Fronteiras da Alma escrita por By Mandora


Capítulo 14
Morrer É Preciso


Notas iniciais do capítulo

Apesar de seu ritmo hispânico, escolhi a música Viva Forever para tema de fundo deste capítulo não só por causa de sua letra, que reflete grande parte dos sentimentos envolvidos, como também pela sensação de saudade que ela nos transmite, combinando com o clima do texto. Infelizmente só encontrei na net arquivo midi com 64KB ou mais, o que ultrapassa o limite do site de 50KB. Então, para quem quiser o midi para escutar enquanto lê o texto o link é:—> http://www.hamienet.com/1307_Viva-Forever.mid



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Houjou estava atônito, ouvindo as palavras de Hikari. Tanta desgraça por causa de um objeto.

- Eu sabia que muito sofrimento havia sido causado por causa da Jóia Shikon, mas não achei que fosse assim... Nunca imaginei que pudesse haver tanta crueldade dentro da alma humana.

- Naraku nunca foi humano.

- Mas nasceu de um, Hikari. Um ser que destruiu muitas vidas por causa do poder.

- Ele também quase destruiu este país, jovem senhor.

- Como assim?

A hanyou olhou de rabo de olho para Shippou, como que procurando por aprovação. O youkai consentiu discretamente com a cabeça. Ela então aproximou-se de Houjou e olhou-o bem dentro dos olhos.

- Esta parte da história é ainda mais triste e irá lhe revelar o segredo que o senhor sempre quis descobrir, jovem senhor.

Ele manteve os olhos vidrados na hanyou, enquanto ela continuava seu relato.

-x-x-x-x-x-

Japão, ano de 1864, final da Era Tokugawa (x). O país passava por uma conturbada crise, época de guerras sangrentas e lutas pelo ideal que cada um achava ser o correto. Se, de um lado o movimento monarquista, que devolveria o poder ao Imperador com o êxito da Restauração Meiji, agregava cada vez mais simpatizantes, do outro lado o Shogun fazia tudo ao seu alcance para não perder o poder. A classe de samurais estava em decadência, desde que as armas de fogo começaram a ser introduzidas no país.

- Pai... Estou cansada de ficar me escondendo desse jeito.

- Você então quer voltar e lutar?

Um jovem olhar feminino voltou-se para a direção por onde viera, uma trilha escura pela mata que findava em um punhado de tochas flamejantes ao longe. Estavam a jovem e o pai já no alto de uma colina e podiam ver luminosos riscos cortando o céu vez por outra. Vultos moviam-se dentre as tochas, quase imperceptíveis e acobertados pela escuridão da noite. Mas ela sabia muito bem do que se tratava.

- Humanos tolos. Matando uns aos outros desse jeito. - Disse ela, sentando-se sobre a relva.

- Nem todos os humanos são assim, filha.

- É, são aqueles que morrem primeiro. Os bons sempre morrem mais cedo.

O tom rancoroso na voz daquela jovem fez com que seu pai tivesse tristes lembranças. "Rin..." Ele deu-lhe as costas e seguiu adiante sem olhar para ela.

- Todos terão que morrer um dia, Hikari.

Ela ficou a fitá-lo, um tanto desconfiada por alguns instantes.

- Pai, essa coisa que nós recuperamos... Por que tanta guerra por causa disso?

Então o pai encarou a pequena caixa que ela segurava.

- As lutas que você vê hoje são a herança de um passado turbulento. E, infelizmente, a ambição e ganância pelo poder são mais fortes do que os valores morais para muitos seres, sejam eles humanos ou não. Esse objeto que recuperamos hoje é fruto de uma luta muito mais antiga do que você ou eu...

Ela suspirou observando a caixa.

- Ainda bem que o senhor não é assim, pai.

Ele ficou sem palavras um instante. "Nem sempre fui assim, minha filha." Voltou sua atenção para um clarão momentâneo no meio daquelas luzes. "Quando essa insanidade irá parar?"

- Vamos andando... - Disse o pai. - ...antes que seu tio saia daquele templo para vir atrás de nós dois.

-x-x-x-x-x-

Um jovem encapuzado caminhava pelos arredores do pátio de uma enorme casa, com o contorno de seu corpo esguio revelado apenas pela fraca luz das estrelas. Um vento frio que soprava trazia consigo o cheiro de morte. Parou ao lado de uma muralha de pedra e sacou de um pedaço de papel.

"Este é o lugar marcado, mas onde ele está?" Perguntou-se o jovem.

- Procurando por alguém, rapaz?

Rapidamente o jovem sacou sua espada, parando-a exatamente a um centímetro de distância da garganta do homem que subitamente surgira atrás de si.

- Você é rápido. - Não havia medo no olhar daquele homem, que o jovem logo reconheceu.

- Senhor conselheiro... - Guardou a espada e fez uma reverência. - O senhor deveria ser mais cuidadoso ao se aproximar de alguém portando uma espada.

- Ora, eu sabia que estaria seguro tratando-se de você. O assassino de confiança do senhor Katsuura... - O jovem desviou o olhar, com um jeito de quem não gostara muito do que ouvira. - E apesar de saber de suas façanhas e dons, não sei o seu nome, rapaz.

- Meu nome não importa...

- Mas as pessoas devem lhe chamar por algum nome, não?

O jovem estreitou os olhos diante da curiosidade do conselheiro.

- O que aconteceu?

- Hum... Direto ao ponto. Gosto disso. O senhor Katsuura está muito cansado. Mas ele não gostaria de deixar seu belo país cair nas garras daqueles abutres estrangeiros... Você entende, não é, meu jovem? - Percebeu um leve consentimento no rosto do rapaz. - O povo está sofrendo, nosso país está quebrando, precisamos de alguma forma recuperar o controle. E como se não bastassem todos esses problemas, a honra do nosso senhor foi manchada...

O jovem surpreendeu-se com a revelação, porém manteve seu jeito seco de ser. Mas sendo o conselheiro uma criatura sagaz, não pôde deixar de notar a curiosidade do rapaz e percebeu estar trilhando o caminho certo para atingir seu propósito. Escondeu a malícia do olhar virando o rosto para o céu da noite.

- Sim... Esta casa foi profanada e um objeto sagrado foi roubado. Durante sua ausência, criaturas amaldiçoadas tiveram a ousadia de invadir este lugar e levar um bem muito valioso. Achávamos ser este um local seguro, mas agora, depois do que aconteceu, com certeza outros virão na intenção de eliminar o senhor Katsuura e, se isso acontecer, meu jovem, todo o processo da Restauração Meiji estará prejudicado.

- Eu não podia imaginar... - Ajoelhou-se, com a mão sobre a espada na cintura, fazendo uma reverência. - Diga-me o nome do ladrão miserável que eu não só trarei de volta o que foi roubado, mas como também a cabeça do maldito e assim, todos saberão que não é possível impedir a Restauração.

- Não será uma missão fácil. Não são ladrões comuns; não são sequer humanos... - Notou o jovem erguer o rosto e encará-lo. - São monstros assassinos... E o líder deles é um bastardo de nome Inu-Yasha. - Fez uma breve pausa e aproximou-se do jovem. - Essa missão pode custar a sua vida, rapaz.

- A honra de meu senhor e da causa que ele representa são muito mais importantes do que a minha vida. Me diga, senhor conselheiro, o que foi roubado?

- Um objeto de valor inestimável que vinha sendo protegido neste lugar: a Jóia Shikon. Com ela, o senhor Katsuura pretendia reestruturar o Japão e expulsar todos os seus inimigos.

- Não pode ser... - Levantou-se. - A Jóia Shikon é apenas uma lenda! Não pode ser verdadeira!

- Não só é verdadeira, como esteve bem aqui, neste lugar. Mas aquele maldito hanyou e seus comparsas a levaram. - Notou o jovem erguer uma sobrancelha, em sinal de dúvida. - Eu não usei o termo 'monstros' apenas de forma figurativa. Inu-Yasha é o filho bastardo de uma humana que se entregou aos prazeres mundanos com um youkai... E então? Ainda está disposto a aceitar esta missão?

O rapaz estreitou o olhar, desconfiando daquela situação.

- Por que o senhor Katsuura não usou a Jóia antes de toda essa guerra acontecer? Por que deixou que inúmeras vidas fossem desperdiçadas quando ele tinha poder para evitar isso o tempo todo?

- Simplesmente porque ele desconhecia o poder da própria Jóia... Acaso desconfia do caráter do seu mestre? - O jovem permaneceu a enfrentar o conselheiro com o olhar. - No passado, a Jóia Shikon foi a causa de muitos infortúnios, a ponto de muitos a acharem um objeto amaldiçoado. Mas os que tinham essa idéia eram os tolos que duvidavam do seu poder e não eram capazes de usá-la. Então ela foi enterrada secretamente, nesse lugar, para ser redescoberta somente há poucas semanas atrás.

"O caráter do senhor Katsuura é indiscutível, mas o desse homem... Parece tão ardiloso quanto uma cobra." Pensou o jovem que subitamente deu às costas ao conselheiro e seguiu em direção à entrada principal da casa.

- Aonde vai? - Perguntou o conselheiro.

- Acho que não se importará se eu for até o próprio senhor Katsuura e perguntar-lhe sobre a Jóia pessoalmente, não é mesmo?

O jovem continuou seu caminho sem dar mais importância ao conselheiro. "Esse moleque é mais esperto do que pensei. Tenho que ser mais convincente." E, transformando-se em uma fumaça púrpura para flutuar juntamente com a brisa da noite, subiu aos céus, sobrevoando o lado oeste da casa; o quarto do nobre senhor Kogorou Katsuura.

Enquanto o jovem recém-chegado caminhava pelos corredores que o levariam até o quarto do monarquista para quem trabalhava, imagens e idéias lhe atormentavam a mente. Idéias que havia escutado pelos vilarejos por onde passara nas últimas semanas para cumprir a última missão que lhe fora incumbida por seu senhor: mais um assassinato. Rumores de que talvez ele estivesse ficando louco e, em seus devaneios, para libertar o Japão do Shogunato, estaria utilizando-se de artimanhas vis. "Não posso acreditar que tudo isso seja verdade, mas... Por que tantas mortes?" Antes que se desse conta, estava diante da porta do quarto do mestre. Observou atenciosamente alguns segundos o vulto sentado sobre um futon atrás da porta corrediça do quarto. Era ele, o senhor Katsuura, que pessoalmente o alistou para ajudar a implantar a monarquia no Japão, símbolo de toda sua luta, toda sua dedicação, sua honra. "Não posso acreditar." Estendeu a mão para abrir a porta, mas, antes que a tocasse, pôde ouvir uma voz cansada e rouca proveniente do interior daquele cômodo.

- Voltou rapidamente. Acho que não há ninguém que se compare a você na arte da espada...

- Ainda assim, demorei o suficiente para que ladrões invadissem este lugar e lhe roubassem um objeto muito valioso, meu senhor. - Respondeu o jovem, recolhendo o braço que direcionara para a porta.

- Se você já sabe disso, é porque já deve ter conversado com meu conselheiro. Sim, a roubaram de mim... - Havia um tom de rancor em sua voz. - Aqueles malditos youkais... Monstros sanguinários, desumanos... Você sabia que eles mantêm uma jovem sacerdotisa como refém, pois ela pode controlar o poder da Jóia? - Seu relato foi interrompido por uma seqüência brutal de tosse.

- O senhor está bem?

- Sim, não é nada, meu jovem... - Pigarreou um pouco. - Apenas preciso repousar...

- Não se preocupe com mais nada, senhor Katsuura. Trarei a Jóia de volta. E também a cabeça daqueles ladrões miseráveis.

- Eu sei que posso contar com você... Soube que eles se abrigam em algum lugar dos arredores de Edo. Mas, além da Jóia, também quero que traga a sacerdotisa sã e salva. Pobre moça, nem quero imaginar que tipo de provações ela deve estar passando.

- Está certo. Vim pessoalmente porque eu não poderia confiar apenas nos relatos de um conselheiro neste tipo de situação tão delicada.

- Ele é meu braço direito neste país conturbado. Confiaria minha vida a ele, assim como a confio a você. Garanto que pode seguir tudo o que ele lhe disser, pois as palavras dele são espelhos das minhas próprias palavras.

- Sim, senhor.

Após a saída do jovem, uma fumaça se fez evaporar do corpo de Katsuura, que caiu ofegante sobre o futon.

- O que houve...? - Perguntou o confuso senhor, enquanto identificava o conselheiro em seu aposento.

- Descanse um pouco, meu senhor... Novamente foi acometido por aquelas alucinações. Mas agora tudo já passou.

- Oh, sim... Claro... Como estão indo as coisas?

- Não há nada para se preocupar. - Disse o conselheiro enquanto ajudava-o a deitar-se novamente.

- Eu não sei o que faria sem o seu aponho, Naraku.

Com uma reverência silenciosa, Naraku retirou-se dos aposentos. "Os tempos e as eras podem mudar, mas os humanos e a sua estupidez continuam sempre os mesmos..."

Do lado de fora da casa, apenas deu um sorriso vitorioso. "Inu-Yasha, agora você terá um oponente que não poderá vencer... Um oponente que luta por um ideal e pela honra; a honra acima de tudo..."

-x-x-x-x-x-


O amanhecer chegava meio que preguiçoso naquela manhã. Uma cidade crescera ao longo dos anos, mas, em seus arredores, velhos templos ainda abrigavam costumes antigos. Havia um em especial, um templo onde a Jóia sempre fora velada e purificada. O templo onde tantas sacerdotisas utilizaram-se de seus poderes para mantê-la a salvo da ambição alheia. Diante dele, um ser caminhava de um lado para o outro, como se estivesse aguardando a chegada de alguém importante.

- Acalme-se, logo estarão de volta. - Disse uma voz feminina proveniente do interior do templo.

- Estão demorando muito.

- É sinal de que estão tomando as devidas precauções.

- Ou talvez tenham sido pegos... Eu devia ter ido junto.

- E quem poderia ficar aqui e me defender acaso o mal se abatesse sobre nós? - Perguntou ela, em tom maroto.

O hanyou voltou o olhar para a jovem oculta pelas sombras dentro do templo e sorriu levemente.

- Você sabe se cuidar, Haruna.

- Humanos e youkais têm vivido neste lugar há décadas, juntos em harmonia... Não me peça para tentar levar as coisas de outra forma. Não quando você é a razão de tudo, Inu-Yasha. - A jovem saiu do templo, revelando-se sob a luz matutina. Uma linda moça, de longos cabelos negros, desalinhados pela brisa, e grandes olhos castanhos. - Sim, eu poderia me virar sozinha, mas não seria justo com todos os valores e esperanças que as pessoas daqui depositaram em você. Eu sou a sacerdotisa que mantém a Jóia pura e, você, meu protetor.

- Belo protetor eu sou... Levaram a Jóia bem debaixo do meu nariz. E você pede ao meu meio-irmão que a recupere.

Meio que resignado, ele se sentou no chão, diante do templo. Haruna aproximou-se e também se sentou ao seu lado, apoiando a cabeça sobre o ombro dele. O gesto dela o fez corar levemente.

- Pedi a Sesshoumaru que fosse porque preciso de você ao meu lado, não entende?

Ele permaneceu olhando para o chão, não ousava olhar nos olhos dela. Ela o lembrava muito de uma outra pessoa, alguém que ele jamais veria novamente, por mais que desejasse.

- Haruna... Eu...

- Eu sei...

Um ruído na mata adiante o fez saltar de sobreaviso. De dentro da folhagem surgiram Sesshoumaru e Hikari, calmamente.

- Como você é patético, Inu-Yasha... - Escarneceu o youkai.

- Do que é que você está falando, Sesshoumaru?

Hikari sentiu sair fagulhas do olhar que um lançou sobre o outro. Apesar dos anos juntos naquele lugar, da convivência, eles ainda disputavam entre si.

- Pai... - Tentou a jovem hanyou interceder.

Sesshoumaru deu um forte respirar e seguiu rumo à pequena cabana que utilizava naquele lugar, observado pelos olhos do meio-irmão. Hikari aproximou-se de Inu-Yasha, com a caixa contendo a Jóia Shikon em mãos.

- Perdão, tio. Foi uma noite muito longa...

- O mau humor é parte do charme dele. - Disse Inu-Yasha, em tom de zombaria. Depois se desarmou diante da sobrinha. - Você está bem?

- Sim. - Ela sorriu e virou-se para Haruna. - Aqui está.

Hikari entregou a caixa com o poderoso objeto a Haruna, para que esta a guardasse no templo. Inu-Yasha ficou observando a sacerdotisa caminhar para dentro do recinto. Mas não pôde sustentar o olhar quando ela virou-se para fitá-lo antes de entrar e fechar as portas.

- Ela gosta do senhor, tio. - Disse Hikari, em tom maroto.

- O quê? Não diga besteiras, Hikari. - E para finalizar o assunto, saiu sem dar chance à sobrinha de contestar.

"Claro, tio..." Pensou consigo mesma, cheia de ironia e riu baixinho, cobrindo a boca com uma das mãos.

- O que é tão engraçado, Hikari?

Apesar de conhecer a voz, a jovem levou um pequeno susto e tratou de procurar de qual direção vinha. Vislumbrou um vulto encostado a uma árvore, de braços cruzados. Um belo e jovem youkai a observava.

- Shippou, isso não se faz. Tivemos uma noite horrível e você fica fazendo brincadeiras?

- Eu não fiz nada, só perguntei do que estava rindo. O que houve por aqui?

- Ai, muita coisa... Enquanto você esteve fora fazendo o que a sacerdotisa Haruna pediu, a Jóia foi roubada e eu e meu pai a recuperamos.

- O quê? Mas como assim?

- Como exatamente aconteceu, eu não sei. Só Inu-Yasha e a sacerdotisa estavam no templo quando levaram a Jóia e ele não falou muita coisa a respeito.

- Ah, entendi. - Suspirou e cruzou os braços novamente.

- O quê?

- Não é nada. - Tentou desconversar. - Por que seu pai a levou? Ele nunca deixa você se arriscar.

- Acho que ele pensou que eu estaria mais segura com ele do que com meu tio. - Respondeu ela, resignada.

Ambos deram uma risada discreta, mas interromperam-se ao verem as portas do templo se abrirem e por elas surgir Haruna. "Como elas são parecidas." Pensou Shippou. Logo atrás dela vinha seu irmão menor, Shintaro.

- Shippou! - Exclamou a sacerdotisa com alegria. - Que bom que voltou a salvo!

- É bom estar de volta também, Haruna. Olá, Shintaro! - Direcionou um aceno para o rapaz, que logo notou estar trajado como monge. - Ah, você se decidiu então.

- Olá, Shippou! Olá Hikari! - A hanyou acenou alegre com a cabeça. - Sim, resolvi ajudar minha irmã no templo. Quero me tornar um grande monge, assim como nosso ancestral Miroku.

- Ah, que ótimo... "Espero que não acabe repetindo os hábitos pervertidos dele..." - Entregou à sacerdotisa uma bolsa de couro fechada. - Seu irmão mandou lembranças e, também, as ervas que pediu.

- Obrigada, meu amigo. Eu sabia que podia contar com você.

- Hikari me contou algo sobre um roubo...

- Ah, sim... Mas já foi tudo resolvido, não se preocupe. Agora tenho muito o que fazer, com licença.

- Seu irmão pediu para ter cuidado no manuseio, por isso mandou as ervas lacradas na bolsa. São altamente venenosas.

- Sim, são mesmo, mas só são fatais para youkais. - Só então ela percebeu um certo desconforto por parte dos seres diante dela e, como que tentando amenizar a situação, completou. - Elas não seriam necessárias se todos tivessem um bom coração, assim como vocês dois... - Voltou sua atenção para seu irmão. - Vamos, Shintaro. Temos que retomar os rituais. Dessa vez, só vou observar como está fazendo.

O irmão fez um gesto afirmativo com a cabeça e ambos fecharam-se novamente no templo.

- Ela anda estranha ultimamente... - Comentou Shippou, meio desconfiado. - Não acha, Hikari? Hikari? - Notou a jovem afastando-se. - Aonde você vai?

- O que acha? Vou até o rio, estou precisando de um banho. Eu volto logo.

- Ah... Quer ajuda? - Perguntou ele, em um tom quase inocente.

Ela estancou incrédula e virou-se para ele com um olhar inquisidor. Nos últimos meses eles dois haviam se tornado muito mais do que amigos, mas sabe-se lá porquê Sesshoumaru não permitia. Talvez fosse pela estreita amizade que Shippou mantinha com Inu-Yasha, talvez fosse pelo medo de perdê-la. Por esse motivo, jamais demonstravam seu afeto em público, muito menos em plena luz do dia. Ele ficou tão sem graça que baixou o olhar, coçou a cabeça, além, é claro, de dar um sorriso meio amarelo.

- Certo... - Continuou ele. - Perguntar não ofende, não é?

- Se meu pai descobrir, você vai virar pele de raposa.

Percebendo um certo consentimento da parte dela, ele aproximou-se.

- Eu prometo que não conto. - Colocou a mão esquerda sobre o peito e ergueu a direita, em posição de juramento. - Além do mais, temos que aproveitar os momentos em que ele não está vigiando você...

Ela riu e fez um gesto convidativo para ele com a cabeça.

- Deixo você esfregar minhas costas.

-x-x-x-x-x-


Sentado em um canto da cabana, Sesshoumaru notou um vulto de pé na porta de entrada.

- O que você quer? - Perguntou ele, no frio tom costumeiro.

- Apenas ver se você está bem. - Notou o irmão aguçar as orelhas. - Não precisava levá-la com você.

- Já está na hora dela aprender a lutar e a se virar sozinha. Eu não vou estar sempre ao lado dela.

- Ela é mais forte do que você imagina.

- É uma sonhadora. E não escolhe muito bem as companhias...

- Você está falando do Shippou?

- E de quem mais eu poderia estar falando? - Cruzou os braços, após um breve e forte respirar. - E ainda por cima age como se eu não soubesse. Será que ele pensa que eu sou tão tolo assim?

- Ele parece gostar dela. Talvez se você desse um pouco mais de espaço...

- Para quê? Para ele pedir alguma espécie de benção? Mas nem que ele fosse o último youkai na face da Terra.

Inu-Yasha abaixou o olhar e ficou a fitar a fogueira no centro da cabana.

- Ela cresceu, Sesshoumaru. Não é mais aquela garotinha que você podia controlar.

- Pare de ficar me dando conselhos, Inu-Yasha! Você não tem moral alguma para isso.

- O que quer dizer?

- Você fala sobre permissões, mas fica de namorico às escondidas com aquela sacerdotisa.

- Não é nada disso.

- É claro que não. - Respondeu Sesshoumaru, com ironia.

Desgostoso com o rumo daquela conversa e da relutância de seu irmão, Inu-Yasha sentou-se diante dele, encarando-o.

- Até quando? Até quando iremos continuar com essa guerra silenciosa entre nós dois, Sesshoumaru? Você age como se apenas tolerasse a minha presença, mas eu sei que há muito tempo você não se sente mais assim. Não é mesmo... Meu irmão?

O youkai desviou o olhar.

- Você sempre fala um monte de asneiras quando está para se tornar humano.

- Pare de falar da humanidade como se mais nada nela te importasse. Uma parte de mim é humana. Uma parte da sua filha é humana. Rin era humana...

Antes que pudesse perceber, Inu-Yasha foi surpreendido pela reação de Sesshoumaru, que o agarrou pelo pescoço e o atirou contra o chão brutalmente, prendendo-o e sufocando-o ao mesmo tempo.

- Me diga de que serviria essa humanidade dentro de você se eu arrancasse a sua cabeça do seu corpo agora mesmo?

- Para lembrá-lo do que você mais ama e odeia ao mesmo tempo... - Respondeu o hanyou, com certa dificuldade.

O youkai estreitou os olhos, aumentando a força contra o pescoço do meio-irmão, porém conteve-se antes de fazer estrago maior.

- Vá em frente... - Continuou Inu-Yasha. - Me mate... Você mais do que ninguém sabe há quanto tempo eu quero isso...

Sesshoumaru cerrou os olhos e soltou o pescoço do hanyou, que tossiu tentando recuperar o fôlego. Ambos voltaram a se encostar na parede da velha cabana, lado a lado.

- Você brinca com a morte, Inu-Yasha.

- E nem assim ela me dá o que tanto desejo.

O hanyou levantou-se e saiu da cabana, com uma das mãos sobre as marcas no pescoço, ainda meio tonto. Isso deu ao youkai tempo para divagar dentro de seus próprios pensamentos. "Inu-Yasha, mesmo após tantos anos, você ainda sofre por aquela humana. Sei como se sente..."

-x-x-x-x-x-


"Quem ele pensa que é?" Caminhando pela pequena estradinha que levava até o templo, o hanyou procurava distrair-se com a paisagem, na tentativa de deixar para trás o desentendimento que tivera minutos antes com seu meio-irmão. "Este lugar tem crescido bastante. Logo estará como na época da..." Ele estancou um instante. "Kagome." Respirou profundamente. "Espero que você esteja bem e feliz." E, olhando novamente ao redor, se deu conta de que muito tempo já havia se passado. "Como eu sou idiota. Já se passaram mais três séculos desde que a vi pela última vez."

- Senhor Inu-Yasha! Senhor Inu-Yasha!

Aquele chamado aos berros o alertou, fazendo-o sacar a Tessaiga, embora no fundo acreditasse conhecer aquela voz. Mas não havia ninguém próximo a ele. Foi quando notou uma pedrinha na estrada saltitando em sua direção. Logo percebeu não ser uma pedrinha e guardou a espada.

- Ora, Myouga! - Deu um sorriso.

A velha pulga conselheira deu um último salto bem alto e parou bem no meio do rosto do hanyou, na ponta do nariz. O sorriso no rosto se desfez quando a pulga o mordeu e começou a inchar de sangue.

- Sua pulga miserável! - O arrancou de seu nariz e o espremeu entre as palmas das mãos. - Some para ir atrás daquele velho Toutousai e quando volta vem direto chupar o meu sangue? - Perguntou irado enquanto observava o conselheiro amassado na palma de sua mão.

- Desculpe, senhor Inu-Yasha... - Se recompôs. - É que fazia tanto tempo que não o via que não pude me conter. - Sacou de um lencinho, que usou para enxugar uma lágrima solitária no canto do olho, tentando disfarçar o quão sem graça estava.

- Sei... - Ironiza. - Como vai aquele velho maluco?

- Da última vez que o vi, estava bem.

- Como assim "da última vez que o viu?" O que você tem aprontado por aí, Myouga?

A velha pulga franziu o semblante, assumindo um ar sério.

- A vida nos arredores tem mudado muito, não acha?

- Era o que eu estava pensando pouco antes de você aparecer... As casas, os costumes, as pessoas... Tudo tem mudado, mas não sei se é para a melhor. Gostaria que as coisas continuassem a ser do jeito que eram antes dessa tal família Tokugawa assumir.

- Hum... Não sei se a família Tokugawa continuará por muito tempo no poder, senhor Inu-Yasha. A briga na política interna nunca esteve tão acirrada como nos últimos anos. Por isso, há algum tempo eu tenho andado por aí, entre grupos de soldados e líderes de ambos os lados, tanto os que apóiam a Restauração quanto os que apóiam a permanência do Shogunato. Confesso que o que tenho visto e ouvido tem me deixado muito preocupado.

- Que conversa é essa, Myouga?

- Há rumores de que youkais estejam envolvidos nos conflitos, ora lutando diretamente nas trincheiras, ora agindo sorrateiramente e influenciando ou fomentando conspirações visando alguma vantagem própria. Hoje em dia, muitas pessoas não acreditam nessas histórias, mas desconfiam de algo muito errado. Se as coisas continuarem a piorar, logo não haverá lugar seguro onde criaturas como nós possam ficar tranqüilamente. E ainda há a questão da Jóia...

- É, a Jóia... Conflitos à parte, ela é o que mais nos causa problemas. Alguém invadiu o templo algumas noites atrás e a roubou, mas ela já foi recuperada.

- Como roubada? O senhor e a senhorita Haruna não deveriam estar vigiando a Jóia? O que estavam fazendo?

Nesse momento o hanyou sentiu a pele do rosto queimar.

- Err... Nós não vimos e... - Tratou de pegar Myouga da palma de sua mão com dois de seus dedos e encará-lo bem de perto. - Ora, isso não importa agora, seu intrometido. Como eu disse, já a recuperamos dos monarquistas. - Soltou a pulga, que caiu de forma desastrada no chão.

- Monarquistas? - Levantou-se alisando sua 'parte traseira' e logo se recompôs. - Como eles poderiam saber da Jóia? Cada vez mais ela tem caído no esquecimento, o que é muito bom para nós. Mas se eles estão atrás da Jóia, sinto que teremos problemas...

- Por quê?

- Sabe, ouvi dizer que um dos líderes, um tal de Kogorou Katsuura, tem recrutado assassinos muito bons, senhor Inu-Yasha. Inclusive há boatos de um assassino monarquista frio como gelo e ágil como a brisa que tem dado muito trabalho aos soldados do Shogun. Ele teria sido responsável por dezenas de mortes sem nunca ter sofrido nenhum ferimento grave, com exceção de uma cicatriz no lado esquerdo do rosto.

- Ninguém é assim tão bom, Myouga. Mesmo o Sesshoumaru, hábil do jeito que é, já tem dezenas de marcas pelo corpo, a maioria causada nos últimos séculos por causa da sua sede de vingança. Se envolve em qualquer briga por qualquer motivo.

- Senhor Inu-Yasha... - Continua Myouga, meio receoso. - Eu não sei se o seu irmão Sesshoumaru seria páreo para esse assassino. Pelo o que dizem dele, parece sobrenatural.

- Está me dizendo que alistaram um youkai para fazer o trabalho sujo deles?

- Eu não sei, nunca alguém que o tenha encontrado sobreviveu para contar como ele é. O que lhe digo são só boatos. Mas não sei se um homem poderia ser tão habilidoso como dizem. Sugiro ao senhor muita cautela ao se meter com esses monarquistas.

- Hunf... - Esnobou o hanyou. - Ainda está para nascer o humano capaz de ser páreo para mim, Myouga. Está se preocupando a toa. Além do mais, se ninguém nunca viu esse homem, como sabe se ele realmente existe?

- Um nome tem sido cuidadosamente mencionado nas cidades e vilarejos, sempre acompanhado de muito medo e respeito por parte de quem o pronuncia.

- Que nome?

E, olhando de um lado para o outro, como que se certificando de não estarem sendo ouvidos por mais ninguém, Myouga fez um gesto convidando Inu-Yasha a se aproximar. O hanyou abaixou-se um pouco, ficando de cócoras, para escutar o que aquela pulga tinha a lhe dizer sobre o misterioso assassino.

-x-x-x-x-x-

- Haruna...

As preces da sacerdotisa aos pés do altar onde permanecia a Jóia Shikon foram interrompidas pela suave voz do ser a quem ela tanto bem queria. Ela levantou-se silenciosamente, permanecendo de costas para ele.

- Você é meu protetor e meu algoz, minha benção e minha desgraça, meu ódio e meu amor... Isso chega a ser desumano. Tê-lo ao meu lado e não tê-lo para mim... - Lágrimas lhe vieram aos olhos.

- Não se pode ter tudo o que se quer, até porque, muito do que desejamos é mais pesadelo do que sonho. Nem sempre ter o que se deseja é sinal de felicidade. Desde que eu nasci, tudo o que eu desejava era me tornar um youkai puro, extinguindo a parte humana dentro de mim. Eu desejava ser mais forte e eu achava que essa humanidade era uma fraqueza. Foi quando eu a conheci pela primeira vez...

- Inu-Yasha...? - Ela ficou confusa com o jeito dele e virou-se para encará-lo.

- Apesar de suas obrigações como sacerdotisa, de ter que exterminar criaturas como eu, ela poupou-me a vida. Mais do que isso... Lhe deu um novo significado. Por ela, eu deixaria esse desejo de ser apenas youkai e abraçaria a humanidade. Mas quando eu a perdi pela primeira vez, naquele instante, tudo o que havia de humano dentro de mim deixou de ter valor.

Haruna baixou os olhos, cerrando-os. "Kikyou..."

- Encontrá-la pela segunda vez me fez pensar que eu estava tendo uma segunda chance. Na verdade estava, mas não do jeito que eu pensei. Levei muito tempo para entender... Nada é como a gente quer e, no final, eu a perdi pela segunda vez.

Lágrimas inundaram os olhos da jovem. "Kagome..."

- Na verdade, eu acho que ser um youkai puro não era o que eu realmente queria. Eu queria era encontrar o meu lugar no mundo. Um lugar onde eu pudesse ter a minha vida... Com quem eu escolhesse. Mas como alguém como eu, metade humano e metade youkai, poderia conseguir isso? Acho que simplesmente não poderia, não é mesmo? Ou, talvez eu até conseguisse... Se nascesse novamente.

- Não!

Ela correu e o abraçou com força e até com um certo desespero. Ele permaneceu sem ação um segundo ou dois. Só depois que ela se acomodou um pouco mais em seu peito é que ele resolveu retribuir o abraço, com um terno sorriso no rosto.

- Eu sabia que a encontraria novamente, se vivesse o bastante para isso. O irônico é que permanecemos unidos pelo objeto que nos mantêm separados... Haruna... - Ergueu o rosto dela, fazendo-a olhar nos olhos dele. - Você sabe o que está por acontecer, não sabe?

- Eu apenas sinto... Não quero que nada de mal lhe aconteça. Como eu poderia continuar sem você?

- Da mesma forma que eu continuei por todos esses anos, vivendo apenas para ter esse momento de encontro... e de despedida.

- Não é justo...

- Não, não é. Mas é o certo. Assim como é certo nos encontrarmos de novo. Mas eu acredito que esse próximo encontro será diferente.

- Por quê?

- Apenas confie em mim. - Segurou o rosto dela por entre as mãos suavemente, encostando sua testa na dela.

- Sempre.

Ele despediu-se dela primeiramente com um suave beijo nós lábios. Separaram os lábios, mas não o olhar. Aquele doce olhar, no qual ele tantas vezes se perdera, convidava-o para mais outro beijo, um beijo mais profundo, quente e saudoso. Saiu do templo, fechando a porta atrás de si. Apoiou as costas contra a porta do templo, de olhos cerrados. Respirou fundo, como que tentando tirar um peso enorme das costas. Sequer percebeu a aproximação de Sesshoumaru.

- Assim você facilita demais as coisas, seu idiota. Por isso a Jóia foi roubada tão facilmente.

- O que você quer agora? - Perguntou impaciente.

- Apenas dar um aviso. Quando fui àquela casa recuperar a Jóia, pude reconhecer um cheiro naquele lugar. Estava impregnado por toda parte como se lá morasse. Já faz muito tempo, mas ainda me lembro bem do cheiro daquele verme.

- Do que você está falando?

- Naraku...

Inu-Yasha baixou o olhar e afastou-se da porta, até ficar lado a lado com Sesshoumaru,

- Eu já imaginava. Toda essa onda de violência, derramamento de sangue. É bem do feitio dele. - Voltou seu olhar para o templo. - Sesshoumaru... Aconteça o que acontecer, proteger a Jóia Shikon e a sacerdotisa é nossa prioridade.

- Claro, a Jóia... - Sussurrou ele, com certa ironia e saiu caminhando. - Fale por si mesmo, Inu-Yasha. Você sabe muito bem qual é a minha prioridade.

-x-x-x-x-x-

Uma noite sem lua, na qual as estrelas se destacavam pelo firmamento. Uma brisa fria e rasteira soprava, trazendo o cheiro do frescor da noite. Era em noites como aquela que o hanyou, agora em sua forma humana, parava para pensar, no meio da floresta. Mas juntamente com a brisa também vinha um cheiro diferente, estranho e humano. A sensação de estar sendo vigiado despertou seus sentidos que tanto anos levou para desenvolver, mesmo estando na forma humana. E apesar da presença que ele sentia não ser uma presença maligna, mesmo assim o incomodava.

- O que você quer? - Perguntou ele para a escuridão. A ausência de resposta fez com que ele se alarmasse e sacasse sua espada. - Mas o quê...? - Sem que pudesse perceber, o hanyou foi atingido nas costas por um golpe certeiro, de cima para baixo. - Maldição!

Vislumbrou um vulto portando uma espada movimentar-se rapidamente, com uma velocidade fora do comum para um ser humano.

- Pare de se esconder. Só covardes lutam da forma que você está fazendo!

Aquela frase feriu o orgulho do lutador nas sombras, que resolveu se revelar. Um jovem esguio e franzino, segurando uma espada de samurai. O hanyou encarou seu adversário com certa cautela, apesar da aparência dele não oferecer muito perigo. Os anos lhe ensinaram a nunca subestimar um oponente, por mais insignificante que ele parecesse.

- Eu não sou covarde, apenas cauteloso. Não sou como você e sua corja de monstros que invadiram a casa do senhor Katsuura para roubar e matar descaradamente!

- Como é que é? - O hanyou não acreditava no que estava ouvindo. - Nós é que fomos roubados em primeiro lugar! Só estamos tentando evitar que o poder da Jóia Shikon seja usado para o mal!

- Mentiroso! Já imaginava que você usaria esse tipo de artimanha! Mas eu não vou ser enganado assim tão facilmente. - E partiu para cima de seu oponente.

Não vendo outra opção, Inu-Yasha, de posse da Tessaiga, avançou contra o inimigo. "Vou usar o Kaze no Kizu e acabar logo com isso." Então percebeu que as nuvens de energia necessárias para realizar seu golpe não se formavam. "Mas, o que está acontecendo?... Maldição!" Lembrou-se de que a energia que precisava era a de um youkai e que o seu oponente era um humano. Surpreendentemente, o rapaz deu um salto, girou no ar e desceu com sua espada na direção dele.

- Ryu Tsui Sen (x)!

Inu-Yasha acabou recebendo um golpe certeiro no peito, que causou um talho desde o ombro esquerdo até quase o meio do abdômen. "Esse humano é muito habilidoso. Nunca vi alguém se movimentar dessa maneira com uma espada."

- Do Ryu Sen (x)! - Habilidosamente, o rapaz golpeou o solo, gerando uma força que seguiu em direção ao hanyou levando consigo terra, pedras e folhas.

O golpe o cegou temporariamente e fez com que ele largasse sua espada. Sem pestanejar o jovem rapaz fez um giro sobre o próprio corpo e cravou-lhe a espada bem do lado direito do peito. Havia tanta força no golpe que o impacto acabou por prender o hanyou, com espada e tudo, em uma árvore atrás dele. "Que droga!"

- Achei que você fosse um adversário mais habilidoso, hanyou. - Comentou o jovem friamente.

- É por isso que você luta? Sente prazer no desafio?

- Matar só pode dar prazer para seres desprezíveis como você! Agora me diga onde estão a Jóia Shikon e a sacerdotisa que você seqüestrou!

- O quê? "Do que ele está falando? Sacerdotisa?" - Foi quando se deu conta de quem o estranho falava. - Haruna!

Somente ao notar o sorriso frio de quem havia conseguido uma informação muito útil é que Inu-Yasha percebeu que pronunciar o nome dela não fora uma boa idéia.

- "Maldição!" Ela não foi seqüestrada! Ela é a guardiã legítima da Jóia e pode confirmar cada palavra minha!

- Provavelmente ela é vítima de algum feitiço seu... Irei resgatá-la, assim que acabar com a sua raça!

- Você não entende... Como pode ser tão cego? O seu mestre roubou a Jóia Shikon do lugar onde vivo em primeiro lugar!

A princípio aquelas palavras doeram na mente do rapaz. "Esse mentiroso..." E sem mais cerimônia, ele empurrou ainda mais a espada no peito de Inu-Yasha, que soltou um gemido de dor.

"Será que a minha hora finalmente chegou?... Mas se continuar assim, Haruna correrá perigo! Não posso deixar que ela caia nas garras de Naraku... Não posso!" Sorrateiramente, o hanyou utilizou-se da bainha da Tessaiga e atingiu o rapaz bem no estômago, o que fez com que seu adversário desse um salto para traz. Isso lhe deu tempo para puxar a espada dolorosamente cravada em seu peito e jogá-la longe. Colocou a mão sobre o ferimento grave, tentando estancar o sangue. O rapaz passou as costas de uma das mãos pela boca.

- Mas quem diabos é você? - Perguntou o hanyou ofegante. - Nem parece humano...

O jovem manteve-se estranhamente calado. Não havia um único traço de medo em seu olhar. Um olhar frio, típico de alguém que já vira a morte de perto, ou que já fora a causa dela para muitos outros. Só então o hanyou reparou no detalhe que a tênue luz das estrelas agora revelava, uma única cicatriz no rosto daquele jovem. "Parece que os boatos que Myouga ouviu eram verdadeiros. Que amaldiçoada sorte a minha..."

- Hitokiri Battousai (x)... - Pela primeira vez naquele encontro, Inu-Yasha percebeu alguma emoção no rosto daquele assassino, um misto de surpresa e indignação. "Acho que acertei em cheio!" - Eu já ouvi falar de você... O assassino pessoal dos monarquistas. Quanta honra... - Havia um tom de escárnio em sua voz.

- E por acaso você sabe qual é o significado dessa palavra?

Ambos se entreolharam e depois voltaram o olhar para suas espadas, caídas no chão, cada uma de um lado daquele campo de batalha. Deram alguns passos, fazendo um semicírculo, estudando-se mutuamente. Então, os dois fizeram um rolamento no solo, cada um na direção de sua espada. Por causa do ferimento e do sangue que perdera, a agilidade do hanyou ficara comprometida. Ao voltar sua atenção para o inimigo, pôde sentir o aço frio da lâmina da espada dele penetrando em seu corpo novamente, na altura do abdômen. Um turbilhão de imagens invadiu sua mente naquele momento.

"Inu-Yasha... Nós sempre estaremos juntos, não é?"

"Kagome... Eu sempre vou estar com você..."

Foi quando sentiu a mão do oponente empurrar ainda mais a espada em seu abdômen, fazendo uma meia-volta com a lâmina dentro de seu corpo.

"Não importa quantos séculos nos separem, nem quantas vidas tenhamos, eu sempre amarei você, Inu-Yasha..."

Seus olhos ficaram vidrados no céu estrelado e nunca haviam percebido a intensidade do brilho daqueles pequenos pontos cintilantes acima dele. A única coisa que sempre temia naquela noite era a própria lua, que desaparecia por completo, expondo seu frágil corpo humano.

- Bat... Battousai... Você já sentiu um amor tão grande que até mesmo a morte deixasse de ser algo assustador? Que todas as suas dúvidas se tornassem certezas, mesmo que você soubesse que jamais poderia ter aquilo que você mais desejava?

- Eu amo a minha causa e, por ela, eu daria a minha vida, porque assim acredito estar construindo um país mais justo e honrado. E para que o meu país possa evoluir, seres como você devem morrer!

E com a lâmina de sua espada ainda dentro do corpo do hanyou, empurrou-a para o lado até que ela saísse pela lateral do corpo, cortando tudo o que havia pelo caminho. Sangue jorrou como água torrente do ferimento aberto que Inu-Yasha instintivamente cobriu com as duas mãos, inutilmente. Ele deu cerca de um passo e meio para trás, apenas para encarar melhor o homem diante de si. Um homem de olhar frio e decidido, de cuja espada escorria o sangue do ferimento aberto em seu corpo. Um ferimento mortal.

- Que bom que você tem uma causa justa... Mas e quanto ao homem que a motiva?

O hanyou não pôde mais continuar. Sua visão ficou turva e logo ele deixou seu corpo pender para trás, desabando sobre o solo de forma dura. Enquanto a mancha de sangue aumentava sobre o solo, Battousai sacudia sua espada no ar para depois guardá-la na bainha. Não tinha um olhar contente por ter concluído parte daquela missão. Algo o incomodava em toda aquela história. "Uma causa justa..." Saiu caminhando e desapareceu na escuridão da floresta.

O hanyou permaneceu caído no chão, ainda com as mãos sobre o ferimento, embora soubesse que era inútil, inevitável. Já não sentia mais dor, não sentia nenhum temor. "Em breve, Kagome... Em breve..."

-x-x-x-x-x-

A sacerdotisa mantinha-se diante do templo, com as portas cerradas atrás dela e com as costas apoiadas nelas. "Já não me sinto mais tão digna deste lugar... Pelos menos meu irmão mais novo pode continuar meu trabalho." Ela caminhou lentamente, afastando-se um pouco do templo e observando o céu noturno. "Lua nova..." Ela deixou escapar um longo suspirar e direcionou o olhar para um ponto qualquer na escuridão adiante.

- Pare de ficar me vigiando. Isso me incomoda.

Sesshoumaru surgiu das sombras e parou cerca de uns dez passos dela.

- Não estava vigiando você.

- Sempre com esse seu ar altivo e frio. Você não me engana. - Ela foi até ele e o encarou. - Você tenta se proteger atrás dessa couraça, mas se trai cada vez me olha nos olhos.

Uma pequena brisa soprou, desalinhando um pouco os cabelos prateados dele. Foi quando ele voltou seu olhar para uma certa direção na floresta sombria. O vento lhe trazia um cheiro desagradável. "Sangue..." Ele começou a seguir aquele odor, mas deteve-se um instante perante o apelo de Haruna.

- Sesshoumaru, o que foi? - Ela parecia apreensiva.- O que a brisa noturna lhe trouxe que o deixou assim tão irrequieto?

Ele nada disse, tampouco a encarou. Responder diretamente àquela pergunta só geraria outras mais as quais ele não queria responder naquele momento. O cheiro de sangue era cada vez mais forte.

- Você fala demais, mulher... - Disse ele asperamente e começou a se retirar.

A sacerdotisa limitou-se a um único pedido.

- Por favor... Traga-o de volta para mim... - Suplicou ela, com a voz embargada.

Ele estancou surpreso com aquele pedido por um instante, mas não voltou seus olhos para ela. Mantinha fixo seu olhar na escuridão da floresta a sua frente. Após um segundo ou dois continuou seu caminho.

-x-x-x-x-x-

Hikari estava sentada no centro de uma cabana, a que dividia com seu pai, tomando um pouco de chá. Surpreendeu-se quando Shippou adentrou o lugar.

- O que faz aqui, Shippou? Se o meu pai o pegar será o seu fim! - Ela sussurrava.

- Eu o vi indo ao templo da Jóia.

- Mas ele pode voltar logo...

Ele aproximou-se e sentou-se diante dela, tomando-lhe o pequeno recipiente de chá das mãos e colocando-o no chão ao lado.

- Talvez não... - E acariciou o rosto dela gentilmente.

- Você é louco. - Disse ela, sorrindo.

- É você quem me deixa louco, Hikari.

E, em um impulso mais forte que os dois, eles se abraçaram e se beijaram. Foi quando a jovem sacerdotisa adentrou a cabana abruptamente, interrompendo-os.

- Shippou! Ainda bem que o encontrei! - Só após a invasão é que percebeu que havia interrompido algo. - Ah... Eu não... Me desculpem...

Os dois se desvencilharam meio desajeitados por causa da surpresa.

- Haruna, o que foi? - Perguntou Shippou, levantando-se.

- Eu não sei, apenas um pressentimento muito ruim, mas...

- Mas o quê? - Perguntou a hanyou Hikari.

- Mas Sesshoumaru saiu daqui muito alarmado. - Saiu da cabana, acompanhada pelos outros dois. - Alarmado com alguma coisa naquela direção.

O youkai raposa observou atentamente a direção que Haruna apontara e percebeu com horror o que Sesshoumaru também percebera anteriormente.

- Que droga! - Blasfemou ele.

- O que foi, Shippou?

- Você não sente o cheiro, Hikari? - Perguntou ele, seriamente.

Ela adiantou-se um pouco, na direção que ele agora observava, apenas para constatar de quem era o sangue cujo cheiro ela sentia fracamente. Ela levou umas das mãos à boca.

- Shippou?... Hikari?... - Perguntou a sacerdotisa, já com a voz embargada.

- Espere por nós no templo, Haruna.

Ela permaneceu com as mãos na altura do peito e os olhos cheios de lágrimas enquanto os observava desaparecer na escuridão da noite.

-x-x-x-x-x-

O jovem samurai caminhava pensativo. As últimas palavras do hanyou ainda ecoavam em sua mente. "Que bom que você tem uma causa justa... Mas e quanto ao homem que a motiva?" Parou um instante, observando a direção por onde viera. "Ele ainda estava vivo. Certamente morrerá daquele ferimento, mas..."

-x-x-x-x-x-

Quanto mais caminhava, mais o cheiro de sangue lhe invadia os sentidos, dando-lhe uma prévia visão do que encontraria. "Inu-Yasha... Seu idiota!" Afastou alguns arbustos, chegando até a clareira onde pôde encontrar o corpo do hanyou em meio a uma enorme poça de sangue. Caminhou até ele analisando a área ao redor, não queria ser pego de surpresa. Observou atentamente também os ferimentos brutais no corpo de Inu-Yasha.

- Eu sabia que você viria...

- E como eu poderia não notar a bagunça que você fez? Onde está o corpo do infeliz?

- Vou deixar isso para você... Se apresse... Battousai vai atrás de Haruna e da Jóia...

- Battousai... Então esse é o nome de quem fez isso com você? - Perguntou, com ar de quem mais interessado estava sobre o rival de Inu-Yasha, do que no objetivo que o tal rival pudesse ter.

O hanyou apenas forçou um gesto de consentimento com a cabeça, seguido de uma tosse expurgando sangue. O youkai estreitou os olhos e colocou a mão sobre a Tenseiga, mas foi impedido pelas palavras do hanyou.

- Não dessa vez, meu irmão...

- Inu-Yasha... - Balbuciou ele, por entre os dentes. Seu olhar estava encoberto por sua franja prateada. - Você vai morrer...

- Atenda a este meu último pedido, Sesshoumaru...

Relutante, o youkai afastou a mão de sua espada e abaixou-se para poder melhor visualizar seu irmão. Apesar da expressão de dor, havia no rosto dele uma estranha calma, uma paz que era incompreensível para ele. Como alguém a beira da morte poderia estar em tamanha paz? E um simples gesto, talvez o mais simples do mundo, o surpreendeu. O hanyou ergueu um pouco a mão esquerda, na direção de Sesshoumaru.

- Eu já fiz tudo o que eu deveria... Agora é com você, meu irmão...

Sem qualquer palavra, o youkai apenas consentiu com a cabeça e, em retribuição, segurou a mão estendida do agonizante hanyou. Este, por sua vez, apenas voltou seu olhar para o céu daquela noite estrelada. Um lindo e límpido céu estrelado. O vento parara de soprar e a floresta estava silenciosa. Havia um leve sorriso em seus lábios ao lembrar-se de alguém querido. O rosto dela lhe veio a mente, refletido na luz das estrelas, em todas as suas formas que ele pôde conhecer.

- Como... é... bonita...

Foi quando Sesshoumaru sentiu o veio de força que havia naquele aperto de mãos esvair-se completamente.


Continua...

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(x) Era Tokugawa – Período da história japonesa, compreendido entre os anos 1600 e 1868. Recebeu este nome por causa de Tokugawa Ieyassu, que recebeu do imperador título de Shogun, e cuja linhagem governou o Japão nos anos subseqüentes.
(x) Ryu Tsui Sen – Martelo Reluzente do Dragão, nome de um dos golpes de Battousai.
(x) Do Ryu Sen – Dragão Reluzente da Terra, nome de um dos golpes de Battousai.
(x) Hitokiri Battousai - Assassino Portador de Espada. Título de Kenshin (Rurouni Kenshin) antes de se desiludir com a causa pela qual lutava e tornar-se andarilho.



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Notas finais do capítulo


Finalmente, um novo cap! E esse é bem grande para compensar o tempo que a fic ficou parada...rsrs
Por favor não queiram me matar também por causa da surra que o Inu levou, certo? ;)
Até o próximo cap!



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