Metamorfose escrita por Mia Elle


Capítulo 2
Capítulo I




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“Do you have the time to listen to me whine

about nothing and everything all at once?”

- Basket Case – Green Day

Um fino raio de sol invadia o quarto, até então escuro, penetrando por uma pequena falha nas venezianas, e iluminava o cômodo, nos permitindo enxergar os pôsteres nas paredes e os livros e roupas no chão. E o garoto adormecido na cama de solteiro, embrulhado em muitas cobertas para proteger-lhe do frio que fazia naquele início de ano.

Subitamente uma música alta invadiu o local, e logo percebemos que ela vinha do celular do garoto. Este gemeu embaixo das cobertas e esticou sua mão para desligar o despertador. Permaneceu em total silêncio por alguns minutos, acredito que se conformando em acordar tão cedo em um sábado frio como aquele. Por fim, jogou as cobertas para o lado e sentiu-se arrepiar com o frio que tocou sua pele. Sentou-se na cama, espreguiçando-se e bocejando, levantando logo em seguida. Pisou sem querer em uma caneta que jazia no chão, machucando a planta dos pés e soltando um palavrão. Para sua própria segurança, dirigiu-se rapidamente ao interruptor de luz, iluminando o local agora por completo.

Sentiu os olhos arderem pelo contato súbito com a luz, e os fechou por um momento, até que estes se acostumassem. Atravessou o quarto e abriu a porta do guarda-roupa, pensando no que seria apropriado vestir numa ocasião como aquela. Depois de procurar seu jeans preto pelo guarda-roupa todo e acabar encontrando-o embaixo da cama, por fim, ele deixou o quarto, com a mochila nas costas. Fez sua higiene matinal, engoliu algumas bolachas e deixou um bilhete para que sua mãe, que ainda dormia, soubesse que ele já havia saído.

Sabia que estava atrasado e nem por isso caminhou mais rápido até o carro, onde ligou a música e, calmamente, acendeu um cigarro, que tragou enquanto observava o mapa que imprimira da internet, tentando memorizá-lo e descobrir o melhor caminho para a Casa Saint Martin para portadores de HIV. Por fim apagou o cigarro e ligou o carro, sabendo que não poderia se dar ao luxo de se atrasar mais.

A St. Martin ficava a cerca de quinze minutos do centro da cidade, portanto não demorou tanto para que o garoto chegasse lá. Durante todo o caminho fez o que andara fazendo desde que recebera sua sentença: se condenar por aquele pequeno momento de falta de controle. Tudo bem que Iero o estivera provocando com aquelas roupas justas e aqueles trejeitos afeminados todos, enfim. Sem contar os comentários que fazia e aqueles garotos como ele indo buscá-lo no colégio. Ele não tinha que agüentar toda aquela viadagem no seu colégio, afinal.

E bem, como é que seria esperado reagir a um garoto gay que faz insinuações a respeito de sua sexualidade? E que... Por deus, como ele odiava pensar nisso... O beija, sem seu consentimento? Esperavam o que? Que ele dissesse que gostara disso e queria mais? Não, não mesmo.

Isso realmente explicava sua reação. Mas não justificava. Ele podia ter respirado fundo e não ter feito nada, mas ele e seu maldito pavio curto tinham que entrar em ação logo naquele momento, e ele tinha que espancar o garoto até que um monitor aparecesse e os separassem. E a maldita bicha tinha que alegar agressão moral e física e processá-lo. E por tudo isso, agora ele tinha que trabalhar naquela casa de veados aidéticos todos os sábados durante dois anos.

Estacionou na frente do lugar que, segundo o mapa, deveria ser a tal St. Martin. Era uma casa grande, de esquina, com um jardim bem cuidado e muitas janelas. Era amarelo claro e exibia janelas em um tom de marrom avermelhado, da mesma cor dos portões que a cercavam. Uma pequena placa fixada na grama do jardim indicava que aquela era realmente a casa que Gerard procurava.

Olhou em seu relógio de pulso, que indicava serem nove e quinze. Ele estava quinze minutos atrasado. Respirou fundo e abriu a porta do veículo, permitindo que o ar frio da manhã queimasse-lhe a face. Depois de trancar o carro, caminhou a passos lentos até o pequeno portão de ferro que estava entreaberto. Atravessou o jardim, reparando em um homem que cortava algumas folhas de um arbusto utilizando uma tesoura de poda. Era alto e magro e tinha a cabeça raspada, aparentava ter uns cinqüenta e poucos anos. Enquanto perguntava-se se seria aquele um voluntário ou um paciente, este lhe sorriu e desejou bom-dia, ao que foi respondido por um frio acenar de cabeça.

Quando finalmente chegou à porta, apertou a campainha, esperando que alguém viesse atendê-lo, mesmo que soubesse que era provável que a porta estivesse destrancada. Alguns momentos depois ouviu o barulho de passos apressados do outro lado, e por fim a porta se abriu, revelando uma mulher um tanto quanto peculiar.

Tinha estatura mediana e era magra, seus cabelos eram lisos e cortados em um modelo channel, em um tom de vermelho vinho e suas roupas eram um tanto estampadas e coloridas demais para alguém de sua idade – cerca de sessenta anos, Gerard achava. Usava um avental multicolorido, no qual enxugava as mãos freneticamente. Sua expressão era séria, mas nem por isso antipática.

- Pois não? – disse unindo as sobrancelhas.

- Bom dia, a senhora deve ser a Sra. Lee, correto? – a mulher assentiu, ainda confusa – muito prazer, sou Gerard Way.

Estava tentando ser simpático e diplomático, afinal teria que passar ali o resto dos sábados de sua adolescência, mas sua vontade mesmo era de mandá-la à merda.

- Oh, é claro! O jovem Sr. Way, como pude esquecer-me? – sorriu doce, saindo da frente da porta para que Gerard pudesse entrar, e fazendo sinal para que este o fizesse.

A Sra. Lee adorava quando a justiça lhe mandava esses pequenos delinqüentes juvenis para ajudar-lhe com aqueles doentes. Eles sempre saiam completamente mudados e vendo a vida de uma forma diferente.

Adentraram a sala da casa, que era mobiliada com poltronas que não combinavam entre si, e decorada com quadros que pareciam ter sido pintados por crianças de primário. Ora, devia ter sido a casa de uma família rica, a julgar pela arquitetura. Havia duas escadas que ligavam o térreo ao primeiro andar, cada uma por um lado da sala, formando quase que um círculo. Entre as duas estava uma pequena porta de madeira, que era para onde eles se encaminhavam. Enquanto a Sr. Lee abria a porta, Gerard pôde ler na plaquinha em sua frente “coordenação”.

A sala era pequena e tinha apenas uma janela, o que a tornava abafada também. Era ocupada quase que completamente por uma escrivaninha e alguns arquivos, sobrando espaço somente para as cadeiras, que tinham de ser empurradas para que fosse possível caminhar ali dentro.

A Sra. Lee deu a volta na mesa e pegou uma pasta um tanto amarelada de dentro de uma gaveta. Enquanto procurava uma folha específica dentro dela, disse:

- Você terá de assinar isso todos os sábados ao entrar e ao sair, para comprovar que cumpriu todas as suas quinhentas horas – entregou-lhe a folha e uma caneta – aqui. Preencha o cabeçalho e depois a hora e o seu nome na primeira linha. Quando sair escreve a segunda, e assim por diante.

Gerard assentiu, sentando-se em uma das cadeiras para visitante, a fim de começar a preencher seu formulário.

- Eu tenho muitas coisas a fazer, mas de qualquer forma mandarei alguém aqui para te mostrar a casa e dizer-te o que fazer – deixou então a sala, fechando a porta em seguida.

Gerard passou alguns minutos preenchendo seu nome, endereço, telefone e afins na pequena folha. Enquanto terminava de escrever a hora, ouviu a porta abrir e uma voz conhecida dizer-lhe bom dia. Maldição. Respirou fundo, e terminou de escrever, convencendo a si mesmo que não iria se exaltar. Ergueu então os olhos, encontrando os castanho-esverdeados de Frank Iero a sua frente.

- Bom dia, Iero.

Frank sorriu inocentemente. Podia ver que Gerard tinha ódio no olhar, mas a coisa que menos queria do garoto é que este o odiasse pelo que fizera. Ele podia ter agüentado aquilo calado se quisesse, mas Gerard precisava aprender que o mundo não girava ao redor dele. Que, na verdade, existia um mundo muito maior e diferente lá fora que ele não conhecia, e precisava conhecer. E aceitar as diferenças que existem nesse mundo, sem se incomodar com o que as pessoas fazem de suas vidas. Ele queria que Gerard visse que não importava se é homem ou mulher, branco ou negro, gordo ou magro ou o que fosse, somos todos seres humanos, suscetíveis a erros e acertos, e, principalmente, abençoados com o livre arbítrio. E ele achava que nada melhor para fazer Gerard aprender isso do que um grande tapa na cara como esse.

Mal sabia ele que estava totalmente certo.

- Terminou de preencher o formulário? – Gerard concordou com a cabeça, ainda fuzilando o menor com os olhos – então me dê aqui para que eu possa guardá-lo.

Gerard não se deu ao trabalho de esticar a mão para entregar-lhe a folha, então Frank inclinou-se por cima deste para fazê-lo. Deu a volta na mesa então, abrindo a gaveta e começando a guardar a folha na pasta.

- Não sabia que era voluntário aqui – Gerard comentou, observando um ponto fixo na parede.

- Desde os quatorze anos – Frank respondeu distraidamente enquanto guardava a pasta na gaveta e a fechava – sabe como funciona o local?

- Você tem alguma coisa a ver com esse ter sido o lugar escolhido para o cumprimento da minha pena? – Gerard virou a cabeça rapidamente para encarar o menor, as sobrancelhas unidas.

Frank riu gostosamente.

- É claro que não, Way. Agora, você sabe como funciona o local? – sustentou o olhar de Gerard, sorrindo de canto de boca.

- Não – o maior respondeu secamente, virando a cabeça para o ponto fixo na parede novamente.

Frank respirou fundo e arrastou a cadeira para que pudesse sentar.

- A St. Martin existe a cerca de trinta anos, e existe por dois motivos. Inicialmente por que na época em que foi criada, o preconceito para com os portadores de HIV era muito maior, por ser considerada uma doença existente apenas entre os homossexuais – Gerard grunhiu algo como ‘tsc’ e Frank o ignorou, continuando sua explicação – o que fazia com que quem se descobrisse soro positivo perdesse seu emprego, família, amigos... A proposta era que estes pudessem vir morar aqui. Hoje em dia apenas os antigos moradores aqui permanecem, com algumas exceções, é claro, que são aquelas pessoas que estão bem o bastante para deixar o hospital, mas não o suficiente para viverem sozinhas, sem o apoio da família, que é algo que acontece bastante...

- Mas – Gerard o interrompeu – quando você diz os “antigos moradores” quer dizer que eles são velhos? Quero dizer, pessoas com essa doença não deveriam morrer cedo e tudo mais?

Frank balançou negativamente a cabeça.

- A expectativa de vida de alguém com o vírus HIV que faça o tratamento corretamente é de cerca de 65 anos – Gerard ergueu as sobrancelhas, visivelmente espantado – como eu ia dizendo, agora a casa é utilizada pelos pacientes que vivem no interior e precisam vir para cá durante alguns dias para comparecer ao médico. Estes, para que não precisem pagar um hotel, podem passar essas noites na casa - Frank parou por um instante antes de continuar, explicando os horários da casa e outros pequenos detalhes como esse – Agora vou te mostrar a casa. A princípio lhe parecerá um tanto confusa, mas com o tempo se acostuma.

Gerard levantou a contragosto. Tinha absorvido metade, talvez nem isso, do que o menino falara até agora. Ia ser um trabalho realmente entediante. E irritante, visto que além de agüentar Frank Iero na escola todos os dias, teria de agüentá-lo ali, aos sábados.

Deixaram o escritório abafado e sentiram o choque térmico ao adentrar a sala espaçosa e bem ventilada. Frank caminhou até o centro da sala, onde algumas pessoas ocupavam poltronas, e Gerard o seguiu. O mais novo então o apresentou para algumas das pessoas que ocupavam os lugares nas poltronas: uma mulher que trazia seu filho de cinco anos todos os meses para o médico e se hospedava na casa; Terry, que aparentava ter uns sessenta anos e tinha cara de alguém fraco, e um outro senhor que atendia por Jack, mas este era um tanto mais novo, só morava ali pois não tinha quem cuidasse dele em sua família.

Frank mostrou então a cozinha onde algumas pessoas já começavam a preparar o almoço e logo depois subiram ao primeiro e ao segundo andar, onde Gerard foi apresentado a inúmeros outros moradores e voluntários. Estes andares eram ocupados por cerca de dez quartos cada, sendo que alguns eram equipados com todo o equipamento hospitalar.

- Mas afinal, o que eu terei de fazer aqui? – Gerard perguntou finalmente, emburrado e cansado de andar para lá e para cá fingindo estar feliz para todas aquelas pessoas.

- Tudo. Ajuda a limpar, lavar, cozinhar, dar remédios, cuidar deles, atender a porta... Mas principalmente, dar carinho. Você vê gente como o Jack, ninguém da família quer assumir o encargo, então só vem visitá-lo cerca de uma vez por mês. O nosso maior trabalho é fazê-los sentirem-se amados. 

Gerard deixou escapar uma risada, mas ao ver a cara de Frank disfarçou-a. Aparentemente ele teria de vir aqui todos os sábados para fazer com que malditos veados sentissem-se amados, mesmo que fosse por culpa deles ter aquela doença. Era irônico e era idiota. Mas ele não podia fazer nada a esse respeito, então apenas concordou com a cabeça com Frank que começou a tagarelar novamente sobre outro aspecto qualquer do funcionamento da maldita instituição.

Por volta das três horas Gerard estava dando graças a Deus que o seu turno de trabalho escravo havia acabado. Pediu a Frank que o levasse de volta a salinha da coordenação para que pudesse assinar a folha.

- Olha Way, sei que não está nada feliz com o que acontece aqui, mas se tem de fazê-lo, trate de fazer direito. Então pelo menos finja melhor estar se divertindo – Frank disse, duro, logo após fechar a porta do pequeno escritório.

Gerard franziu o cenho e bufou. Abriu a boca para responder, mas desistiu e murmurou:

- Foda-se.

Assinou rapidamente folha e sorriu falsamente para Frank, antes de atravessar a sala a passos largos, ignorando as despedidas das pessoas nas poltronas. Estava tão apressado em sair do local que acabou trombando no mesmo homem que podava o arbusto pela manhã. Este aparentemente não vira o garoto também, por que os dois quase foram ao chão.

- Desculpe – o outro murmurou, a cabeça baixa.

- Está tudo ok – Gerard disse, controlando-se para não descontar a raiva toda em alguém que nada tinha a ver com isso – O senhor está bem?

O homem lhe sorriu em concordância e esticou a mão direita:

- Sou Stefan, e você é...?

Gerard encarou a mão do homem sem se mexer. O preconceito lhe impedia de cumprimentá-lo e a educação lhe alertava para fazê-lo. Fechou os olhos e respirou fundo, esticando sua mão também e tocando a do homem, porém soltando-a rápido.

- Prazer, sou Gerard.

- Oh, o garoto Frank me falou sobre você – o homem sorriu doce. Assim como a Sra. Lee, ele gostava de ver a mudança nos rapazes que vinham ajudar por ali – é um prazer conhecê-lo também, Gerard.

Então fez menção em passar pela porta, ao que Gerard abriu caminho e dirigiu-se até seu carro, rapidamente. Queria sair o mais rápido possível dali.


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Notas finais do capítulo

Bom,ta aí o primeiro capítulo. (: