Memória escrita por Guardian


Capítulo 7
Bolo de Chocolate




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- Então é isso – o médico de Matt falava com Roger a caminho da porta do quarto, prontos para sair daqui. Matt estava dormindo e eu estava quase, deitado de maneira bastante confortável no sofá cor de creme ao lado de sua cama. Já estava escuro lá fora – Caso a dor no braço ou na cabeça tornem-se muito fortes, dê dois comprimidos. Deve ser o bastante.

 Alguns dias haviam se passado desde que... Bom, podemos dizer que houve algum progresso nesses poucos dias. Primeiro porque ontem mesmo chegou a notícia de que os imbecis que assaltaram o Matt foram presos ao dirigirem bêbados e baterem em um carro da polícia. Concluíram que eram os mesmos caras quando conferiram com a descrição que algumas pessoas na rua fizeram dos “homens que sumiram junto com um garoto ruivo carregado de sacolas”.

 E é isso que chamamos de uma força policial eficiente! Eles precisam que os caras literalmente caiam na frente deles para poderem fazer algo. Fala sério!

 E segundo... Eh, Matt ainda não se lembrava de nada, mas pelo menos agora eu conseguia conversar com ele. Ele não parecia mais assustado, não deixava transparecer, melhor dizendo. Às vezes eu conseguia ver “algo” nos seus olhos, como uma apreensão, podia até dizer que era medo. Mas então, era como se nos conhecessemos pela primeira vez, mesmo que para apenas um dos lados, e apesar dele parecer ter se assustado na primeira vez que eu... Ahn, agi como de costume, estávamos muito bem. Ou tão bem quanto a situação permitia.

 Mas é claro, né?! Já tínhamos formado uma amizade antes!

 E após esses dias, o médico disse que Matt estava pronto para receber alta. Ele iria sair daqui amanhã, e estava ao mesmo tempo feliz e apreensivo com isso.

 Ficava me perguntando como era o orfanato e coisas assim. Chegou a perguntar uma vez o por que de viver em um orfanato, mas isso eu não soube responder. Nós nunca conversamos sobre... O passado e o que nos levou a mudar para a Wammy’s. Agora que eu penso nisso... Por que será que Matt foi pra lá? Dependendo do que for, talvez não seja algo tão ruim assim ele ter esquecido.

 Eu bem que gostaria de poder.

 De qualquer forma, assim que ele acordasse amanhã de manhã, estaria enfim livre daquele hospital de ar deprimente e poderia ver com seus próprios olhos como era a Wammy’s.

 Amanhã...

 Eu sabia que dia era.

 Roger também, mas nenhum de nós comentou nada com Matt.

 Porque estava parecido demais, e Roger sabia o que já tinha acontecido nessa data, e o que a situação atual me faria lembrar.

 Era inevitável.

 Amanhã era o dia que era o motivo de eu ter deliciosos chocolates suíços em cima da minha mesa, em segurança no meu quarto.

 Era o meu aniversário.

 Cada vez mais meus olhos pareciam pesar, e aos poucos eles foram me vencendo e fechando. Não pude evitar os sonhos, as lembranças que escaparam do meu subconsciente então.

 A ruptura daquilo tudo aconteceu no dia do meu aniversário de 7 anos.

 Eu não tive uma festa nem nada assim. Eu não fazia questão e nem tinha como fazer uma, afinal. Minha mãe parecia bem melhor, não perguntava mais quem eu era nem chorava fazia quase três dias já, e eu estava... Não sabia o que predominava, o alívio ou a alegria. Mas eu fiquei definitivamente feliz quando ela anunciou que iria fazer um bolo para mim naquele dia. Bolo de chocolate. Meu favorito.

 Meu pai havia saído já fazia algumas horas e deveria estar de volta a tempo de cortar o bolo. Não me importava toda aquela história de “parabéns”, o que eu queria era comer o chocolate logo, e aquilo apenas atrasava. Além do mais, eu nunca sabia o que fazer enquanto os outros cantavam. Eu batia palmas junto ou ficava quieto até acabar? Deixando isso de lado, eu suspeitava que meu pai tinha saído para me comprar um presente. Ou pelo menos era o que eu esperava. Eu estava fazendo 7 anos, oras!

 - Mihael, venha me ajudar aqui – minha mãe chamou da cozinhha. Eu pulei do sofá, sem desligar a TV, e fui até lá.

 - Raspe esse chocolate e coloque nessa vasilha – ela me estendeu uma barra enorme de chocolate ao leite e uma vasilha de vidro. Coloquei os dois em cima da mesa e comecei a trabalhar. Talvez muitos não considerassem sensato entregar uma faca para uma criança, principalmente uma criança agitada como eu, mas eu não iria me cortar nem nada assim. Eu tinha que raspar o chocolate para fazer a calda do bolo.

 Era bem difícil vencer a tentação largar a faca e morder com vontade aquela barra que parecia tão deliciosa, mas... Não, era por uma causa maior. Continuei raspando.

 Mas...

 Era meu aniversário.

 Eu era uma criança.

 Por que pensaria que as coisas continuariam dando tão certo por mais tempo?

 Foi muito rápido.

 Em um momento minha mãe estava cantarolando algo, fazendo coro com a música que tocava na TV da sala ainda ligada, e no outro ela estava parada na minha frente, com um batedor de claras em uma mão,  me olhando de maneira confusa.

 Uma confusão que infelizmente eu conhecia muito bem.

 - O que está fazendo? – ela perguntou ainda com o mesmo olhar.

 - Você pediu para eu raspar o chocolate – estendi a vasilha já parcialmente cheia, deixando a faca e o chocolate quase no fim em cima da mesa.

 - Não, eu quero saber... – e então sua face transformou-se sem aviso algum, em furiosa, transtornada, e ela balançou violentamente o objeto de metal em sua mão em minha direção – Quem é você e o que está fazendo na minha casa?!

 Eu me assustei com o movimento repentino.

 O batedor não me atingiu, mas acertou a vasilha que eu tinha em mãos.

 Quebrou antes mesmo de atingir o chão.

 Foram muitas coisas de uma só vez. O cheiro forte do chocolate que se espalhou pelo chão; a respiração pesada da minha mãe, que mantinha a expressão alucinada e o utensílio na mão; um ardor do lado direito do meu corpo, onde um caco de vidro acertou antes de cair no chão; as lágrimas que começavam a acumular nos meus olhos, no início por causa da dor do corte, e depois pela consciência que se formava em mim, do que tinha acabado de acontecer.

 Minha mãe pareceu não se importar. Ou ainda não percebia que quem estava à sua frente era seu filho.

 Não estava tudo bem afinal. Os últimos três dias deviam ter sido o que chamam de calmaria que anuncia a tempestade ou qualquer outra frase de efeito que as pessoas gostam de usar.

 O que aconteceu depois disso parece uma grande neblina para mim.

 Eu sei que depois daquela primeira, ela usou mais duas, se não três, vezes o batedor de claras, e que eu saí de perto dela antes que mais alguma coisa me acertasse. Sei também que não deu muito tempo meu pai chegou em casa, com uma caixa com papel de embrulho em mãos, e estacou frente à cena com a qual se deparou: minha mãe com os cabelos bagunçados e expressão alucinada, a cozinha toda suja de chocolate e cheia de vidro quebrado no chão, e eu no canto oposto de onde ela estava, com os olhos vermelhos e sangue escorrendo de uma mancha feita na minha camiseta.

 Quase uma semana depois do meu aniversário, eu me vi entrando na Wammy’s pela primeira vez.

 Minha mãe havia sido levada para uma clínica psiquiátrica, com o prognóstico de um grande distúribio mental.

 E meu pai havia me abandonado.

 Não tenho certeza do que o levou a fazer isso, a única coisa que ele me disse antes de me entregar para um senhor de nome Watari foi um “Eu não posso mais...” derrotado, e então foi embora e eu nunca mais o vi.

 Ele se lembrava de mim, ele sabia quem eu era. E mesmo assim me deixou.

 Ele tinha sido fraco.


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Notas finais do capítulo

E então? :3
Gente, um ÓTIMO final de ano para vocês, um MARAVILHOSO Ano Novo, e... Nos vemos aqui de novo ano que vem *------*