Carnage Coffee escrita por Ana Bela


Capítulo 1
Constante?


Notas iniciais do capítulo

Mais uma fic minha postada aqui depois de tanto tempo. Quero agradecer a ary_chan que me ajudou tanto com esta fic.
Boa leitura.



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Mais uma madrugada corria no tempo, desta vez muito mais fria e estranha do que o normal, naquela cidade agora silenciosa, escura, quieta. Ao menos para a maioria da população que se preocupava em dormir e descansar do escasso dia de trabalho, estudo, da correria que era Londres. Menos em um apartamento no sexto andar, uma luz numa janela destacava-se de todo o prédio. Dentro havia um homem que andava inquietamente descalço sobre o carpete vinho da sala.

Seu nome era Hideto Takarai, ou Hyde como era chamado desde pequeno pela família. Com sua estatura baixa, cabelo liso e negro que lhe batiam nos ombros, magro, e dono de uma face extremamente mal humorada, em seus 24 anos de vida já conseguia ser frio e esnobe com todos, sem exceção, até a família conhecia bem que Hyde era um homem quieto e anti social.

Não tinha amigos por própria opção, se fechava para as pessoas em qualquer tipo de situação. A primeira impressão de Hyde era de que ele fosse nervoso e mordesse caso chegasse perto. Quando mais jovem era alegre e simpático, mas com o passar do tempo foi se tornando frio e grosso, quando se formou na faculdade não havia mais um pingo de alegria nos olhos, olhos que pareciam gelo para o mundo.

Mais uma madrugada sem dormir, mais uma madrugada em que o tempo parecia não se mover. Não adiantava rolar pela cama, sabia que não dormiria novamente. Parou de repente pensando em como foi o seu dia e junto veio um suspiro. Seus dias eram exatamente iguais.

Não iria ficar naquele lugar claustrofóbico, não por enquanto, iria sair e caminhar até seus músculos não agüentarem mais e depois voltaria para casa, se arrumaria e tomaria o rumo para o trabalho.

Pegou seu casaco cinza jogado no sofá e o vestiu logo em seguida calçando sem meias seus sapatos pretos, pegou as chaves do apartamento e por fim, apagou a luz do cômodo. Saiu e trancou a porta, e junto deixando para trás outro suspiro cansado.

O prédio onde morava naquele horário parecia um cemitério, o som de seus passos ecoava pelos corredores até chegar ao elevador. Hyde sempre se sentia bem ao entrar naquele elevador de madrugada, sem vizinhos incômodos, fofoqueiras de plantão ou homens suados e mal cheirosos. Estava lá sozinho olhando os números de cor vermelha mudar naquele painel no alto.

Chegou ao térreo apressando o passo por pura vontade de não ouvir o som dos sapatos se chocarem com o chão liso. Saiu do prédio recebendo uma enorme rajada de vento no corpo todo, em seguida sentiu um arrepio correr pelo seu corpo. Aquela madrugada estava mais incomum do que as outras.

Diminuiu a velocidade do passo, agora olhando tudo a sua volta com certo enjôo. Quantas vezes havia visto aquela mesma visão noturna do local? Perdeu as contas até de tanto contar aquela mesma paisagem. Não era como se vivesse sua vida, mas sim como a assistisse. Tudo apenas passava diante dos seus olhos e logo se esqueceria.

Continuou caminhando sentindo o vento forte e gelado em seu rosto, aquela sensação para si era uma das melhores do mundo, e só naquele horário encontrava do jeito que gostava. Parou por um instante fechando os olhos como se aquilo o fizesse absorver mais aquela sensação de alívio.

Mas seu alívio acabou tão rápido, o vento havia diminuído a intensidade. Andou mais lentamente esperando por mais daquela sensação. Mas desta vez havia parado de ventar completamente.

Aumentou os passos, sem pensar aonde iria exatamente. E não se importava em ser assaltado, na semana passada havia o assaltado levando apenas cinco libras que tinha para o café. Hyde não sentia pânico, era calmo e até irônico com os assaltantes, sabia que um dia poderia perder a vida, mas pouco ligava para aquilo.

Passou por aquele local cheio de árvores medianas, aquela praça ficava muito mais bonita de noite do que durante o dia quando aquele sol chato dominava tudo. Andou mais um pouco e sentiu-se bem ao ver as luzes daquele estabelecimento acessas, como todas as madrugadas.

Atravessou a rua sem olhar para os lados, sabia que nenhum carro passava por aquela rua tranquila aquele horário. Parou em frente aquela porta de vidro e já conseguiu avistar outra pessoa do outro lado do balcão de madeira envernizada.

Outro suspiro acabou escapando de seus lábios. Sem mais cerimônias entrou silenciosamente. Pediu seu café sem olhar para o outro homem, como o normal de qualquer outro dia. Olhava para os próprios dedos que batiam no balcão fazendo um som abafado.

Mais alguns minutos se passaram e sua paciência começou a esgotar, quando iria encarar o ser ali presente, não precisou, o copo de plástico transparente foi posto a sua frente, o cheiro inebriante fez sua impaciência sumir como num toque de mágica. Tirou o dinheiro do bolso e colocou sobre o balcão, em seguida saiu sem dizer uma palavra. Seu corpo foi seguido com o olhar pelo outro homem, só parou de observar o cliente quando ele desapareceu de sua visão.

Hyde foi para praça novamente, sentou-se num banco olhando para o café em suas mãos por um bom tempo. Poderia ter feito café em casa, mas não queria, deveria ser sempre daquele estabelecimento, só aquele café lhe fazia acalmar um pouco. O gosto poderia ser de um mero café, ma s para o baixinho era o seu café da madrugada.

Cansou de apenas olhar aquela bebida quente, levou o copo até a boca e deu um gole demorado. Aquele gosto comum nas madrugadas se tornava seu remédio para relaxar. Depois respirou fundo, aquilo era realmente inebriante. Se o tempo antes não passava, agora estava completamente congelado e só existia Hyde e seu copo de café.

Tomava os goles demoradamente, apreciando o gosto e sentindo descer pela garganta. Queria que sentisse sono quando tomava café, antigamente era assim, mas o tempo foi seu inimigo e lhe roubou sua droga para dormir. Então todas as madrugadas assim iria beber café sozinho, pensando em nada.

Seus olhos estavam até sem piscar, olhava para uma folha caída no chão a alguns metros de distância. Mas na verdade sua mente estava longe, pensava se deveria trabalhar no dia seguinte, não estava afim. Piscou três vezes seguidas se dando conta que havia pensando aquilo novamente. Não deveria ser um exemplo ruim no trabalho.

Com ódio dos próprios pensamentos se levantou do banco de madeira da praça, foi até uma lata de lixo e depositou lá o copo vazio. Resolveu que andaria mais um pouco até os primeiros raios de sol aparecessem no céu estrelado.

Andava agora apressadamente, como se houvesse algum compromisso que ocorreria em poucos segundos. Já arfava, mas não parou de maneira alguma, queria espantar qualquer mero pensamento da mente. Aquilo era irritante. Muito irritante. Quando percebeu, estava andando em círculos por horas.

Andou até o portão do seu prédio, alguns pingos de suor desciam pela sua face. Olhou para o céu que lentamente perdia sua coloração negra dando lugar a um azul escuro e perto do horizonte um azul mais claro.

***

Já estava tomado banho, arrumado e sentado a mesa de sua cozinha tomando seu habitual café da manhã. Sentia ainda um pouco os músculos da perna pulsarem, mas não ligava, já estava acostumado com os próprios passos noturnos.

Terminou de engolir o café quente e amargo, foi até o banheiro, escovou os dentes, depois pegou suas coisas e saiu. Sua face de mau humor aumentou quando viu alguns raios de sol entrando pela janela transparente e cobrindo o chão.

Respirou fundo e foi até o elevador, esperava impacientemente já olhava para seu relógio digital de pulso. Odiava aquele horário da manhã, tudo demorava. Desistiu de olhar para o relógio, não faria o elevador chegar mais rápido.

-Bom dia, Hideto.

 Hyde ouviu a voz da senhora do apartamento em frente ao seu,  não olhou para a mulher, não gostava de conversar. E quando iria olhar em seu relógio novamente eis que o elevador aparece. Abriram-se as portas e aquelas pessoas já se espremendo para caber mais dois ali, uma tarefa bem difícil.

Hyde entrou normalmente e permaneceu imóvel. Ao seu lado direito estavam duas adolescentes de uniforme fofocando, ao lado esquerdo o bêbado do décimo terceiro andar, atrás de si, ouvia a voz da mulher dona de casa, o marido e mais um senhor.

Hyde mal respirava, já odiava lugares pequenos, mas odiava mais ainda lugares pequenos com muitas pessoas. Certa vez o elevador quebrou numa manhã similar, só que com o cheiro forte de perfume dentro exalando, o menor xingou céus e infernos por ficar trancado uma hora lá.

Nos outros andares o elevador passou direto, Hyde agradecia aos céus por isso, mas quando chegou ao primeiro abriu-se as portas e mais uma porrada de pessoas esperando e calculando como se espreitar ali dentro. Hyde bufou e saiu sem pensar duas vezes daquele local pequeno, iria descer um lance de escadas.

Quando colocou os pés no térreo viu o elevador o qual tinha pegado até o primeiro andar descarregando muitas pessoas. Riu ironicamente dos que reclamavam e saiu caminhando normalmente sem dizer um mero “bom dia” para pessoas que passavam por ali e o cumprimentavam.

Foi até o prédio do trabalho caminhando silenciosamente. Era perto de onde morava então dez minutos caminhando era o suficiente para chegar. Hyde gostava daquilo, se ficasse longe e houvesse que pegar transporte público ou ir de carro estressaria milhares de vezes mais que o normal.

Entrou na portaria da empresa calado, mesmo vendo que alguns ainda tinham a paciência de dizer bom dia e forçar um sorriso. Parou apenas quando viu não havia elevador ali. Percebeu que mais pessoas se acumulavam ali, para ele era o inferno na terra.

-Bom dia, Hideto... – Uma estagiária que trabalhava no mesmo andar que Hyde disse esperando alguma resposta.

-...

O menor continuou imóvel ouvindo o suspiro da outra, não iria responder, não tinha obrigação nenhuma.

-Não ligue para ele, nunca vai obter resposta educada dele. - Ouviu um dos seus colegas dizendo para mais nova.

-É eu percebi.

- Geralmente as pessoas daqui não são assim, mas tem sempre uma exceção ou outra.

O menor não se sentiu ofendido ou alguma coisa que o desagradasse, estava melhor assim, uma distância bem grande dele daquele pessoal hipócrita da empresa. Não queria amizade com ninguém de lá, ou melhor, não queria amizade com ninguém do mundo.

Enfim chegou o elevador. Nem esperou dois segundos para entrar e se acomodou num canto.

Hyde trabalha num jornal famoso da cidade, na parte da redação. Não era algo que o fazia feliz, mas ao mesmo tempo não era que algo ainda estava o detonando. Ganhava muito bem, por isso comprou seu apartamento tão jovem, claro que ganhou certa ajuda dos pais, mas a grande parte veio do próprio suor.

Quando chegou ao seu andar saiu o mais rápido que pôde, andava naqueles corredores monótonos, entediado e sem sono. Chegou perto de sua mesa e sua face indiferente e mal humorada foi para uma de extremo desgosto.

Infelizmente Hyde trabalhava ao lado de uma janela, a qual o dia inteiro os raios solares invadiam a mesa do menor. Este, sem cerimônias jogou algumas coisas na mesa e fechou com força aquela cortina pesada azul marinho. Xingou mentalmente quem foi que abriu a cortina, todos os dias era o mesmo ritual antes de começar o trabalho.

Sentou-se na sua cadeira e começou a trabalhar recebendo diversos olhares feios dos colegas de trabalho. Mal deu atenção. O mau humor de Hyde naquele dia estava bem maior que nos outros, desde madrugada se sentia assim. Queria ao menos ter dormido para esquecer um pouco da vida. Mas como não poderia no trabalho, torcia que o horário de almoço chegasse logo.

***

Depois de algumas horas finalmente chegou o horário de almoço de Hyde. Saiu pegando sua carteira e não disse nada a ninguém como sempre. Os corredores aquele horário ficavam sem uma alma perambulando por lá, apenas Hyde e sua solião.

Saiu do jornal se espreguiçando discretamente  rumou para o café. Todos os dias ele almoçava lá, era muito melhor do que voltar para casa ou ir a qualquer outro lugar. Lá ao menos ninguém lhe tirava o pouco de sossego que conseguia no meio do dia.

Entrou silenciosamente rumou para o seu lugar preferido ali. Aquela mesa no canto e com a vista para fora do lugar, sem ninguém ao seu lado e naquela parte do dia o sol não batia ali. Era tudo perfeito naquele horário. Até o ar ali era diferente.

Ken Kitamura, o dono do café, observava a chegada de Hyde. Instantaneamente um sorriso maior apareceu em seus lábios. Sempre notou o menor em seu local de trabalho, quieto e extremamente frio. Ele sempre conversava com todos os clientes, mas Hyde era a sua única exceção, tentou várias vezes, mas nunca conseguiu porque o outro sempre cortava algum tipo de conversa descontraída.

Quando Hyde começou a freqüentar o café, Ken pensou que fosse uma delicada mulher. Mas em uma madrugada qualquer quando ele apareceu e chegou perto do balcão para comprar o repetitivo café notou que se tratava de um homem ao qual atendia todos os dias,

Com o tempo pegou um apego por Hyde, mesmo que a relação fosse muito distante.gostava de o ver lá, e percebeu que o menor estava sempre sozinho e com nada em mãos. Contentava-se em o ver daquela forma, afinal ele tinha cara de ser uma pessoa muito nervosa.

Cansou de observá-lo e andou até a mesa onde ele estava. Hyde não moveu um só músculo, mesmo percebendo a presença do outro ali, continuou silencioso.

-Boa tarde. – O de avental logo se pronunciou cortando o silêncio daquela mesa. – O que vai querer?

- O de sempre. - A voz do outro continuava do modo normal, sem emoção alguma.

-Está bem então.

Logo Ken anotou no seu bloquinho de anotações o pedido e foi preparar o pedido de Hyde. Sempre era algo leve acompanhado com uma xícara de café. Não demorou muito, afinal o local ainda não estava cheio como era de costume algumas horas mais tarde.Levou até a mesa de Hyde que olhava para fora e deixou o pedido em cima da mesa. Desejou um “bom apetite” e saiu.

Hyde começou a saborear seu almoço lentamente, agora encarando o próprio prato. Gostava dali, mas não gostava do dono, sempre tentando puxar conversa em momentos errados e mesmo desviando continuava insistindo. De todas as pessoas que convivam no seu dia a dia, ele era o mais insistente de todos para ter uma conversa amigável consigo.

Quando levantou a cabeça e encarou o balcão no outro canto do café viu que o homem que lhe atendeu minutos atrás o encarava sorrindo. Sentiu-se extremamente nervoso com o abuso outro. Quase sempre era assim, o que fazia seu ódio borbulhar.

Hyde olhou de cara feia para Ken, que soltou uma leve risada e desviou o olhar. Percebeu que o baixinho não gostava de ser encarado daquela forma, de nenhuma forma pelo jeito. Viu que outro cliente havia chegado e foi o atender deixando para trás um Hyde de cara feia.

Hyde terminou de almoçar e deixou o dinheiro debaixo do pires da xícara e saiu rapidamente. Não queria ficar ali, se não provavelmente perguntaria ao outro o que ele havia perdido em sua cara.

Ken viu seu cliente preferido saindo às pressas e novamente deixou um risinho escapar. Ao poucos o café encheu em segundos, e depois de um tempo voltou a esvaziar. Resolveu que aproveitaria para limpar aquele lugar que tanto amava.

Ken sempre foi um homem alegre no trabalho, nunca se deixou a abater por coisas bobas. Tinha 1,78 de altura, cabelos negros e como Hyde, filho de japoneses. Em seus 25 anos sempre estava sorrindo, brincando com os clientes, ouvindo-os, tinha um ótimo caráter e sempre estava disposto a ajudar as pessoas.

Talvez por isso resolveu seguir com o negócio do pai, um lugar que funciona 24 horas por dia. Não se importava em dormir pouco, afinal gostava muito do trabalho. Limpava o chão de madeira com cuidado e não se importando com o calor que já estava sentindo, queria conservar tudo.

Depois foi para as mesas e arrumou os bancos cantarolando uma música qualquer. Em seis meses não havia se sentindo daquela forma, sozinho, mas não triste com os últimos acontecimentos. Queria voltar para a terra de origem depois da morte do pai, mas por ter muitas dividas não tinha condições de voltar e nem a família no Japão poderia o ajudar.

Quando viu tudo limpo, seu sorriso aumentou. Decidiu que iria para casa tomar banho e depois voltaria.

Morava num apartamento simples, ficava do outro lado da rua onde estava o café. Era um prédio de pessoas de condições médias ou até baixas, mas ninguém se importava com aquilo. Subiu rapidamente até o quarto andar pela escada mesmo e entrou em seu apartamento com pressa.

Assim que entrou no apartamento, trancou a porta, tirou sua camisa branca, jogou-se no sofá e fechou os olhos relaxando o corpo. A respiração acelerada e descompassada aos poucos voltou ao normal. Quando abriu os olhos se sentou no sofá, encarando a sua frente o outro sofá e ao fundo aquela varanda de tantas memórias. Seu sorriso logo deu espaço a pequenas lágrimas e uma dor no coração.

Via o vento balançar aquela cortina branca que cobria a vista para fora do apartamento. Respirou fundo. Nunca pensou que um dia olhar ara aquela varanda e aquela cortina doeria tanto em seu coração.

Passou os olhos sobre aquela sala simples com dois sofás pequenos. Havia algumas cômodas em uma parede e uma estante enorme no outro canto oposto para varanda. Observava de longe os vários porta-retratos. As lágrimas já não conseguia conter, Memórias, tudo aquilo já não eram tocáveis, eram apenas coisas que ainda viviam em sua mente,

Fechou os olhos tentando lembrar-se de diversos bons momentos e se afogar nestes. Por que tinha que ser daquela forma? Londres para Ken foi um sonho que tornou pesadelo, nos últimos meses o que se acumulou em sua vida só foram dividas e dor. Estava agora sozinho para lá e não tinha como sair dali.

Vida injusta! O que havia feito de tão ruim para receber tudo aquilo de uma forma tão rápida e inesperada? Aquilo era um castigo sem sentido em sua vida. Pouco a pouco sentia que iria perdendo cada fragmento de alegria. O que lhe ainda deixava de pé era o comércio que parecia deixar as memórias tão reais, entretanto, aquele lugar, aquela sala pareciam um balde de água fria o acordando para a verdadeira realidade.

Respirou fundo por algum momento. Novamente notou que estava chorando com aquilo tudo. Sabia que chorar não traria o passado e a alegria de volta, algo impossível. Secou as lágrimas e levantou do sofá, esperou por um momento de olhos fechados e voltou ao seu normal. Não poderia desistir da vida, não naquele momento, ainda queria ver novamente a sua família, queria tudo de volta, entretanto é algo que só o tempo poderia lhe oferecer.

***

Hyde saiu às pressas do trabalho. Parecia que final do dia no meio da semana era algo em que as pessoas ficavam mais insuportáveis. Ou talvez ele estivesse mais insuportável. Nem passou no café para comprar algo para levar para casa para não ter que sair de madrugada. Já esperava provável insônia o assombrar de novo.

Chegou ao seu prédio praticamente empurrando todos que se encontravam no térreo. Só não subiria pelas escadas porque eram muitos lances. No elevador não se continha, todo o momento olhava-se nas paredes espelhadas ou encarava feio alguém que estivesse o observando. Odiava a população daquele prédio.

Entrou no seu apartamento jogando tudo em cima do sofá. Parou abruptamente e se deu conta que estava com pressa para nada. Já estava em casa, longe daquele mundo lá fora que chamava sempre de inferno da terra. Suspirou aliviado e foi tomar banho para tirar o cansaço e o estresse do dia.

Quando entrou debaixo daquela água morna foi acalmando aos poucos. Fechou os olhos pensando em como foi o seu dia. De repente lembrou-se que logo teria um almoço em família e teria que visitar os pais, não gostava daquilo. Não é que não gostasse dos pais ou do irmão mais velho, não gostava do resto dos parentes e o modo em que eles se intrometiam demais em sua vida. Fazia alguns anos que a família toda tinha se mudado pára uma cidade inglesa calma, um pouco perto de Londres que poderia ir de avião ou até mesmo de carro.

Ficou durante todo o banho se lamentando por logo ter que sair do seu amado apartamento por um fim de semana e ir para sua antiga casa. Era como se estivesse voltando no tempo, e era algo que ele mais odiava, ter a sensação de voltar no tempo em que vivia com os pais. Nos dias que vivia em Londres não era o paraíso, pelo contrário estava longe de chegar aos pés de um, mas ao menos não morava num lugar em que os parentes vagabundos rondavam sua casa todos os dias.

Quando saiu do banho vestiu a primeira roupa que viu jogada em suas gavetas, foi para sala assistir televisão, algo totalmente sem graça já que só conseguia assistir jornais e todas as notícias já sabia sem ao menos ter chegado perto da TV.

Já era um pouco tarde quando sentiu suas pálpebras pesarem. Logo tudo se escureceu e acabou cochilando. Não deveria ter cochilado, foi uma das piores coisas que fez naquele dia. Teve mais um pesadelo, da outra vez que dormiu teve um que era tão real, mas tão macabro por isso estava dias sem dormir e agora não era tão estranho quanto o outro, pelo contrário, até pior.

Sua inquietação de antes voltou e com muito mais força. Não aguentava ficar ali, suando frio, parecia que ainda dormia. Olhou no relógio da cômoda ao lado do sofá, eram já 03h20min da manhã. Suspirou, iria novamente comprar café porque talvez sua inquietação acabasse ou ao menos diminuísse um pouco. Só fato de sair de casa o acalmava um pouco.

Foi até o seu quarto pegou seu sobretudo azul, calçou seu sapatos e saiu de casa.Não agüentou esperar o elevador, desceu os seis lances de escada, quando chegou ao térreo arfava como um cachorro. Saiu do prédio, sentindo a leve brisa gelada o consumindo e por diferente dos outros dias, sua inquietação aumentou.

Andava tão rápido que logo estava correndo desesperadamente. Passou por aquela praça tão distraído que nem notou que havia passado por ela. Só parou quando viu o café e por aquela porta de vidro o dono cochilando sobre o balcão.

Hyde respirou fundo várias vezes e entrou. O baque da porta ao fechar fez com que Ken acordasse do seu leve sono, sorriu sem graça e atendeu o cliente com o costumeiro café.

Hyde batia os dedos no balcão, desta vez havia pedido um café normal, sem levar para viagem, Já havia se ajeitado no baquinho e pensava no que fazer, sua inquietação aumentava cada vez mais. Um pensamento repentino passou por sua mente. Talvez ele precisasse conversar com alguém. Riu internamente por isso, afinal era bobeira nunca precisou de ninguém

Mas sentia que precisava conversar. Resolveu que iria puxar assunto com o outro ali, só estavam os dois mesmo naquele lugar. Mas decidiu que não deveria. Ficou segundos martelando-se se deveria ou não puxar assunto. Tomou coragem para dizer algo.

-Hoje está calor. – Disse após soltar um suspiro.

Ken quase derrubou a xícara no chão quando ouviu a voz do menor, ele estava puxando assunto com ele! Após segundos se recuperou do susto e resolveu responder.

-Sim, realmente... – Fez uma pausa. – Chega ser até estranho aqui é sempre tão frio.

-Deve ser aquecimento global...

- Eu não discordo de você. – Abriu um sorriso, sentindo-se feliz por seu cliente favorito conversar assim tão de repente.

- Ou deve ser só impressão... – Hyde quando pegou seu café colocou várias colheres de açúcar, sentindo-se idiota por conversar com Ken.

- Não não... Tá calor mesmo.

Por puro impulso Ken procurou nos bolsos seu maço de cigarros, logo pegando um e o acendendo como nos dias que estava sozinho café. Mas se esqueceu que não estava sozinho ali.

-Não deveria fumar enquanto tem clientes aqui... – Hyde disse tomando um gole de café e olhando feio para o outro.

-Perdão, você não fuma?

-Não é da sua conta...

Hyde não se importou por responder  seco para outro, mesmo vendo a face de chateação de Ken. Sabia que foi uma má ideia puxar assunto, por causa daquilo o outro se sentiu na liberdade de fumar com sua presença. Mas o baixinho também fumava algo irônico para situação.

-Gomen... – Ken rapidamente apagou o cigarro e estava envergonhado, havia estragado a conversa por culpa própria.

-Eu quero outro café. – Hyde deu o último gole no café quente sentindo todo o açúcar vindo na sua boca e fez uma careta.

Ken não respondeu nada, apenas foi preparar outro café expresso para Hyde, que novamente sentia a inquietação tomar conta de seu corpo e mente. Os dedos voltaram a bater no balcão fazendo aquele barulho abafado. Parou, e olhou para o relógio no pulso, ainda eram 04h00 da manhã, soltou um longo suspiro cansado.

- Você veio de que região do Japão? – O maior perguntou virando-se para Hyde, concluindo que este viera do Japão.

- Osaka...

-Eu também. – Abriu um enorme sorriso, que não foi correspondido pelo outro.

-Interessante... Droga, ainda vai demorar muito para amanhecer. – Falou mais para si do que para o outro ali e ainda olhando para seu relógio.

-Insônia?

-Sempre...

-Entendo... É, não deve ser pago.

-Sim... E eu ainda bebendo café... Não durmo faz uma semana.

Hyde disse tirando os olhos do relógio e encarou o outro. Não sentia sono, realmente fazia uma semana que não dormia, mas mesmo assim, sempre foi de dormir pouco o seu habitual era de duas horas por noite no máximo.

-É meu amigo tem que ver isso aí, ficar sem dormir faz muito mal pro organismo. – Sentiu preocupação pelo outro, para Ken o dormir era um horário sagrado.

-Não é nada, eu até gosto. – Abriu um sorriso para si mesmo.

-Se assim diz né...

Ken entregou a Hyde outra xícara de café e o assunto morreu, não havia mais o que ser dito. Nem ele tinha mais coragem de puxar assunto pela última resposta do cliente. E Hyde não queria mais puxar assunto já havia sido demais para ele conversar tanto assim com outra pessoa, muito mais um desconhecido.

-Vou arranjar algo para fazer... – Se pronunciou tirando o dinheiro do bolso e largando sobre o balcão.

-Arigatoo, boa noite. – Ken sorriu de leve vendo o outro já perto da porta.

-Boa madrugada. – Após isso o menor saiu batendo a porta com um pouco de força.

***

Quando amanheceu Hyde ainda se sentia inquieto, ainda mais do que antes, o fato de ter ido ao café e ainda conversar com o Ken o deixou mais irritado e inquieto. Enquanto tomava seu café da manhã se perguntava de onde toda aquela inquietação surgiu. Concluiu que suas noites de insônia estavam deixando sua mente cansada, mas sabia que ficaria assim, pois não conseguiria dormir mesmo se tentasse.

Como na madrugada, correu pelos lances de escada sem nem ao menos chegar perto do elevador, sabia que em dias assim era melhor ficar muito distante de pessoas, muito mais no horário da manhã, não queria estressar com coisas bobas.

Quando saiu do prédio sua respiração estava descompassada e suas pernas doíam. Parou por alguns minutos e recebeu “bom dia” de várias pessoas que logo abriam um sorriso irônico pela face cansada deixando Hyde muito nervoso. Já não teve uma boa madrugada, não queria que o resto do dia fosse assim.

Enquanto caminhava lentamente até o jornal, Hyde lembrava-se do que fez no resto da madrugada. Quando saiu do café ficou na praça local, e a única coisa que encontrou para sua infelicidade foi um bando de bêbados que confundiram com uma mulher e tiraram sarro da sua cara. Depois que foram embora ficou olhando o horizonte até o sol nascer, apesar de sentir aquela agonia correndo por todo o corpo.

No trabalho foi a mesma coisa de todos os dias, ou quase a mesma coisa. Hyde deixou uma pequena fresta da janela a vista e ficou  observando por esta a rua tão distante de si. Trabalhava com a mente longe e não dava muita atenção para aqueles papéis sobre sua mesa. Queria descobrir o motivo daquela inquietação.

Faltavam poucos minutos para conseguir sair daquele prédio frio e ir almoçar. Já olhava na tela do computador os minutos e finalmente quando as horas chegaram ao seu favor se levantou rapidamente pegando algumas folhas.

Foi interrompido algumas vezes pelos corredores vazios por poucos que ainda estavam andando por lá, mas como de costume respondeu com poucas palavras e friamente, talvez até mais do que é acostumado a responder, mas não se importava com aquelas pessoas, afinal são todas iguais.

Quando saiu do prédio conseguiu respirar fundo e aliviado. Como se parte daquela agonia estivesse presa lá dentro e não conseguisse sair. Diminuiu a velocidade dos passos ao longo do seu caminho porque ao menos estava livre por aqueles minutos. Não sentia fome, só estava indo para o café comer algo para não cair sua pressão e sua mãe puxar suas orelhas...

Parou. Raciocinou lentamente o que acabou de pensar. Sua mãe não brigaria consigo por não se alimentar, era dono do próprio nariz e, além disso, seus pais moravam longe o suficiente para lhe dar alguma bronca parecida. Pela primeira vez desde que passou a morar em Londres teve o pensamento assim. Como se estivesse em casa novamente, como se não estivesse em Londres.

Voltou a andar, mas com a mente longe daquele lugar conhecido. Pensava sobre as próprias reflexões que tivera a pouco. Talvez fosse aquilo então, a agonia de saber sobre o fim de semana em família, longe da sua pouca paz. Afinal o final de semana aproximava-se, desta vez mais rápido que os outros. Riu da própria desgraça.

Entrou no café se irritando com o som que vinha de outras mesas, de conversas paralelas, de pessoas tão diferentes. Sentou-se no seu lugar preferido observando os papeis que tinha em mãos. Não pretendia levar aquilo para lá, mas para sua agonia diminuir acabou os levando. Mesmo sabendo então o motivo da sua agonia, ainda a sentia, o que era estranho.

Ken quando viu Hyde no local sorriu e foi o atender prontamente sem tirar o sorriso do rosto. Mesmo que o outro fora grosso na conversa da madrugada passada, sentia-se feliz por conversar com o cliente, mesmo que tenha sido pouco.

-Olá. – Aumentou o sorriso quando se aproximou da mesa e viu de perto o outro.

-Boa tarde.

-Vai querer o de sempre?

-Sim... –Hyde respondia ainda com os olhos colados naquelas folhas, como se houvesse algo interessante nelas, mas na verdade não havia.

O maior saiu de perto sem anotar no bloquinho, não se esqueceria do pedido. Mas notava que o outro estava um pouco estranho, ele sempre na visão geral sempre foi, mas naquele dia parecia ter algo errado com ele. Ken pensou que deveria ser apenas impressão e voltou sua atenção para o trabalho.

Depois de alguns minutos Hyde soltou mais um suspiro olhando agora para uma das mãos ao lado das folhas. Sabia que se continuasse assim teria sérios problemas, mal dava atenção para o trabalho que se dedicava tanto mesmo não sendo apaixonado pelo que fazia. E de uma hora para outra se sentia assim. Se continuasse sua vida profissional iria para o ralo

Acordou dos devaneios quando viu que a bandeja com seu almoço estava ali ao seu lado. Não afastou os papeis, simplesmente pegou a bandeja e olhou para o prato. Não conseguia comer. Tirou os papeis debaixo da bandeja e os olhou, eram apenas rascunhos ridículos.

-Tá tudo bem com você? – Ken perguntou olhando para o cliente que continuava de cabeça baixa.

-Estou inquieto hoje...

Ken não esperava aquela resposta, esperava por algo muito mal educado como de costume. Mas resolveu não aprofundar no assunto, pensou que fosse do trabalho, afinal Hyde nunca levava folhas no horário do almoço, nunca. Pelo jeito era um problema bem complicado.

-Ah sim... – Respondeu saindo de perto antes que recebesse qualquer resposta.

Comeu algumas garfadas e dava goles no café demoradamente. Quando sentiu o pescoço doer levantou a cabeça e bastou olhar reto para ver o dono do café o encarando sorrindo. Não entendia por que tanto aquele homem lhe encarava. Não moveu ou os olhos ou fez qualquer outro movimento, passou a encará-lo também um pouco confuso.

Ken percebeu que agora também Hyde o observava. Não pararia de o olhar por causa disso. Continuou normalmente como se não conseguisse olhar para outro ponto. Até que não aguentou e soltou um risinho da expressão estranha do outro. Mas logo parou quando viu que ele mudou o olhar para de nervoso e como se quisesse saber por que o encarava. Como desculpa, foi um atender outro cliente que chegou a instantes atrás.

Hyde não gostou da maneira de como Ken o encara, e nem tinha o direito de encará-lo assim, foi a gota d’água quando viu o outro rindo, seu dia já estava um inferno maior, não precisava que ninguém o dilatasse mais. Porém até que não levava muito a sério o outro afinal ele estava sempre sorrindo para todos, parecia ser uma pessoa tão feliz e extrovertida, ao contrário de si. Aliás, Ken era a única pessoa fora da família que Hyde conversava mais.

***

Quando chegou em casa, Hyde foi direto para o chuveiro, teve um dia muito difícil. Sentia aquele cansaço raro que aparecia só em eventos ou festas e quando vinha realmente conseguia o derrubar. Sentiu um pouco de sono e sua inquietação havia sumido. Deu graças aos céus por não sentir mais aquela sensação de agonia. A água morna levava todas as preocupações para o ralo junto à sujeira de seu corpo e aquilo era realmente relaxante.

Quando pretendia deitar na cama e finalmente dormir foi interrompido pelo telefone na sala que tocava. Respirou fundo irritado, quando finalmente tinha sono, arrumava sua cama algo cortava seu sono. Mas foi até o cômodo porque o aparelho insistia a todo segundo.

-Alô? ...

-Boa noite, Hyde...

O baixinho espantou-se ao ouvir aquela voz tão conhecida há anos. Era sua mãe. Estranhou ela ligar em dia de semana e naquele horário para si. Poderia ter questionado qualquer coisa em sua mente se não fosse pelo tom de voz que a mulher dizia. Sabia claramente que era uma voz misturada com lágrimas, e com a fungada que a outra deu no outro lado da linha sua certeza apenas fortaleceu.

Ficou realmente preocupado, nunca viu a mãe chorar em toda sua vida.

-Mãe... O que aconteceu? Você não parece estar bem...

A cada palavra que era dita, frase que se formava, Hyde se arrependia amargamente de ter feito a pergunta. Como todo seu cansaço e seu sono fossem apagados por aquelas palavras chorosas, pesadas e melancólicas. Rasgava boa parte de seu coração. Suas pernas nem mais sentia, caiu no sofá ainda tentando absorver aquelas palavras, mesmo que o efeito destas já estava circulando na sua alma.

Respirou fundo tomando coragem para fazer outra pergunta que soava muito inconveniente

-Quando... Quando foi isso?

Uma resposta que calou suas perguntas do dia anterior. A resposta batia com sua tão ardente agonia que sentia. Tudo era um aviso de que aquilo estava acontecendo e Hyde nunca saberia.  Seu coração batia tão rápido que poderia jurar que ouvia as batidas.

Seu irmão havia sido morto brutalmente no dia anterior e só naquele momento todos sabiam da notícia.


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Notas finais do capítulo

É isso aí, agora se devorem de curiosidade e comentem se gostaram, desgostaram ou acharam nada.
Até mais.