja do lado de fora, quando uma voz fria e cortante atingiu os ouvidos da garota como uma lâmina.

–O que significam esses rabiscos, infeliz?

Ao ouvi-la, cada centímetro de seu corpo congelou.

Não tinha coragem de acreditar naquilo, quanto mais de olhá-la nos olhos outra vez.

Quando teve forças para virar o rosto, uma pedrada forte vinha como um cometa até seu crânio.

As pífias luzes da névoa se apagaram, e ela sentiu apenas a queda.


Ao acordar, era noite. Estava atordoada, completamente zonza, como se alguém a tivesse dopado. Demorou algum tempo para tomar consciência de si. Apalpou a própria face, encarou a mão, só para ter certeza de que tinha sobrevivido.

À medida que sua lucidez mental voltava, a dor infernal na cabeça vinha em conjunto. O corpo balançava de um lado para outro. Apesar de sentada, não tinha o mínimo equilíbrio.

Um gosto amargo dominava-lhe a boca, mas nem gastou tempo pensando nele.

Com a pouca visão que a lua lhe oferecia, tentou virar o pescoço para cima e descobrir onde estava. A cervical pareceu se mover como que obrigada, a modo de um aparelho cheio de ferrugem.

Era o poço de sempre.

Nenhuma surpresa até então.

Esticou o braço para tocar a parede fria e conseguir um apoio melhor do que a própria estrutura. Levantar o rosto dava-lhe a sensação de que ia despencar.

E, enfim, percebeu que seus extensos desenhos estavam muito mais no alto do que antes.

Ela nunca tinha subido um centímetro sequer ao fazê-los. Era o poço que aprofundava sua base. Ela apenas flutuava misteriosamente no ar, no mesmo lugar, enquanto seu esconderijo aguardava por uma queda, cada vez mais para baixo.

Mas a garota não sabia disso.

Em um gesto impulsivo, cravou as unhas numa casca de ferida do ombro, arrastou os dedos e fez com que ela se abrisse.

Não ligava para a dor. Não se importava se um dia viesse a definhar. Queria apenas voar até acima das nuvens, largar para trás aquele sofrimento.

Começou a desenhar outra vez, colocando sua alma para fora com contos feitos de sangue.

O ciclo girava outra vez, para o mesmo desfecho.


Em um dia qualquer, o sol resolvera dar as caras sobre as terras vermelhas.

Justamente daquela vez, a menina do poço tinha caído num sono pesado, quase inabalável. Era tarde e ela ainda dormia.

O calor provocava-lhe um incômodo tremendo.

Sua pele descorada nunca tivera muito contato com os raios do dia. Era branca como papel, e frágil como um galho seco.

Dentro de um sonho confuso, ela se remexia. O pouco espaço só lhe permitia se deitar em posição fetal.

Murmurava sozinha.

“A luz... A luz... Vai me queimar... A estrela...”

Encolheu-se mais.

“Não... Não me tire daqui... Não me puxe para cima...”

Em sua cabeça, uma voz alheia falava também.

“Mas você não quer alcançar a estrela?”

“Ela está tão distante...”

“Você pode tocá-la se quiser.”

“Não me tire do escuro...”

Silêncio.

“Ela é tão mais alta do que eu...”

A voz da outra pessoa tinha ido embora de seu sonho.

“Melhor do que eu...”

Restaram ela e a solidão.

“Não mereço a estrela...”

Ficou ali, abandonada, pronunciando palavras incompreensíveis.


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Notas finais do capítulo

That's it. Espero que estejam acompanhando, e eu PRECISO de comentários. Três linhas de opinião não vão fazer seus dedos cair, deixe uma review e eu vou ficar eternamente grata. ^_^