Memória escrita por Guardian


Capítulo 8
Redescobrindo


Notas iniciais do capítulo

Para variar um pouquinho, esse capítulo será narrado pelo Matt *--*



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  Eu estava apreensivo.

 Não importava o que Mello disesse, tudo o que ele falou quando eu perguntei como era o lugar, esse tal orfanato continuava sendo um lugar estranho para mim.

 Estranho. Desconhecido. Como tudo o mais.

 O que se deve fazer quando você não se lembra de quem é? Quando mesmo com os outros falando sobre você, continua parecendo que se trata de outra pessoa completamente diferente? Dá uma sensação de vazio, desamparo, que chega a se tornar sufocante. Eu queria conseguir lembrar. Lembrar de quem eu sou, do motivo de eu viver em um orfanato, lembrar das pessoas que eu deveria reconhecer, apenas... Lembrar.

 - Chegamos, Matt – Roger avisou com um sorriso amigável ao estacionar o carro.

 Olhei pela janela, através das poucas gotas de água que teimavam em não escorrer de uma vez, e talvez fosse apenas obra da minha mente cheia de receios, mas à primeira vista aquele lugar me pareceu... Intimidador. Devia ser só coisa da minha imaginação mesmo. Não tinha como ter algo errado com um simples casarão rodeado de árvores e mato perfeitamente cuidado, tinha?

 Mas mesmo repetindo isso para mim mesmo, não uma só vez, quando eu percebi, eu estava segurando a mão do loiro sentado ao meu lado. Assim que me dei conta disso, apressei-me a soltar sua mão e olhei para ele como um mudo pedido de desculpas.

 Ele parecia um pouco surpreso, mas não bravo. Tinha por que ele ficar bravo?

 Pelo que eu pude perceber até agora, Mello era do tipo que se irritava com muita facilidade, e também do tipo que não é nada agradável de se ver irritado. Mas o estranho era que apesar de eu ter percebido isso, quando ele estava ao meu lado eu me sentia... Bem. Não sei explicar direito, mas parecia com algo, talvez uma sensação em específico, que eu não conseguia identificar e que precisava lembrar. Mas que não conseguia, para variar.

 Talvez isso estivesse ligado ao fato de nós termos sido grandes amigos antes de tudo isso acontecer, como Roger disse.

 É, provavelmente era isso.

 ...

 Só tenho um pouco de curiosidade em saber como foi que acabamos virando amigos. Sabe, para repetir e ter isso de volta, mesmo não sabendo como era antes.

 - Vamos – ele falou com um sorriso um pouco hesitante e abriu a porta do carro para mim.

 Saí sem mais demora; era hora de ver com meus próprios olhos como é a minha vida.

 Passamos pelo imenso e bem conservado portão de ferro na entrada e em seguida para dentro da construção em si. Roger tinha ido na frente, dizendo para irmos logo para o quarto porque ele tinha algo para resolver no escritório; e um monitor que havia nos recepcionado assim que descemos do carro agora andava um pouco atrás de nós carregando as minhas coisas. Apenas as roupas e outros objetos de lembrança do meu curto período no hospital.

 O lugar era bonito, e se à primeira vista pareceu intimidador, à segunda já nem tanto.

 Andávamos pelos corredores bem iluminados e vez ou outra apareciam cabeças por portas entreabertas do que eu supunha serem salas e quartos. Provavelmente eram os outros moradores do orfanato.

 Um ou outro nos cumprimentava hesitantes, olhando diretamente para mim, mas a maioria nem falava nada, apenas nos acompanhavam com o olhar curioso. Devia ser algum efeito imediato da cara mal-humorada que havia substituído a tranquilizadora que Mello ostentava até poucos instantes atrás.

 Mello colocou essa expressão fechada assim que passamos pelo portão, e não a desfez até abrir a porta de um quarto, o último do corredor, onde já não havia mais ninguém por perto a não ser o monitor que nos acompanhava. Logo ele se foi também.

 A porta foi fechada, e eu permaneci ali parado. O único movimento que eu fazia era o dos meus olhos analisando todo o lugar.

 Duas camas de solteiro, escrivaninhas, guardarroupa, cômodas, roupas jogadas, porta para o banheiro, revistas e jogos de video-game espalhados. Era tudo estranhamente familiar...

 - Essa é a sua cama – Mello colocou as coisas que antes eram carregadas por aquele monitor, em cima da cama do lado direito, encostada na parede assim como a outra.

 Andei devagar até lá, e me abaixei para pegar uma das muitas caixinhas coloridas que estavam em cima dela. “Litlle Big Planet”. É, pelo jeito eu gostava bastante de jogos.

 Acho que ele advinhou o que eu estava pensando ao olhar para tudo aquilo, porque  falou com um sorriso de canto e dando de ombros:

 - Pensei que se não te contasse sobre os jogos, esse vício acabasse sumindo. Bom, valeu a tentativa.

 Eu não resisti e deixei uma risada baixa sair.

 - Era tão ruim assim? – o que será que eu fazia? Corria pelos corredores imitando algum personagem? Gritava nomes de golpes por aí?

 ...

 Espero que não.

 - Só aviso que se eu encontrar você acordado às três da manhã jogando, eu atiro tudo pela janela na hora – apertou os olhos de forma ameaçadora- Entendido?

 Acho que posso considerar esse o jeito dele dizer “Estou preocupado com você, então é melhor eu ver que você está descansando direito ou então...”. Mais ou menos isso talvez.

 - Sim, sim – concordei sorrindo. Afastei as coisas que estavam em cima da cama para um único canto dela, e deitei com o braço esquerdo, intacto, cobrindo meus olhos da luz que entrava pela janela.

 - Está cansado? – ouvi ele perguntar, provavelmente ainda no mesmo lugar. Por algum motivo eu gostava disso. Não queria que ele se afastasse.

 - Um pouco – minha cabeça doía um pouco.

 Eu teria dormido naquela hora mesmo, se não fosse uma, duas batidas leves na porta do quarto.

 Pude ouvir Mello resmungando algo em voz baixa antes de abrí-la. Eu não me movi.

 - Eh... Como ele está? – uma voz feminina, de certa forma delicada, perguntou. Pude notar uma nota de preocupação ali, e mesmo me perguntando quem poderia ser, eu não dei qualquer sinal de que estava ouvindo. Não sei, mas depois de deitar, parecia que meu corpo se recusava a entrar em movimento de novo tão cedo.

 - Dormindo – foi a resposta que Mello deu, menos grosso do que eu esperava. Ele sabia que eu estava acordado ainda, eu sei que sabia, e ficava grato por mesmo assim ele ter mentido. Eu não queria falar com outras pessoas agora.

 Não sei o que eles falaram a seguir. Minha mente vagueou por um momento, com algumas imagens a invadindo do nada, e eu tentando desesperadamente identificá-las antes que também do nada, sumissem.

 Não sabia direito o que eram, parecia que... Eu estava em um escritório, acho, e Roger estava lá também, assim como Mello. Mas era um Mello menor do que o de agora, mais novo, mesmo que igualmente inquieto. Estávamos os dois sentados em frente à mesa que nos separava do senhor, e o loiro não parava de bater os dedos na mesa, com a mais óbvia expressão de tédio e impaciência. Já eu... Acho que eu estava com alguma coisa nas mãos... Não estava conseguindo focar direito no que era, mas eu sei que estava prestando mais atenção naquilo do que no que Roger dizia com a feição séria. Consegui captar uma única frase, “Se vocês dois não mudarem de atitude...”, e só.

 Já era alguma coisa, certo?

Bom, pelo que parece eu não era muito fã de seguir regras, já que parecia que estava levando uma bela bronca naquela hora. E Mello também não.

 ...

 ... Ai...

Parece que lembrar de uma pequena cena como aquela era o suficiente para transformar a pressão na minha cabeça, em dolorosas pontadas... Tinha até medo de como seria ao lembrar de coisas maiores... Quero dizer, eu ia lembrar... Não ia?

 - Mello... – a princípio pensei em chamá-lo para perguntar onde estavam os comprimidos que o médico deu, nem lembrando que aquela garota poderia ainda estar lá, mas desisti. Eu não deveria ficar dependendo de remédios desse jeito. Se a dor aumentar mais eu tomo.

 Levantei, com a visão um pouco fora de foco por causa da pressão do braço, e encontrei ele próximo à porta. Parecia que tinha acabado de fechá-la.

 - O que foi? Precisa de alguma coisa? – ele veio até mim, mas não sem antes guardar alguma coisa que segurava, no bolso da calça.

 - Não... – segurei o impulso de fazer uma careta ao sentir outra forte pontada e falei a primeira coisa que me veio – Quem era?

 - Ah, era a Linda. Comparando com muitos que vivem aqui, ela até que é agradável de se conviver.

 Linda?

 O nome não me fazia lembrar nada. A voz também não tinha feito, disso eu tinha certeza. Então de onde surgiu aquela memória aleatória?

 Já que agora eu não ia mais conseguir dormir...

 - Posso tomar banho?

 - Matt, o quarto é seu também. Não precisa pedir – indicou meu braço direito com o olhar – Só tome cuidado pra não molhar a bandagem.

 Assenti uma vez e fui para o banheiro. No curto caminho para lá, porém, eu avistei algo em cima da cômoda que causou outra pontada na minha cabeça. Vou começar a interpretar isso como um sinal de quando alguma lembrança estiver próxima.

 Uma caixa? Era bonita, grande, enfeitada, e... Eu não sabia por que ela me passava a sensação de algo importante para se lembrar. Era minha? Acho que não, ela estava na cômoda ao lado da cama do Mello, afinal.

 Fiquei pensando no que deveria lembrar, enquanto sentia a água quente do chuveiro escorrer por todo o meu corpo. Os pequenos cortes ardiam um pouco em contato com a água e alguns dos hematomas que ainda persistiam em ficar eu já nem lembrava que existiam. Disseram que eu tinha sido assaltado, e isso, eu agradecia por não lembrar. Não faço questão de lembrar de alguém que me deixou assim, muito obrigado.

 Aquela caixa devia significar alguma coisa... Será que era um presente? Ou ele a tinha comprado?... Mas se fosse algo assim tão comum, por que eu sentia aquele ímpeto tão grande de lembrar?

 Aproveitei o efeito relaxante que a água quente e o vapor causavam e tentei forçar a memória.

 A caixa... Presente? É, era um presente... A terceira gaveta da minha cômoda... Ahn? O que tinha a gaveta?... Eu tinha comprado algo... Para Mello. Por algum motivo eu tinha certeza disso, mas o motivo...

 ...

 ... Era porque... Porque...

 “Matt, você não vai acreditar no que L me deu!”

 ...

 “Aqui. Pegue um e desfaça essa cara de depressão”

 ...

 Senti as paredes rodarem por um momento e o chão faltar ao mesmo tempo que me veio a resposta para aquilo.

 Tentei me apoiar, mas não deu certo. Caí sentado no chão molhado. Doeu. Fez barulho. E logo em seguida um loiro alarmado abriu com força a porta perguntando se estava tudo bem.

 - Matt! Matt! O que... Você está bem?! – ele parou rápido o fluxo de água e agachou à minha frente. Tive a impressão de ter visto seu rosto ficar um pouco vermelho, mas ignorei.

 Fiquei olhando pra ele tentando encontrar minha voz, que parecia ter fugido com aquele tombo. Agora eu entendia porque sentia que era importante lembrar daquilo.

 - Matt! – ele repetiu, cada vez mais alarmado.

 Consegui enfim falar.

 - Hoje... É o seu aniversário.


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Notas finais do capítulo

E então?