Era o meu primeiro dia trabalhando na horta de Jeb e pelo jeito os humanos ao meu redor não estavam alheios a esse fato também, eles me encaravam muito. Felizmente, as expressões eram em sua maioria apenas curiosas, eram poucos os que alguma vez demostraram hostilidade quanto a minha permanência aqui - tudo isso, claro, graças a Peg.

-Ei, Sunny. Kyle. - Lilly, que só agora percebi que começava a trabalhar próximo a mim, nos saudou com um sorriso simpático, porém ainda com aquela expressão tristonha...

Ela sempre estava triste, Lamentei mentalmente me sentindo culpada.

-Bom dia Lilly! - Respondi baixinho sem querer deixar de falar com ela. Eu havia gostado de Lilly e sentia que por uma alma ter assassinado tão horrivelmente o namorado dela, eu estava em débito com ela.

Kyle, por sua vez, apenas acenou pra ela sério – Ele estava assim desde que acordamos e eu realmente estou tentando não pensar que o motivo tenha sido nossa proximidade na noite anterior... Aquilo não havia sido um erro, havia? Por que ele estaria assim tão calado hoje? Era como se ele estivesse realmente concentrado em algo ou apenas zangado...

Balancei a cabeça, tentando parar de pensar em coisas que não me levariam a nada e me foquei em Jeb vindo até mim segurando alguns instrumentos que usaríamos no trabalho.

-Tome garota. - Ele disse piscando todo animado, dando pra mim uma pá. Eu sorri minimamente pra Jeb para logo depois inspecionar minha pá, concluindo rapidamente que eu teria mesmo um trabalhão pra usar aquilo.

Jeb deu outra pá para Lilly e Kyle pegou uma picareta, não demorou muito e começamos a trabalhar no chão duro e seco.

O trabalho que eu deveria fazer deveria ser fácil, principalmente por eu estar compartilhando essa tarefa com Lilly, mas assim que eu comecei a revirar os pedaços de terra que Kyle quebrava antes de nós, senti que aquilo estava além de mim – Mesmo assim, me obriguei a tentar fazer o meu trabalho ou sobrecarregaria Lilly e Jeb.

A pá que eu manuseava era muito pesada pra mim e eu ficava cada vez mais cansada e frustrada ao olhar pro lado e ver que Lilly nem ao menos parecia estar incomodada com o esforço ainda.

Vamos Luz do Sol! Um, dois, três – Cave!

A minha tentativa de me obrigar a continuar estava ficando ridícula – Em menos de cinco minutos eu estava ensopada de suor e arfando por ar enquanto todos nem ao menos estavam suando.

-Sunny, você tá legal? - Lilly sussurrou pra mim preocupada. Como não tinha ar suficiente pra responder, apenas assenti com a cabeça, tentando dar um sorriso que passasse que eu estava bem. Lilly pareceu hesitar, mas não parou muito pra pensar sobre isso, pois Jeb já estava terminando e tínhamos que continuar.

Um, dois, três... Não desista Luz do Sol!

Meus braços pareciam que iriam apenas desgrudar do meu corpo e cair a qualquer momento e minhas pernas bambeavam enquanto eu lutava para que elas se movessem, mas eu tinha que continuar.

Na minha frente, vi Kyle tirando a camisa já ensopada de suor e me distraí, observando as gotinhas de suor descendo lentamente pelos músculos fortes das costas dele... Eu queria tocá-lo, traçar o caminho que as gotinhas faziam com a ponta do meu dedo e....

-Sunny? - A voz de Lilly me despertou, agora mais alta que antes e eu percebi que havia parado e me recostado a minha pá enquanto observava Kyle. Que vergonha! O que eu estava pensando?

-Oh, desculpe Lilly. - Respondi ofegante e me forcei a continuar. Lilly não continuou, ficou apenas me observando enquanto eu travava uma batalha contra a pá, tentando levantar seu peso. Senti meu equilíbrio falhar um pouco e quase caí, não fosse a mão de Lilly.

-Sunny, você vai desmaiar a qualquer momento! Isso deve estar muito pesado pra você... Acho que deveria parar. - Ela disse. A menção da palavra desmaiar, Kyle virou rapidamente e agora estava me observando também, como e esperasse que eu realmente desmaiasse. Meus olhos baixaram rapidamente, eu estava muito envergonhada pelo que havia acabado de pensar em relação a ele.

-Não, estou bem. Eu quero continuar, eu consigo. - Disse sem nunca parar de tentar mover os pedaços irregulares de solo.

-Sunny, é melhor descansar um pouco. - Jeb intercedeu e eu imaginei a quanto tempo ele me observava.

-Não, eu consigo. - Repeti, tentando convencer a mim mesma.

Para meu total desfortúnio, meu corpo não concordava comigo - Quando tentei novamente levantar a pá, ela venceu a luta e dessa vez todos os meus sentidos hesitaram e tudo começou a ficar escuro.

-Droga! - Ouvi vagamente Kyle xingar e braços fortes me segurando, impedindo a dor da colisão do meu corpo com o solo duro chegar e então tudo se apagou de vez.

...

-Ela está demorando muito pra acordar, Doc! - A voz impaciente de Kyle reclamava, me trazendo de volta a consciência.

Ah, não!... Eu havia mesmo desmaiado, não é?

-Espere. Ela logo vai acordar. - Doc respondeu com sua voz calmante.

-Paciência! Precisa de um tempo pra que o remédio faça efeito. - Ian replicou. Me apressei a abrir os olhos antes que Kyle tivesse a chance de responder o irmão.

-Kyle? O que aconteceu? - Perguntei, minha voz totalmente fraca. Kyle se aproximou mais do meu catre e segurou minha mão, percebi que ele estava um pouco hesitante ao estabelecer o contato entre nós.

-Sunny?! Você está bem? - Ele perguntou preocupado.

-Sim. - Respondi rapidamente por reflexo e franzi os lábios. - Como vim parar aqui?

A expressão preocupada de Kyle se fora junto com o toque de sua mão e repentinamente ele estava muito, muito zangado. Doc se adiantou em responder.

-Você desmaiou. Se esforçou muito e tanto o calor quanto o cansaço foram demais para que aguentasse. Kyle teve que te carregar até aqui. - Doc explicou. Olhei novamente pra Kyle, prestes a gradecê-lo pro ter me trazido, mas ele ainda estava com aquela feição de raiva.

-Por que não disse que estava cansada, Sunny? Teríamos entendido! - Kyle reclamou, sua expressão fechada fazia com que as palavras dele soassem como uma acusação e eu me encolhi.

-Desculpe. Eu pensei que conseguiria aguentar... - Sussurrei embaraçada.

-Você não pode se esforçar tanto! Você desmaiou de exaustão droga! - Kyle disse levantando a voz e dessa vez eu tive que recuar, assustada. Ian se aproximou mais do meu catre, o criotanque de Peg sempre em suas mãos.

-Não grite! Você está assustando ela, imbecil! - Ian gritou de volta pra Kyle e os dois se encararam. Meus olhos arregalaram com a súbita tensão na sala.

-Oh não!... - Eu gemi baixinho.

Queria fazer algo para dissipar aquela tensão, mas ainda estava meio grogue e lenta pra conseguir pensar direito e estar magoada por Kyle ter gritado comigo não me deixava em melhor estado. Doc também não gostou do rumo que essa conversa levava.

-Hmm... Kyle, você deveria voltar ao trabalho ... Cuidaremos de Sunny até ela melhorar. - Doc ofereceu.

Olhando o corpo tenso de Kyle, eu realmente achei que ele iria discutir, mas então os olhos dele encontraram os meus por um segundo e então ele assentiu pra Doc e simplesmente saiu do hospital sem nem ao menos dizer uma palavra.

Tão logo os ruídos baixos dos passos de Kyle desapareceram, as lágrimas que embaçavam minha visão rolaram uma atrás da outra e logo eu estava soluçando em meio ao choro.

Kyle estava zangado comigo porque eu era uma fraca, eu sabia. Ele havia gostado de Jodi quando ela havia habitado esse corpo, mas Jodi não era como eu – Ela era corajosa e mentalmente forte, ela nunca tentaria ultrapassar os limites de seu corpo, ela apenas discutiria para que alguém fizesse o trabalho por ela e... eu não podia fazer isso. Eu não tinha o direito de pedir que alguém faça algo por mim, eu nem ao menos deveria ser tolerada pelos humanos!

Eu estava em dívida com essas pessoas e não podia nem ao menos trabalhar o suficiente para ser útil, fazer algo de bom pra eles!

-Hmm... Está tudo bem agora, não chore. - Doc disse meio desajeitado, não sabendo muito o como reagir as minhas lagrimas.

-Me d-d-desculpe. Eu q-queria muito poder ajudar, eu não q-queria causar problemas... - Eu gaguejei. Ian se sentou no catre ao meu lado.

-Ei, calminha aí, Sunny. Ninguém esta te culpando por ter desmaiado. - Ian me assegurou, mas eu não pude acreditar, a prova de que isso não era verdade ainda doía ao ser lembrada.

-Mas Kyle... - Eu comecei sem consegui terminar, os soluços ficando mais altos. Ian bufou.

-Kyle estava apenas preocupado. Ele sempre fica um pouco mais nervoso quando se preocupa. - Doc explicou.

Até que fazia sentido o que Doc falava... Uma lembrança me veio a mente – Uma vez em que Ian, Jodi e Kyle haviam saído para acampar e o Ian havia desaparecido pela floresta a noite. Kyle ficou muito preocupado com o irmão, mas ao encontrá-lo se descontrolou e brigou feio com ele por horas a fio. Talvez ele só esteja preocupado, enfim. Talvez ele não me odeie, só esteja de mau humor hoje.... Por minha culpa, ainda assim.

-Eu sei, Doc. Obrigada. - Eu disse, minha voz ainda irregular. Me ajeitei um pouco para poder sentar e a sala rodou um pouco com o movimento brusco.

-Eu deveria voltar ao trabalho agora. - Disse regularizando minha voz e sentindo a necessidade de me fazer útil.

-Não, você não pode. Vai ficar aqui e descansar. Não sei como Jeb te colocou pra fazer aquele trabalho... - Doc disse num tom de repreensão.

-Jeb achou que eu daria conta, afinal estava dividindo a tarefa com Lilly...- Murmurei, mas de repente as palavras de Doc se fizeram sentido em meu cérebro. - Eu estou presa no hospital de novo? Eu tenho que ajudar! Eu tenho que trabalhar, Doc!

A risada de Ian ao meu lado me assustou um pouco.

-Ah, vocês almas... Estava sentindo falta desse altruísmo! Me pergunto como será quando Peg voltar... - A voz de Ian foi ficando triste e morrendo no final da frase, me fazendo esquecer por um minuto sobre Doc e o trabalho.

-Ian, vai ficar tudo bem. Peg não vai ficar zangada quando você a trouxer de volta. - Eu disse, já sabendo a causa da tristeza de Ian afinal, ele sempre esteve assim desde que eu cheguei.

-Eu realmente espero que sim... - Ele murmurou, se mexendo incomodado.

O tempo passou rapidamente enquanto Ian e eu conversávamos, um tentando consolar o outro – Ian me dizia que tudo ia se acertar com Kyle e eu afirmava a Ian que tudo iria da certo com Peg. Logo, já era noite e a luz azul baça da lanterna foi acesa para que Doc continuasse seus estudos. Começava a sentir meu estomago reclamar, quando um vulto alto apareceu na porta do hospital e meu coração parou por alguns segundos. Kyle parou na porta, parecendo mais cuidadoso que nunca e me encarou por um tempo antes de realmente entrar e vir até mim. Ian ainda ao meu lado observava calmamente.

-Achei que estaria com fome. Vim te levar até a cozinha. - Kyle disse ainda sem encontrar meu olhar.

Assenti rapidamente e murmurei uma despedida a Doc e Ian, o ultimo me deu uma aceno de encorajamento.

Segui Kyle, andando em silencio a alguns passos atrás dele. Era difícil não tropeçar nessa escuridão, eu estava sendo duplamente cuidadosa quanto a isso, mas quando estávamos no que eu pensava ser a metade do caminho, não pude deixar de esbarrar em Kyle quando ele parou bruscamente e se virou pra mim, a tempo de conseguir segurar meus braços pra que eu não caísse.

-Desculpa. - Ele disse, me segurando. Eu não podia enxergar nada além de seu vulto escuro então não sabia se ele ainda estava bravo comigo.

-Tudo bem. - Eu sussurrei num tom quase inaudível.

-Não, eu quero dizer... Desculpa por antes, quando eu gritei com você. - Ele disse e meu coração disparou, me deixando uns segundos sem palavras.

-N-não tem problema... - Eu gaguejei, surpresa. Era raro Kyle pedir desculpas por algo, o que fazia o gesto ser ainda mais emocionante pra mim.

-Eu estava apenas preocupado e... Eu estava um pouco bravo hoje de manhã, acabei explodindo, me desculpe. - Ele disse, me fazendo lembrar de seu temperamento hoje cedo.

-Por quê você estava bravo? - Perguntei, a escuridão me deu coragem. O suspiro de Kyle tão perto me fez arrepiar, mas eu tentei ignorar meu corpo.

-É... Difícil pra mim, com você e Jodi. Eu sinto que estou traindo ela toda vez que eu quero me aproximar mais de você... É confuso. - Ele explicou.

Confusão. Essa era uma boa palavra para o que eu sentia – Felicidade por saber que Kyle era tentado a me tratar de uma maneira mais intima? Tristeza porque ele ainda pertencia a Jodi? Eu não sabia.

-Mas eu sei que não devo descontar isso em você, Sunny. Você sempre foi uma boa garota, sempre cooperou comigo e foi muito boa pra mim. - Ele falava enquanto a mão dele encontrava meu queixo, levantando minha cabeça.

Seus lábios tocaram gentilmente minha testa e eu novamente estremeci. Eu precisava tocar Kyle, precisava beijá-lo mais do que nunca. Em vez disso, me limitei a passar os braços em torno da cintura dele e encostar minha cabeça em seu peito. Eu queria desesperadamente dizer a Kyle que eu o amava, mas isso era claramente o errado a se fazer nessa circunstancia.

-Tudo bem, Kyle. Eu entendo. - Eu o assegurei.

-Me desculpe, eu vou arranjar um jeito de lidar com isso. - Ele prometeu, apertando o braço a minha volta.

-Está tudo bem, pode contar com minha ajuda para o que precisar. - Eu disse, movimentando minhas mãos pelo braço dele tentando confortá-lo, sentindo como a pele dele arrepiou com isso. Kyle se separou de mim e pegou minha mão, e começamos novamente a caminhar.

-Obrigado. - Ele agradeceu suavemente.

...

Acabávamos a nossa comida enquanto conversávamos com Jeb quando um garoto entrou correndo na cozinha.

-Tio Jeb! Voltamos! Trouxemos a Peg!