Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 5
Encontramos perigo, um acampamento e novos amigos




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Icei meu corpo sobre a borda com ajuda e me levantei com dificuldade, sentindo o transportador vibrar sob meus pés enquanto ganhava velocidade na descida. Não tive tempo de me situar, apenas senti um peso enorme ser jogado contra meu peito e meu corpo cair de cima do transportador, acertando o chão com força.

– Senhora Adele! – me levantei de súbito vendo o que restara do transportador acertar uma rocha e sair rolando – Ai! – fiz uma careta ao perceber como minhas costas ardiam.

– Rápido, garota. – o garoto que havia me salvado estava ao meu lado, me puxando para que eu me levantasse. Estava coberto de areia, assim como eu, e tinha uma arma grande presa nas costas.

– A senhora Adele... – eu quase gritei – Ela ficou... – apontei desesperada para onde o transportador tinha caído – Ela...

– Sinto muito. – não parecia sentir – Vamos. – ele agarrou minha mão e começou a correr para longe. Vi que os robôs ainda lutavam entre si, mas agora havia pessoas chegando à luta, usando armas e atirando bombas contra os robôs inimigos.

– Rhes! Rhes pode salvá-la! – o procurei no meio da fumaça e das pessoas, tropeçando enquanto o garoto me arrastava, mas não conseguia avistá-lo. Sacudi o braço, me livrando do aperto, e o garoto ruivo se virou para mim – Não vejo Rhes.

– Quem é Rhes? – ele perguntou devagar.

– O comandante. Ele se machucou, não consigo encontrá-lo.

– Um robô? – eu afirmei com a cabeça – Não temos tempo. – ele apontou um grupo de pessoas que estavam no mesmo transportador que eu correndo para longe – Meus amigos vão deter os robôs para que possamos fugir, mas eles não vão durar muito tempo. O robô pode se cuidar sozinho. – me estendeu a mão e eu aceitei, não sem hesitar.

– Ele pode morrer. – falei, por fim, baixinho.

– Robôs não morrem. Pessoas morrem. Mas se servir para salvar alguém, que seja.

Corremos entre a fumaça, tentando passar despercebidos pelos inimigos, torcendo para que nenhuma bala nos acertasse, até finalmente nos afastarmos do conflito. Alguns metros à nossa frente eu podia ver um grupo correndo, entre eles pessoas usando armas como a do meu companheiro. O deserto se estendia ao nosso redor em uma imensidão árida, coberto de rochas de todos os tamanhos. O grupo começou a escalar um caminho entre as pedras, quando chequei na base a maior parte já havia sumido por uma fenda na parte esquerda do morro. Ondas de calor subiam do chão e meus músculos fraquejavam a cada passo, o garoto escalava à minha frente com agilidade, sem olhar para trás. Comecei a escalar lentamente atrás dele, me concentrando em não dar nenhum passo em falso, mas cada vez que a subida parecia mais difícil, até que me deixei cair sobre o cascalho solto.

– Não podemos correr o risco de um inimigo nos ver, vamos. – a voz veio de cima.

– Estou tentando. – lancei um olhar irritado, afastando o cabelo da minha testa suada.

– Não, está parada.

Eu me levantei, com vontade de socá-lo, fechando os punhos.

– Eu estou tentando. – apertei os lábios – Você não sabe, é muito fácil para você. A última pessoa que me conheceu antes... antes disso tudo... acaba de morrer. Eu... – sufoquei as lágrimas que teimavam em brotar nos meus olhos – Eu nem sei o que estou fazendo.

Ele me olhou com a mesma expressão de antes:

– Então você vai esperar que te encontrem e te matem? A não ser que todos que você conheça tenham morrido sem luta, não acho que seja justo. – seus olhos escuros fitaram algo ao longe e voltaram para mim – Se vai desistir por causa de pernas doídas, ao menos não arrisque a vida dos outros.

Eu o olhei, subitamente envergonhada. Estava sendo uma covarde completa. Tinha me decidido a ser forte por Rhes, por Tia Sybil e por meus pais, mas no primeiro obstáculo já estava pronta para desistir, enquanto o garoto ruivo diante de mim, só alguns anos mais velho, permanecia firme. Ele continuou a subida e eu o segui, em silêncio. Atravessamos a fenda no lado esquerdo do morro e descemos para um vale estreito atrás do monte, onde um acampamento se erguia. Várias tendas de pano se espalhavam em fileiras e aqui e ali pequenas fogueiras estavam arrumadas para as noites gélidas no deserto. Pessoas caminhavam nas bordas com armas presas às costas: homens, mulheres, alguns parecendo mais novos do que eu. Uma tenda maior com várias camas improvisadas ficava no centro e ali havia um aglomerado de pessoas e choros, deduzi que era um tipo de enfermaria. Caminhamos em direção a ela.

– Sou Deidre. Como se chama? – apressei meu passo para me manter ao lado dele.

– Erwan. Olhe, é melhor que fique aqui, assim evita se perder e alguém pode te ajudar com seus machucados.

Sentei-me em uma das macas, perguntando antes que Erwan tivesse a chance de se afastar:

– Onde estão os R.E.S. daqui?

– Não temos robôs, lutamos por nós mesmos. – respondeu, orgulhoso.

– Por quê? – franzi o cenho - Não estamos todos indo para o mesmo lugar?

– Os robôs planejam trancafiar o máximo de humanos que puderem em uma base até que a guerra termine. – balançou a cabeça, como se fosse uma idéia estúpida - E nós, bem, nós estamos nos juntando a outros grupos de humanos errantes para lutar.

– Não seria mais fácil deixar isso para os robôs? Quero dizer, eles sabem o modo certo de se fazer as coisas.

– Robôs não sabem o modo certo de fazer as coisas, sabem o modo com menos riscos. – Erwan apertou os lábios, olhando para longe - Nem sempre isso significa certo. Na verdade, acho que quase nunca.

Ele acenou e se afastou antes que eu pudesse responder quando uma moça alta chegou perto de mim perguntando como me sentia. “Só cansada” respondi, e ela trouxe uma bacia com água e um pano molhado para que eu me lavasse precariamente – o suficiente para tirar a areia e o suor dos meus cabelos. Depois disso me deu algo para comer – nada das malditas pílulas intragáveis – e me mostrou onde eu poderia dormir. Com o passar do tempo os novos refugiados foram encontrando seus lugares e o acampamento começou a silenciar. Estava anoitecendo, e junto com a noite vinha o frio cortante. Eu me enrolei o máximo que pude nos panos grossos que me ofereceram e tentei dormir, mas meu pensamento não deixava: pensava em Adele, em Tia Sybil, em meus pais, mas principalmente em Rhes. Estava preocupada com ele, mas evitei pensar no pior. As últimas palavras de Erwan, no entanto, martelavam na minha cabeça. Com certeza Rhes havia deixado muitas pessoas para trás porque seria arriscado demais tentar salvá-las. Mas isso era o certo? Eu não sabia. Nunca tinha sido muito de ponderar os riscos, eu simplesmente fazia o que achava que deveria ser feito. Estava quase adormecendo quando nova agitação tomou conta do acampamento. “Eles chegaram!” uma criança gritou e passou por mim correndo. Levantei e saí para o ar frio noturno, correndo descalça na rocha nua em direção ao grupo que chegava. Não era pequeno, mas bem menor do que eu lembrava de ter visto lutando. Não foi fácil procurar com tantas pessoas recebendo e abraçando os conhecidos que haviam retornado, enquanto outras começavam a aceitar que alguns nunca voltariam, mas meus olhos avistaram o uniforme e eu corri na direção dele, saltando nos seus braços.

– Rhes! – afundei minha cabeça no peito dele, sorrindo - Finalmente, você está bem?

– Nada que não possa ser consertado. – ele afagou minha cabeça e me afastou pelos ombros – Já foi cuidada? – afirmei com a cabeça – E como se sente? – seus olhos cinzentos percorreram minha face.

– Melhor. A senhora Adele... ela... – não queria continuar – Eu vou ser forte, Rhes, prometo. – acho que era a primeira vez que eu prometia algo sem que me pedissem, e sem que fosse mentira.

– Por favor, Deidre, só me prometa que não vai explodir nada. Nunca mais. – Rhes me olhou com seriedade.

– Foi por uma boa causa! – falei, rindo, mas logo baixei os olhos – Mesmo que não tenha adiantado.

– Você tentou. – ele acariciou meu ombro – Mas nunca mais, prometa.

– Eu prometo. – não sei se Rhes queria isso como evidência para me culpar mais tarde ou se os detectores dele tinham se danificado na batalha, porque eu sabia que assim que algo precisasse ser explodido eu o faria, mesmo que nos cinco segundos que duraram essa promessa eu realmente tenha pensado em cumpri-la.

Não foi preciso muito tempo para que me acostumasse com o acampamento. Fazia só uma semana desde que havíamos chegado, mas eu já me sentia bastante confortável por ali. Diferente de no transportador, todos ali tinham um trabalho, até mesmo os menores. Havia muita coisa para ser feita, desde consertar tendas, montar vigília, acender fogo, até distribuir alimentos. Nas noites menos frias eu podia me deitar ao ar livre e ficar por horas olhando o céu. Lembrava-me das noites na cidade, em que ia pro jardim com meus pais e ficávamos contando histórias.

“Mãe, por que as histórias antigas falam tanto das estrelas?”

Ela dizia que antigamente ainda podíamos vê-las, mas que hoje, com tantas luzes espalhadas, ficava difícil. Meu pai me colocava nos braços e girava, dizendo que um dia íamos acampar no deserto, mas que eu teria que tomar cuidado para não me cegar com o brilho das estrelas. Minha mãe desatava a rir e acertava tapas nele, dizendo para deixar de ser bobo, que acabaria me deixando assustada. Quando finalmente pude vê-las, percebi que meus pais estavam errados. As estrelas ali eram muito mais bonitas do que eu poderia imaginar, mesmo com os exageros de meu pai. Ficava ali lembrando os momentos felizes com eles e só entrava na tenda quando o frio começava a ser insuportável.

Durante os primeiros dias eu acompanhava Rhes para todos os lados, mas logo ele começou a se ocupar com o conserto do único transportador que havia restado e discussões tensas com o grupo líder do acampamento. Logo um dos adultos me escalou como ajudante, transformando boa parte de meus dias em um vai-e-vem pelo acampamento, carregando pacotes, comida, água, ferramentas, e no meu tempo livre estava tão cansada que evitava pensar em qualquer coisa triste ou preocupante, tentava me preocupar apenas com coisas agradáveis. Nos últimos dias tinham me dado a tarefa de abastecer o fogo das tendas – apesar de Rhes não ter ficado muito feliz com a novidade – e eu precisava atravessar todo o acampamento com um galão de combustível à medida que escurecia.

– Você é a do robô, não é? – a garota loira que acabara de entrar no depósito arrastava um galão. Perguntei-me se estaria falando comigo, mas não havia mais ninguém ali.

– Desculpe?

– Erwan me falou seu nome... É... Deidre, sim? – antes que eu pudesse responder ela avançou e apertou minha mão – Eu sou Edda.

Analisei-a enquanto chacoalhava minha mão: era uma garota pequena e magra, como eu, com grandes olhos castanhos claros e um corte de cabelo masculino. Ela se afastou tão rápido como se aproximou e começou a erguer o galão.

– Me ajude aqui, sim? Preciso levar isso para a área depois das tendas. – a ajudei e começamos a caminhar para o local indicado, enquanto a maioria das pessoas começava a se esconder do frio noturno.

– Você é filha do chanceler ou algo assim?

– Como? – me espantei – Não! Por quê?

– Tem um comandante como seu protetor.

– Ah. Rhes não é meu protetor. Ele só... cuida de mim.

– Não é a mesma coisa? – Edda ergueu uma sobrancelha e largou o galão no chão. Estávamos em área aberta com várias máquinas velhas amontoadas, algumas completamente enferrujadas, pareciam pequenos transportadores com apenas um vagão. – Onde se meteram aqueles estúpidos? Danton!

– Vocês vão queimar essas coisas? – apontei com a cabeça para as máquinas. Edda gargalhou alto, tropeçando no galão e quase derrubando todo o combustível.

Essas coisas são nosso meio de transporte.

– Você poderia rir mais alto, Edda? Acho que ainda não acordou os mortos. – um garoto de cabelos cacheados sorria em pé sobre uma das velharias.

– Ah, Danton, vá se catar. Eu trouxe o combustível, quando vamos sair?

– Não vamos mais. – ele saltou para o chão com agilidade - Zahra machucou o pé no último treino.

– Deixamos Zahra.

– Ela é a única que sabe dirigir. – o garoto se aproximou e percebi que era uma cabeça mais alto que nós duas.

Eu sei dirigir. – Edda estreitou os olhos - Por que nunca me deixam dirigir?

– Só porque acertou o acelerador e não matou ninguém não quer dizer que saiba dirigir, Edda. – riu, afagando a cabeça dela, que revirou os olhos – Quem é a garota? – ele se virou para mim.

– Ah! – Edda me puxou pelo braço – Deidre, Danton, Danton, Deidre! – acenei timidamente para o garoto, que sorriu de volta – Já que não vamos ter que sair hoje, que tal comer uns cookies que achei?

– “Uns cookies que achou”? Você ainda tenta se enganar... Mas não posso, hoje é dia de vigília para mim. – Danton apontou com a cabeça na direção de um rifle encostado em um dos transportes.

– Boa sorte então, soldado! – Edda prestou continência sorrindo e virou-se, me arrastando de volta para as tendas. A em que entramos era espaçosa, com um aquecedor ligado no centro rodeado de pedaços de tecido grosso e várias caixas amontoadas em um canto. Edda remexeu em uma delas enquanto eu me sentava.

– Durmo aqui com minha tia. – virou-se com um pacote, enfiando um cookie na boca – De onde você veio? – me estendeu os biscoitos.

– Hm, antes de vir parar aqui eu morava em Nantes. – aceitei um cookie – Mas já morei em Annecy do Norte... Com meus pais.

– Ah. – ela me olhou, parecendo compreender – Não me lembro de quando morei em uma cidade. Aparentemente a em que eu morava foi pelos ares levando meus pais junto e desde então somos só eu e Tia Berthe.

– Não se lembra deles?

– Não. – Edda enfiou outro cookie na boca – Não é todo mundo que tem a sorte do Danton por aqui. De ainda ter uma família completa, quero dizer.

– Deve ser horrível... – falei sem perceber, lembrando como às vezes me desesperara por pensar estar esquecendo o rosto dos meus pais.

– Ah, não, eu não sei nada sobre eles. Berthe nunca me contou. Quando eu perguntava, ela me falava que tínhamos mais com que nos preocupar, que a vida aqui tinha problemas demais para que eu perdesse meu tempo pensando em algo que nunca vai mudar.

– Mas você nunca teve nem curiosidade de saber? – não compreendia como uma pessoa podia viver sem lembrança alguma dos pais e ainda assim ser tão sorridente e otimista quanto Edda, falando sobre o assunto como se não lhe ferisse nem um pouco.

– Por um tempo – Edda partiu um dos cookies ao meio com um estalo – Mas Berthe está certa, basta olhar pro Erwan. Se ele ficasse se lamuriando por aí, e ele tem bons motivos para isso, não seria o que é hoje. Zahra também, apesar de ninguém saber como ela veio parar aqui. Mais? – apontou o pacote quase vazio na minha direção.

– Não, obrigada. Que aconteceu com o Erwan?

– Acho até que é parecido com o que aconteceu com você... A diferença é que ele conseguiu fugir com a família, mas eles foram morrendo até que Erwan fosse o único vivo. Ou algo assim, faz um bom tempo que ele não comenta nada a respeito. – Edda levantou-se, pegando duas capas grossas e puídas, me oferecendo uma – E Zahra, bem... Toda vez que alguém tenta arrancar algo dela, Erwan se altera e exige que parem de perturbá-la. Se aqueles dois não tem um romance, eu não sei nem mais quem sou. – e deu um risinho baixo, fazendo com que parecesse alguma espécie de fada travessa. Colocamos as capas e saímos da tenda, pude sentir o ar gelado da noite vir contra meu rosto, bagunçando meus cabelos e deixando uma sensação gostosa na minha pele. Ficamos caminhando pelo acampamento enquanto Edda me entretinha com suas histórias, fazendo gestos exagerados e saltando de um lado para o outro imitando os ataques e perseguições que tinham sofrido, ou até mesmo a reação da sua tia no dia em que quase explodiu a tenda dos combustíveis. Tinha uma curiosidade enorme a respeito de robôs, de modo que vivia me pedindo para lhe contar sobre Tia Sybil e Rhes – além de sempre vir comigo nas tardes livres em que eu tentava passar algum tempo com ele (o que geralmente era em vão, com Rhes sempre ocupado em alguma discussão sobre dividir os recursos com os lideres do acampamento).

Logo fui apresentada ao resto do grupo, apesar de não me sentir parte dele. Edda e Danton eram bastante afetivos, o último não demorando muito a me tratar como uma irmã mais nova, bagunçando meus cabelos e fazendo alguma piada sobre minhas sardas (e as de Erwan, sendo que ele normalmente respondia com alguma grosseria que Danton ignorava). Zahra era uma garota tão alta quanto os meninos, de cachos longos e escuros e olhos verdes afiados que pareciam estar sempre julgando tudo ao seu redor. Se Erwan não me tratava com afeto, mas ao menos uma polidez agradável, Zahra nem isso. Suas respostas eram curtas e secas, e ela só falava com a maioria das pessoas quando se dirigiam a ela. As únicas vezes em que podia vê-la sorrindo eram durante os treinos com Erwan.

Na maioria das noites Danton nos convidava para jantar junto à sua família – eu, Erwan e Zahra, o que era divertido. Sentávamos do lado de fora da tenda – apenas eu e Danton na maioria das vezes, Erwan aparecendo de vez em quando -, ouvindo o fogo estalar, sentindo o calor e o cheiro do combustível consumindo-se, enquanto comíamos e ouvíamos o pai dele contar histórias. Mesmo que fosse por pouco tempo, era quase como se ter uma família novamente. Nas vezes em que Erwan resolvia comparecer, os pais de Danton o recebiam como um filho.

– Ei, sardento, senta aqui! – Danton abriu um sorriso para a sombra que se aproximava e abriu uma lata com o laser do abridor, atirando-a em seguida.

– Se gastasse toda essa energia em treinamento seria mais útil para nós. – o ruivo pegou a lata no ar, sentando-se ao lado do amigo.

– Depois você reclama quando dizem que ruivos são enfezados. – Danton manteve o sorriso bobo quando Erwan revirou os olhos.

– Não dá pra conversar a sério com você... Oi, Deidre – acenou para mim. Respondi com um sorriso fraco.

– Eu estava pensado: que tal se Deidre fosse com a gente na próxima missão?

– Ela só vai servir de peso morto. E já temos você. – me encolhi diante da resposta do ruivo.

– Ah, Erwan, sua delicadeza me deixa encantado... Mas Deidre não é um peso morto, ela sobreviveu até aqui, e ainda mostrou certa habilidade com explosivos. – Erwan me olhou e eu afirmei com a cabeça, um tanto hesitante – Além disso, ela é sociável.

– Não estamos indo a uma festa. – Erwan espetou uma salsicha da lata e levou à boca.

– Certo, então, só vou comentar a idéia com Edda... Talvez ela acabe insistindo um pouco com você, por isso-

– Tudo bem, Danton. – Erwan o fuzilou com os olhos – Deidre pode ir conosco. Vou ao banheiro. – se levantou e saiu, deixando a lata pra trás.

– Não tem problema – eu disse para Danton quando ficamos a sós – Não me importo de não ir, posso ficar com o Rhes e-

– Está surda? Erwan acabou de dizer que pode ir.

– Bem – sorri – todos nós sabemos o quanto Edda pode ser insistente. Não quero atrapalhar a missão de vocês.

– Ah, não nos leve tão a sério. Missão é só um jeito curto e ostentoso de dizer que vamos invadir um depósito velho durante a noite.

– Se é assim... – dei de ombros.

– E não me faça pedir a Edda para insistir que vá. – ele me puxou para perto dele, rindo.

Sentia o agradável calor das chamas sobre o meu rosto e sorri. Agradável principalmente porque a poucos metros de distância a noite trazia o intenso frio, imaginei se não poderia colocar meu saco de dormir para perto da fogueira. Não que Rhes não fosse me arrastar de volta para a tenda, pregando sobre como a saúde dos humanos é fraca. Ficaria pouco entusiasmado com os eventos do dia seguinte, ainda menos com a minha participação neles.

– Mal posso esperar. – falei – O que exatamente vocês fazem nessas missões?

– Você sabe, coletamos alguns mantimentos, tentamos descobrir novidades sobre até onde as garras daquelas latas velhas alcançam. Essas coisas. – Danton soava despreocupado, mas seus olhos por um tempo se perderam nas chamas da fogueira. A madeira crepitava e logo teria que ser reposta se quiséssemos afastar o frio por mais tempo.

– As latas velhas, são robôs como Rhes não é? - perguntei abraçando os joelhos e os usando como apoio para minha cabeça. – Ele não fala comigo sobre o assunto, mas não sou burra. Sei que alguma coisa muito ruim está acontecendo e que agora alguns robôs se voltaram contra os humanos que trabalharam intensamente para torná-los perfeitos.

Danton se espreguiçou.

– Acho que a perfeição paga seu preço, não é? – disse bocejando – É claro que o que passam para nós não é muita coisa, mas sabemos que estão forçando uma guerra civil ao tomar o poder e que até agora não foram confrontados por ninguém. Talvez por isso tenham tempo livre para nos caçar.

– Mas nem todas as cidades estão sofrendo ataques. Tulle, por exemplo, e a capital. Ainda existem pessoas lá e mesmo assim, se fossem atacadas, saberíamos.

– Será? Você verá amanhã quando chegarmos a Tulle, parecerá um lugar completamente normal e ainda assim é como se toda a cidade segurasse a respiração, as pessoas simplesmente parecem não saber o que está acontecendo e se o sabem, o ignoram na tentativa de passarem despercebidas e não serem vistas como ameaça pelos robôs.

– É por isso que Erwan odeia Rhes? Mas ele é completamente diferente! Está fazendo o possível para nos proteger. – minha voz saia esganiçada.

Danton pousou sua mão sobre minha cabeça.

– Não o entenda mal, ele acredita que os objetivos do seu amigo apenas nos levam a ser neutralizados de uma forma ou de outra, escondidos em buracos como baratas assustadas, esperando que alguém tome alguma iniciativa. Nem Erwan nem ninguém aqui quer isso, rumores sobre uma base onde todos os refugiados se encontram e se preparam para o contra-ataque são ouvidos e dispersados e é para lá que Berthe vai nos guiar quando estivermos prontos para prosseguir.

– Mas é perigoso demais! Como esperam não ser interceptados no caminho?

– Se não parece certo robô hipocondríaco falando. – Danton riu. Tentei fechar a cara, mas a imagem dos sermões de Rhes me fez gargalhar.

– Não se preocupe, não se preocupe. O único perigo que enfrentaremos amanhã é o comando de Zahra.

– Zahra? - ele balançou a cabeça afirmativamente.

– Erwan a deixa mandar no restante dos integrantes, ou assim gostaria que pensássemos, é o único jeito dela não ficar resmungando sobre como somos estúpidos durante todo o caminho.

– Parece que eles sempre agem juntos. - respondi com pouco interesse, usando um espeto para revirar as brasas da fogueira – Não é como se Zahra apreciasse minha presença.

– Ela não demonstra gostar das pessoas, mas tente conhecê-la mais de perto, depois de algumas surras e xingamentos é capaz dela até responder quando você pergunta ‘como vai’. Só brincadeira. – acrescentou, quando viu meus olhos arregalados. - Acho que Erwan atravessou todo o deserto para se aliviar. – falou sonolento.

– Erwan e Zahra... Eles... Eles realmente têm alguma coisa? – havia achado algo muitíssimo interessante no chão para evitar o olhar de Danton, mas depois de alguns segundos de espera levantei a cabeça. Ele me encarava como se tivesse perguntado por que porcos não tinham asas, depois estendeu a mão para retirar um espeto cuja batata já mostrava sinais de carbonização, seus ombros tremendo de tanto rir.

– Eles? Você quer dizer, tipo abraços e beijos e palavras carinhosas? Foi Edda que disse isso, não foi? Ah Deidre, Edda apenas gosta de imaginar coisas fantasiosas que não fazem o mínimo sentido. Deve ser o excesso de sol em sua cabeça, ou superdosagem de hiperatividade, coisas assim. O único contato físico daqueles dois é durante os treinos, você já os viu treinando?

– Só de relance. - respondi, ocultando que o olhar fuzilante de Zahra tinha me mantido à distância, toda a sua postura se tornava ainda mais ofensiva quando treinava com Erwan e não tinha deixado de admirar seus movimentos ágeis.

– Aí está. Se tivesse não perguntaria essas coisas.

– Que coisas? – Erwan surgira ao meu lado, sentando-se no chão e olhando com interesse de Danton para mim. Virei o rosto para o lado oposto e agradeci mentalmente por Danton chamar sua atenção.

– Seu rato sardento! Como consegue surgir assim do nada? – Erwan o ignorou e um pequeno sorriso varreu seu rosto.

– Falei com Berthe, tudo certo para partirmos para Tulle amanhã. Seria bom começar a organizar as coisas, Danton, mais dois grupos voltaram hoje mais cedo e o que conseguiram foi muito pouco.

– Sim, senhor – respondeu Danton e ensaiou uma continência fazendo o ruivo revirar os olhos.

– Preciso levar alguma coisa também? – perguntei.

– A sorte que vem te mantendo viva até agora seria de bom uso. – fiz uma careta.

Conversamos pouco depois disso. Erwan tentou me explicar as tarefas de cada um naquelas missões, o que só reforçou minha inutilidade. Ao menos Zahra teria sua diversão. Danton já dormia encostado no ombro de Erwan quando me despedi baixinho e comecei o caminho para minha tenda. Na verdade eram apenas madeiras tortas com um tecido impermeável por cima que não ajudavam a afastar o frio, Rhes insistira para que dormisse no transportador que fora menos lesado no ataque de algumas semanas atrás, mas queria me sentir como todas aquelas pessoas que compartilhavam o acampamento. Foi na frente de sua tenda, vistosamente mais alinhada que a minha pelo fato de cada um ter que montar a sua, que parei. Rhes, assim como eu, preferira a companhia dos humanos e eu achava que aquela postura era também uma tentativa de se mostrar mais simpático para com os integrantes do acampamento, coisa que não estava dando muito certo. Queria entrar e conversar com ele, queria ouvir como seus dias tinham passado, se conseguira convencer os líderes do acampamento a serem razoáveis e deixarem ao menos as crianças sobre sua guarda, que apenas vê-lo correndo de um lugar para outro, ora discutindo sobre mantimentos, ora supervisionando os reparos no transportador não me agradava. Que sentia sua falta. Mas se entrasse, teria que contar sobre a missão, ou ele simplesmente leria minha mente como sempre fazia ou usaria um de seus dispositivos de reconhecimento de mentiras embutido e o descobriria de uma forma ou outra. E então me proibiria de ir e isso não mudaria meus planos. O fato de ter prometido para mim mesma que não mentiria mais para ele não ajudava. Por isso apenas girei nos calcanhares e fui ao encontro do meu gelado saco de dormir. Já falei que tenho uma tendência de me arrepender das minhas decisões?


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Notas finais do capítulo

Como prometido, capítulo extra essa semana!
Sei que é chatinho ficar batendo na mesma tecla, mas seria muito muito muito agradável se comentários fossem deixados nos capítulos. Não é algo que toma muito tempo e é a única forma de retorno que temos. Porque se não, nos esforçamos por meses para fazer uma história caprichada e quando chegamos aqui o feedback é o puro vácuo, nem idéia de quantas pessoas estão lendo temos :/
Passado o meu momento depressão... Como vocês puderam observar, tem gente nova na história, YEY! No more overdose de Rhes! E aí, o que acharam da nova galere?
- Lud.



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