Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 11
Lambendo as feridas




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Não lembro quanto tempo passei debruçada sobre o peito de Rhes, esperando que tudo aquilo fosse um pesadelo terrível e que a qualquer momento acordaria, sim, acordaria. Acordaria e lavaria meu rosto e quando levantasse a aba da minha tenda encontraria Rhes dando ordens para seus subordinados, a capa cinza a tremeluzir ao sabor do vento.  Fechei os olhos com força e esperei para que a realidade mudasse enquanto não estava olhando. Porque certamente iria mudar, tudo aquilo não poderia ser verdade. A terra abaixo do meu corpo tremeu violentamente e quando abri os olhos a única coisa que mudara era a enorme nuvem de fumaça e poeira que se erguia de Auch e bloqueava os primeiros raios solares da manhã. Apertei os olhos para tentar ver melhor através da cortina de poeira e percebi como estava difícil enxergar até poucos metros de distância, mas sabia que os transportadores deveriam estar a menos de um quilômetro para trás se Rhes havia tomado a rota certa. Senti uma onda de angústia atravessar meu corpo e com um longo suspiro quebrado por soluços aninhei-me contra o braço de Rhes. Então seria assim, se algum robô inimigo quisesse me matar estaria bem ali e não fugiria. Mas não foi um robô inimigo que me achou naquele campo destruído. No lugar disso uma figura agachou-se ao meu lado, bloqueando o sol. Senti dedos vacilantes tocarem meu pescoço acompanhados por uma respiração quase ofegante, depois silêncio. Talvez temesse não se concentrar o bastante para sentir minha pulsação. Quando senti o calor do sol batendo novamente contra meu rosto tentei abrir os olhos e mantê-los em foco.
            - Edda, aqui! Encontrei! – gritava Erwan juntando suas mãos como um alto-falante e depois acenando freneticamente na direção da cidade condenada. Baixou os olhos e encontrou os meus, um pequeno sorriso surgindo em seus lábios. Ajoelhou-se ao meu lado e me fitou.

- Como você está? – perguntou. Poderia fazer a mesma pergunta para ele se quisesse. Suas roupas estavam chamuscadas em algumas partes, rasgadas em outras e um corte abria-se em seu antebraço direito. O rosto não estava muito melhor. Uma camada de poeira cobria suas sardas e quando sorrira um filete de sangue brotara de um machucado no canto da boca. Parecia ter deixado horas difíceis para trás e mesmo assim virei o rosto na direção contrária e afundei na manga cinzenta do uniforme de Rhes.

- Deidre, está machucada? – a voz veio de trás das minhas costas e a ignorei. Desejei que fosse embora, que me deixasse em paz. Erwan deixou escapar um suspiro e pousou a mão em meu ombro a fim de virar-me em sua direção. O afastei com um safanão.
            - Quer parar de criancice? Precisamos ir. – estendeu o braço novamente, mas parou no meio do caminho.

 - Não toque em mim! – grasnei, a voz soou como a de uma estranha em meus ouvidos. Erwan se retraiu como se tivesse levado uma tapa no rosto e se levantou.

- Ótimo! Só não podemos ficar o dia inteiro esperando sua boa vontade de soltar um monte de metal retorcido!

Pus-me de pé num sobressalto e antes que pudesse perceber o que estava fazendo o empurrei para longe com todas as minhas forças.

- Cale a boca!- rugi, sentindo cada centímetro do meu corpo tomado pela raiva – Como você tem coragem de falar assim dele na minha frente? Logo você, que nunca chegará nem aos pés dele!

Avançava contra ele enquanto falava e quando tentei empurrá-lo mais uma vez a força deixou minhas pernas. Dei um passo trôpego em sua direção e se Erwan não tivesse me segurado teria caído contra o chão pedregoso. Quando senti seus braços fechando-se ao redor dos meus ombros a única reação que tive foi bater contra seu peito enquanto lágrimas lavavam meu rosto.

- Você não podia Erwan, você nunca poderia ter falado isso. Ele era tão mais – murmurei, afastando-o. Algo em meu rosto deve ter feito com que percebesse a verdade nas palavras, porque seus olhos escuros miraram o chão. Enfiei o pequeno chip que Rhes me dera no bolso da calça, quando o fiz minha mão roçou na velha fotografia dos meus pais. Engoli em seco imaginando quantas perdas ainda suportaria.

- Deidre? – Edda. Virei na direção de sua voz para encontrá-la parada a poucos metros de distância e uma expressão confusa no rosto. Olhou de Rhes para mim e novamente para Rhes, depois deu alguns passos em minha direção e percebi que mancava. Andei ao seu encontro e a deixei suportar o peso do meu corpo.

- Deidre. – ela sussurrou enquanto me abraçava com força, a mesma força que faltava em sua voz – Eu... Eu sinto muito.

Anui em silêncio, os olhos fixados em Rhes.

- Os outros...

Edda passou as mãos pelos cabelos curtos, o olhar tão perdido quanto o meu.

- Não sei. Erwan me encontrou antes de tudo explodir. – segurou minhas mãos entre as suas e o sangue seco tocou minha pele – Sabíamos que muitas pessoas ainda estavam lá, mas os robôs... Eles estavam tão próximos e em número tão superior.

- Quando acionaram a bomba a maioria foi pelos ares. – Erwan aproximou-se, sem olhar para mim. Edda parecia perto de se partir em pedaços, um corte feio rasgava sua testa coberta de fuligem.

- Berthe mandou que todos corressem para os transportadores, mas não a vimos depois. Nem Danton e sua família e Zahra também... – enxugou as lágrimas com a manga de sua blusa e deixou que Erwan a apoiasse. 

- Nós temos que ir. Reagrupar os sobreviventes, cuidar dos feridos e organizar os mantimentos, se é que algo sobrou. – o tom de voz do garoto era apático. Dei de ombros.

- Não posso ir agora.

- Mas Deidre, não sabemos se é seguro permanecer aqui. – interveio Edda, quase suplicando.

- Tenho que enterrá-lo.

- Ótimo, fique aqui então. – sibilou Erwan.

- E deixá-la aqui sozinha? – a garota o encarou incrédula – Não podemos, temos que ajudá-la.

- Não vou ficar aqui perdendo tempo enterrando um robô cujos iguais acabaram de massacrar crianças pequenas! – retrucou Erwan com rispidez – Tampouco você. Mal consegue se manter de pé, Edda.

- Vocês podem ir, os alcanço depois. – me dei por conta dizendo, ignorando a preocupação de Edda e a raiva de Erwan, lhes virei as costas e abaixei-me ao lado de Rhes.

- Não demore. – alertou Edda – Você também está num estado péssimo, Deidre.

          O sol já se erguia alto no céu quando comecei a enterrar Rhes. E não durou muito até que descobrisse ser impossível fazê-lo. O chão batido era resistente às minhas investidas e sangue brotava da pele debaixo das minhas unhas quebradas menos de meia hora depois. Enxuguei o suor da minha testa sem notar dor e engoli as lágrimas mais uma vez. Talvez Erwan estivesse certo e os robôs que nos atacaram fossem mesmo iguais a Rhes, mas ele era diferente de todos. Raspei a terra pedregosa e juntei a areia para cobrir o seu corpo. Parecia um cobertor vermelho. O nó na minha garganta voltou a se apertar quando apenas seu rosto permanecia de fora, encostei minha testa à sua e deixei as lágrimas lavarem nossos rostos poeirentos. Não achava que iria suportar mais aquilo. Os últimos grãos de areia caíram trêmulos sobre o rosto do meu amigo e finalmente estava pronta para me despedir. Levantei-me e meus olhos varreram o ambiente à procura de algo que julgava perdido. E ainda assim, atrás da maquinaria de irrigação, protegida pela sua sombra estava uma pequena flor do deserto desafiando toda a morte ao seu redor. A ergui sentindo uma estranha sensação de culpa ao arrancar suas raízes do solo pedregoso, também a ela não seria permitido viver. Por um momento segurei suas pétalas brancas contra minhas bochechas e fechei os olhos. Seu toque se assemelhava a puro veludo. Tive alguma dificuldade em posicioná-la de forma correta sobre o túmulo de Rhes, a areia parecia sempre fazer com que escorregasse para um dos lados. O vento jogava meus cabelos empapados de suor contra o rosto quando terminei, lembro de ficar algum tempo ali, apenas olhando para o túmulo de areia de Rhes sem saber ao certo o que fazer a seguir. Adeus meu querido amigo e obrigada por tudo. Cerrei os punhos com força e mordi os lábios até doer de verdade. Virar as costas foi a coisa mais difícil que já tinha feito até então e cada passo que me distanciava de Rhes parecia deixar uma parte de mim para trás.

          O suor descia minhas costas quando o contorno dos dois transportadores tornava-se cada vez mais próximo e finalmente podia enxergar as pessoas se amontoando. Era um grupo muito pequeno. Varri meus olhos sobre os rostos conhecidos e confirmei que do meu antigo grupo, do grupo de Rhes, só restaram sete adultos e quatro crianças. O grupo de Berthe parecia ter se saído ainda pior: das quarenta e cinco pessoas que viviam no acampamento quando chegamos talvez metade se acotovelasse para ter acesso a remédios. Os próprios subordinados de Rhes sentiram o golpe forte do ataque, um dos robôs estava faltando e os outros três estavam encostados no transportador mais próximo, membros faltavam e verdadeiros buracos pareciam ter sido abertos contra seus corpos. O robô elefante foi o único que levantou a cabeça quando me viu chegar e estava prestes a abrir a boca quando ouvi a voz de Edda e virei-me em sua direção.  Uma parte do nó na minha garganta se dissolveu quando meus olhos caíram sobre Danton que estava sendo cuidado por um Erwan com pouca paciência, mas visivelmente grato por vê-lo inteiro. Bem, mais ou menos inteiro.

- Quantas vezes vou ter que repetir? – a voz do moreno se levantava sobre as demais – Foi só um arranhão, me solte e cuide dos outros.

Como resposta Erwan arrancou a camisa por cima de sua cabeça para deixar exposto um feio corte que rasgava o torso de Danton na altura da clavícula até abaixo do umbigo. Os olhos negros do garoto ficaram durante alguns segundos fixados na ferida e seu semblante se fechou ainda mais.

- Já não basta chegar atrasado, ainda tem que vir cortado ao meio.

- Quase cortado ao meio, meu amigo, quase. E sinto muito por ter demorado tanto, não o escolhi voluntariamente.

Edda abraçou o rapaz pelos ombros e o puxou para trás da caixa sobre a qual estava sentado.

- Erwan só está feliz por ver que você está em segurança – falou entre os dentes - agora fique parado que precisamos limpar isso tudo.

A garota loira me lançou um sorriso quando me avistou e me puxou para seu lado. Danton estava a meio caminho de dizer uma saudação quando Erwan sem cerimônia despejou o conteúdo líquido do frasco que segurava sobre a crosta ensangüentada. Antes de conseguir morder o próprio punho palavrões escaparam de sua boca e encheram os ouvidos das pessoas mais próximas.

- E a sua família?- perguntei para Edda baixinho aproveitando a distração.

O rosto da minha amiga se iluminou por um momento.

- Estão todos bem, sorte é uma coisa que não falta a Danton. Agora, Deidre – segurou meu braço e me trouxe mais para perto – Zahra não chegou ainda.

- Ela vai chegar. – Edda deve ter notado a certeza na minha voz porque apenas anuiu séria e voltou a segurar Danton da melhor forma que pudesse. Algo me dizia que ela, com sua estrutura delicada, não teria muito sucesso nessa tarefa. Mas não poderia ficar para ajudá-la. Perguntei como estava sua perna e depois de garantir que não fora nada sério me despedi, prometendo que voltaria para que cuidassem das minhas próprias feridas. Agora que me acalmava as dores ficavam cada vez mais fortes, as pontas dos meus dedos estavam em carne viva e algo me dizia que se olhasse para baixo veria o tamanho do estrago. Só um pouco mais. Precisava me mostrar forte durante mais um tempo, depois teria tempo de sobra para me lamuriar sobre as minhas feridas.

- Preciso falar com vocês. – anunciei com voz firme quando cheguei à frente dos subordinados de Rhes. Se pudessem, tenho certeza que os três levantariam uma sobrancelha em interrogação.  

- E o que lhe diz que temos algo para falar com você, criança? – para minha surpresa a frase não veio do meu caro amigo robô elefante, no lugar disso a única robô entre eles descruzou os braços e me olhou de cima. Devolvi seu olhar sem vacilar. Não seria aquele ar de superioridade que me assustaria num dia como aquele. Minha mão direita sumiu nos bolsos da minha calça e segundos depois se abria na frente deles, com o chip negro brilhando contra o sol. Por um momento ela hesitou. Estendeu o braço em direção a minha mão, mas depois se conteve.

- Isso... Então ele se foi. – me perguntei se era possível que robôs também sentissem algo em relação a seu tipo. Rhes e Sybil com certeza eram capazes de sentir, mas era a primeira vez em que notava algo assim entre robôs. Mais tarde me envergonhei de pensar aquilo, afinal, Rhes fora seu comandante durante tanto tempo e lealdade era provavelmente um entre muito dos sentimentos que se desenvolvia enquanto se lutava lado a lado, anos a fio.

- Já imaginávamos isto, 520-S também não voltou. – o robô elefante nem se dava o trabalho de parecer sentido. Estendeu a mão à minha frente – Agora me dê este dispositivo.

Automaticamente fechei o punho e o fiz desaparecer no meu bolso. Encarei aqueles olhos escuros que pareciam lampejar de ódio.

- Quem você pensa que é? – descontrolou-se o robô, avançando na minha direção. Seu caminho foi bloqueado pela robô.

- 74-S ponha-se em seu lugar! – observei o rosto do robô elefante torcer-se de desagrado. 21-S, acho que era assim que se enumerava, era uma humanóide como todos os integrantes do grupo de Rhes. Soldados criados para guerrear e andar entre os humanos sem levantar suspeitas. Mas aquela figura que se erguia entre mim e o robô enfurecido provavelmente chamaria atenção se a visse passeando pelas ruas movimentadas de uma grande cidade. Não perdia em altura para nenhum dos outros, possuía ombros fortes e seus cabelos escuros eram curtos de uma forma que faziam os de Edda parecerem uma cascata sobre os ombros. A pele era pálida como a dos seus companheiros, aparentemente não se esperava que robôs mantivessem um bronzeado. Mesmo que não estivesse voltada para mim sabia que seus olhos acinzentados brilhavam desafiadoramente em direção ao outro robô. Este, com sua careca e feições pontiagudas parecia-se mais com um falcão cuja presa fora arrancada do bico.

- Diga-me como vou lhe devolver algo que nem te pertence? – perguntei por debaixo dos braços da robô. Sua ação foi mais rápida que esperava. Avançou sobre mim estendendo as mãos como garras e minha mão já se fechava sobre o sabre negro quando com pouco esforço 21-S parou seu avanço erguendo-o do chão antes que tocasse em mim. Com um som estrondoso segurou seu companheiro contra a parede de metal do transportador, as paredes retorcendo-se ao redor do corpo do robô elefante.

- Perdeu mesmo a noção do seu lugar. – anunciou, ainda erguendo-o a dois palmos do chão – Não encostarás na menina, ou já te esquecestes como Rhes era devotado a ela?

- Devoção que custou muito a ele, pelo que vejo. – arquejou, olhando para mim como se fosse capaz de me pulverizar ali mesmo.

- Não importa, ou se esqueceste também da nossa missão? – o terceiro robô fez-se ouvir. Segurava o braço direito como se este estivesse prestes a se soltar. Era o robô que passava a maior parte do tempo dentro da cabine de comando, traçando rotas e ajustando o sistema dos transportadores. Se antes o robô elefante contava com ele para fazer valer sua opinião, agora seu rosto tornava-se ainda mais sombrio.

- Não seguirei ordens de uma criança! - resmungou o robô, desvencilhando-se com muito esforço do aperto de 21-S. Lançou um último olhar sobre mim e desapareceu a largos passos.

 - Interações sociais não são um dos nossos traços mais marcantes. - desculpou-se a robô.

- Rhes dizia o mesmo. – falei, ignorando a tristeza que buscava me envolver novamente – Ele me deu o chip antes de... De...

- Se desativar. – completou o outro robô – Ou caiu diante dos inimigos?

Apertei os olhos enquanto tentava lembrar, a última vez em que falara com Rhes parecia pertencer à outra vida.

- Não, não. Foi atingido e mesmo assim me manteve em segurança, depois simplesmente se despediu – engoli as lágrimas – Como se soubesse o que aconteceria.

- É o nosso sistema, criança. Quando os danos são grandes demais ele é desativado e os dados que guardamos, destruídos para não cair em mãos erradas.

Olhei para 21-S, perguntando-me se poderia confiar nela. Fomos traídos. As palavras de Rhes soaram em meus ouvidos e seu semblante sério povoou a minha mente.

- Não sei como ativá-lo, nem quais informações guarda. Talvez pudesse me ajudar. – enfiei a minha mão no bolso dando um passo em sua direção. A robô recuou, seus olhos perdidos no horizonte.

- Não é meu e não será. – olhou para o companheiro que sobrara e ele afirmou – Não podemos ajudá-la, terás que descobrir sozinha.

- E, criança – acrescentou o outro robô quando me virava, seus cabelos castanhos estavam amarrados em um rabo de cavalo desorganizado que lentamente se desprendia – não deve sair por aí mostrando isto, nem ficar sozinha.

Anui sentindo que retiravam um peso das minhas costas.

- Se precisar de ajuda com o seu braço, tenho um amigo que pode ter as peças para o conserto. – sorri na direção dos dois decidindo que por enquanto confiaria neles.

Depois de passar a descrição de Danton me despedi deles com um aceno cansado. Só mais um pouco. Suspirei, me dando conta que me sentia anos mais velha, tão velha que a única coisa que desejava era deitar em uma cama e nunca mais acordar. O robô elefante sem dúvidas ainda me traria problemas e mesmo que aqueles dois se mostrassem simpáticos num primeiro momento, pareciam quase simpáticos demais. Decidi que não faria mal ficar em alerta.  Minha atenção foi atraída para uma pequena aglomeração de pessoas mais à frente. Formavam uma espécie de círculo e do centro dele vinham vozes exaltadas que enchiam todo o ar. Ótimo, como se nossa situação já não fosse ruim o bastante ainda arranjávamos tempo para brigas internas. Aproximei-me esgueirando entre as pessoas e pedindo desculpas repetidas. Com um alívio identifiquei a cabeleira de Zahra no meio do tumulto. E logo depois desejei que não estivesse ali, porque contra o sol do meio da tarde a lâmina do sabre de Zahra se erguia voltada para ninguém menos, ninguém mais que Berthe, a líder do acampamento.

A tia de Edda compartilhava com a sobrinha os cabelos loiros, mas os dela estavam sempre presos em um rabo de cavalo apertado para manter as mechas longe dos olhos. Sua vida militar se refletia também em seu corpo. Mesmo sendo esguia e de tamanho mediano, músculos definidos eram visíveis nos braços desnudos pela regata que usava. Os mesmos músculos também estavam definidos em todo o restante do seu corpo o que fazia com que sua aproximação assemelhasse a chegada de uma tempestade. Parte disso era por causa de sua fama de impetuosa e temperamental, fama que de fato a descrevia. O melhor a se fazer em relação à Berthe era balançar a cabeça em afirmação quando perguntava sua opinião sobre seus planos e evitá-la no restante do tempo. Principalmente quando acordava de mal humor. E mesmo que Edda insistisse que sua tia também tinha momentos em que demonstrava afeição eu passava a maior parte do tempo evitando cruzar o seu caminho. Principalmente por causa de Rhes, a quem ela na melhor das hipóteses tolerava sem ter um ataque de fúria. A única vez em que os vira interagindo socialmente fora na última noite no acampamento, mas tudo daquela noite parecia submerso em sentimentos aconchegantes e a vontade de se estar perto um do outro.

Agora, a única coisa que Berthe fazia era manter Zahra à distância com duas pequenas facas. Sempre que a garota investia Berthe bloqueava seu ataque sem revidar, o que só parecia deixar Zahra com mais raiva.

- Contra mim você não faz nada? – rugiu a garota, os olhos faiscando de ódio – Mas contra as pessoas que ficaram para trás tudo bem jogar uma bomba, não é mesmo?

Murmúrios agitados percorreram o círculo. Então fora Berthe quem acionara a bomba que matara metade do grupo e permitira a outra parte escapar em segurança. Era mais parecida com Rhes do que gostava de admitir. Zahra, entretanto, estava lívida. O cabelo sujo caía sobre os ombros, em um ponto estava incrustado de sangue seco e toda a sua roupa parecia coberta por uma fina camada de poeira de construções. Com um choque me perguntei se ela também havia sido atingida.

- Era a única saída, Zahra. – mesmo que fosse firme, a voz de Berthe não escondia o pesar – Se não o fizéssemos ninguém estaria vivo agora.

- Havia outras saídas, havia outros planos que poderiam ser usados, mas você preferiu jogar uma bomba na cara das pessoas que chamava de amigas! – os olhos verdes começavam a marejar e Zahra limpou as lágrimas antes que caíssem com um movimento ríspido da mão.

- Zahra, você sabe que eu daria tudo para que nada disso fosse preciso... – Berthe não tivera tempo para terminar antes que mais uma chuva de golpes caísse sobre ela. A mulher se defendia como podia, mas sua determinação em não revidar os golpes custaria sua vida se continuasse. Zahra parecia nem notar.

- Então eu te contarei o que eu vi! Vi um clarão e por alguns minutos meus ouvidos foram inúteis, não que tivesse que usá-los quando a parede do prédio partiu-se em pedaços e caiu sobre mim antes que pudesse ter qualquer reação.

Edda conseguira passar pela multidão e colocou uma mão sobre os ombros da amiga.

- Ninguém teve um dia fácil hoje Zahra. – tentou intervir.

A garota maior soltou-se de seu aperto num movimento brusco, seu rosto se contorceu e não tentou mais esconder as lágrimas.

- Não é sobre mim! – gritou olhando de Edda para Berthe – Eu fiquei para trás porque um grupo de crianças não conseguia acompanhar o resto e queria protegê-las. Tudo estava dando certo até que sua tia achou uma ótima idéia mandar todos pelos ares. Em um momento estava segurando duas mãozinhas e no próximo estávamos todos soterrados. Tive sorte porque uma pilastra suportou a grande maioria do peso do concreto, mas elas não... Elas estavam cobertas por uma pilha de destroços tão grande que não consegui remover nada. Ainda escuto seus gritos em meus ouvidos, Berthe, gritos que deveriam te assombrar para sempre!

Berthe calmamente prendeu as duas facas em seu cinto sobre o olhar confuso da garota.

- E por isso mereço morrer? – perguntou com os olhos firmes em Zahra – Mereço morrer porque tive que tomar a escolha que ninguém aqui conseguiria para salvar ao menos parte de vocês?

Quando Zahra não respondeu lhe virou as costas e as pessoas deram espaço para que passasse pelo círculo.

- Ótimo, Zahra, porque está mais do que na hora de você parar de se comportar como uma pirralha e aprender o preço que pagamos por estarmos vivos. Vocês todos passaram por um dia terrível, mais terrível para alguns que para outros, mas peço para que tenham coragem e sejam gratos por ainda viver. A raiva que sentimos deve ser direcionada para os monstros que nos atacaram e enquanto respirarmos devemos buscar vingança pelas vidas que perdemos hoje.  - parou e se virou para o pequeno grupo – Agora vão e cuidem de suas feridas porque precisamos organizar a partilha dos mantimentos e o quanto mais cedo nossos caminhos se separarem daquelas criaturas de aço, melhor.

A pequena multidão se dispersou, aparentando estar mais abatida que antes. Zahra permaneceu em silêncio, com o sabre ainda em riste. Edda tentava falar com ela, mas a garota não parecia ouvir.

- Zahra? – perguntei, sentindo a sua dor se dispersar e me envolver também. Seus olhos verdes miravam o chão arenoso. – Zahra, você não teve culpa.

Edda segurava a mão de Zahra e quando a olhei desviou os olhos para baixo, percebi que se culpava pelas ações da tia mais do que gostava de admitir. Balancei a cabeça em negação e dei um passo na direção delas, puxando as duas para um abraço longo.

- Vocês não podem se culpar pelo que está acontecendo – falei contra os cabelos cacheados de Zahra e senti sua resistência ir embora, foi como se derretesse contra meus ombros – Ninguém, ninguém deveria passar por um dia como esse e mesmo assim estamos vivas e ainda podemos fazer algo a respeito, não podemos?

- Elas me chamavam. – a voz de Zahra chegou abafada aos meus ouvidos – Não paravam de chamar, estavam com tanto medo.

- Nós também estamos. – admiti, sentindo as mãos de Edda massageando minhas costas, numa tentativa de consolar. A quem, eu já não tinha tanta certeza.


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Notas finais do capítulo

"O que está morto não pode morrer, mas volta a erguer-se, mais duro e mais forte."
Deidre já levou tanta porrada que eu tenho quase certeza que ela poderia tomar o lugar de Cabelo Molhado como High Priestess do Deus Afogado :c

Estou quase culpada por essa onda de tristeza, mas tudo passa mais cedo ou mais tarde.

— Lud.



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