Pesadelo do Real escrita por Metal_Will


Capítulo 28
Capítulo 28 - Tempo




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"Present day...present time..." (*)

~ Serial Experiments Lain


Capítulo 28 - Tempo


Monalisa coloca sua mochila no chão, afasta uma cadeira e se senta. Sr. Freitas, ou "Mestre dos Relógios", teria mesmo que dar muitas explicações para os últimos acontecimentos.


– Então..foi você, não foi? - perguntou ela, com uma expressão receosa - Que fez aparecer a esfera vermelha no meu bolso e causou toda essa reviravolta?


– Bem, de certa forma sim. Mas isso não teria acontecido se você tivesse ignorado a esfera.


– Como poderia? Alguma coisa surgir no meu bolso no momento mais crítico não poderia significar nada!


– Você pode se acalmar, sabia? Não sou surdo - critica o homem, com uma voz tranquila.


– Oh, desculpe. Não quero parecer rude...na verdade, gostaria de agradecer.


– Agradecer, heim?


– S-Sim - a mocinha mexia na calça, meio encabulada por ter parecido grossa - Se não fosse aquilo, nunca mais poderia sair desse Labirinto.


– É verdade. Você tinha ativado o Código Cinderela, não é? Ou devo dizer que irá ativar?


– Desculpe. Não entendi.


– Bem, talvez fique mais fácil se eu fizer as apresentações devidas...meu nome é Salviano Freitas, mas costumam me chamar de Mestre dos Relógios. Não me chamam assim apenas por trabalhar em uma loja de óculos e relógios, mas por ser o responsável por controlar o tempo.


– O...tempo - repete Monalisa com uma certa admiração - Então, o senhor é mesmo uma pessoa importante...


– Hehe. Nem tanto. Como a maioria dos elementos desse lugar, não posso usar meus poderes deliberadamente. Mas...em uma ocasião crítica como aquela eu pude interferir.


– Em outras palavras, eu voltei mesmo no tempo, não é?


– Não só você. Tudo voltou atrás. A linha do tempo retrocedeu como uma fita de vídeo sendo rebobinada. Se é que você pegou essa época para entender o exemplo. Hohoho!


– Entendo...tudo voltou - a loirinha parecia pensativa.


– Sim. Mexer com o tempo é algo muito delicado, sabe? E difícil! Retroceder a linha do tempo inteira não é tarefa fácil.


– Mas...não podia simplesmente ter feito eu voltar ao passado do que mexer na linha do tempo inteira? Deve ser mais fácil fazer com uma pessoa só do que com todo o mundo, não?


– Seria menos desgastante, é verdade...mas causaria mais problemas...


– Como assim?


– Ora, Monalisa. O que faria se conhecesse você mesma vinda do futuro?


– Considerando ser o Labirinto...não acharia nada incomum


– Você fala de um ponto de vista já ciente do Labirinto, mas e se você se encontrasse antes disso?


– É...acharia estranho.


– E isso poderia influenciar sua decisão de aceitar ou não o desafio. Se o seu eu do passado recusasse, o que aconteceria com seu eu do futuro?


– Não...mudaria nada?


– É uma opção. Mas se você recusou no passado, que razões teria para voltar do futuro e resolver o problema?


– Criaria um paradoxo - respondeu ela - Ou algo assim...


– Na verdade, o tempo se desdobraria em dois. Um com a Monalisa que recusou sair do Labirinto e outro onde você perdeu todas as oportunidades de sair por não ter impedido o código Cinderela. Mesmo que a outra Monalisa viva um futuro sem ter consciência do Labirinto, você ainda teria que viver nele. Não adiantaria muita coisa.


– Então...foi por isso que retrocedeu toda a linha do tempo ao invés de mandar só a mim para o passado...para evitar esse desdobramento dos futuros, não é? - a garota parecia admirada.


– O Labirinto é feito de escolhas, certo? - colocou o homem, enquanto polia algumas lentes - Como Mestre dos Relógios e administrador do tempo posso ter acesso ao passado, presente e futuro. Não apenas dessa linha do tempo, mas também de todas as linhas do tempo possíveis.


– Isso...isso é impossível! - Monalisa deixava transparecer uma admiração cada vez maior - Então...o senhor seria onisciente?


– De certa forma, sim. Posso acessar todas as informações de todas as possibilidades de futuro. Em resumo, posso ver a linha de tempo de todas as escolhas que você tem.


– Então...então foi mentira quando me disseram que eu tinha livre-arbítrio, não é? Se o senhor pode ver as consequências de todas as minhas escolhas, então não sou totalmente livre para escolher o que quero!


– Do que está falando?


Monalisa ainda parecia confusa. O homem, pacientemente, continua a explicar.


– Você sempre pode escolher. Eu sei as consequências de todas as possibilidades de escolha, mas isso não significa que você não tenha a liberdade de escolher.


– Mas...então?


– Por que está tão espantada? Todos nesse Labirinto são oniscientes sobre a sua vida em maior ou menor grau. A única diferença é que os outros elementos do Labirinto são oniscientes apenas em uma linha de tempo. Eu posso ver por todas elas.


– Perdoe-me. Acho que ainda não entendi muito bem


– Vamos pegar como exemplo um personagem aleatório no Labirinto...como alguma colega sua. Ela sabe perfeitamente que você está falando comigo, aqui, agora. Mas eu, além disso, sei perfeitamente o que você estaria fazendo em todas as possibilidades de futuro. Existe um futuro onde você escolheu ir para casa e me encontrar depois, existe outro onde você foi almoçar com suas amigas, existe outro onde você ainda está no trânsito. Posso ver todos, claramente.


– Mas...isso é assustador. As possibilidades são infinitas!


– Sim. São infinitas - ele termina de polir mais uma lente - Mas como Mestre dos Relógios não tenho limites para conhecer as linhas de tempo possíveis.


– Difícil de imaginar... - comenta a loirinha, ainda em ar pensativo.


– Bom, é que é difícil explicar isso para você, uma vez que a sua mente só consegue perceber um número limitado de dimensões.


Monalisa sentiu um certo insulto nessa última frase, mas não se ofendeu. Na verdade, queria entender um pouco mais.


– Dimensões, você diz? Mas isso signfica que existem infinitas Monalisas por aí, uma em cada dimensão.


– Sim. E existem infinitos Mestres dos Relógios, cada um com perfeita consciência da existência de todos os outros - continua o Mestre, falando com tanta calma que parecia estar explicando para uma criança algo simples, como um problema de somar. Se bem que, para ele, devia ser a coisa mais simples do mundo.


– Então...devo entender que existem futuros onde eu não usei a esfera vermelha e não saí do Labirinto?


– Exatamente. Você está começando a pegar a coisa. Existem futuros onde você não se lembrou de mim e não usou a esfera, deixando o código ser ativado e permanecendo no Labirinto para sempre. Mas, não é o caso. Você, a Monalisa dessa linha do tempo, se lembrou de mim, usou a esfera e retrocedeu a linha do tempo, mantendo apenas a sua consciência daquele futuro.


– Bom saber - murmurou a garota - Então, eu fiz a escolha certa, não é?


– Talvez sim...mas não adiantará nada se fizer outras escolhas erradas - continuava o barbudo, raramente olhando nos olhos dela. Não que ela se importasse com isso, afinal, também dificilmente conversava com as pessoas olhando nos olhos.


– Mas agora eu tenho consciência de tudo! E...isso muda bastante coisa, não?


– Claro que muda - responde o homem - Para começar, você não seguiu a mesma linha do tempo desde que voltou, seguiu? Você procurou a mim ao invés de procurar o seu primeiro tutor...aquele homem da papelaria, não é?


– Sim. Foi ele mesmo. Mas o que aconteceria se eu fosse atrás dele ao invés de ir atrás de você?


– Nada


– Nada?


– Você retornou já consciente do Labirinto e de tudo que aconteceu. O evento dele não acrescentaria em nada na sua jornada.


– É. Olhando por esse lado, faz algum sentido. Os eventos que não acrescentariam em nada na minha jornada não teriam o porque de acontecer de novo...


– E repare que você voltou alguns dias depois de seu primeiro evento. Ou seja, você TINHA que voltar depois de ter ativado o primeiro evento entrando naquela outra rua. Lembre-se que ao tomar o copo de água, você aceitou desafiar o Labirinto e terá consciência disso para sempre.


Monalisa engole seco. Toda vez que lembra dessa escolha pensava se não era melhor ter tomado o café e acreditado que tudo não tivesse passado de sonho. Contudo, ao mesmo tempo, não gostaria de passar a vida inteira sendo passada para trás. Agora ela tinha consciência de tudo que aconteceu e podia evitar seus erros. Não poderia perder essa nova oportunidade! Ainda assim, precisa entender melhor os motivos do que aconteceu, ou pelo menos o que poderia entender.


– Que seja! Mas, Mestre...err...afinal, por que me deu essa nova chance?


– Esse tipo de evento fazia parte do Labirinto - respondeu ele sem mudar o tom - Ou pelo menos nessa linha do tempo, onde você teve a sorte de me encontrar antes que sua mãe a encontrasse primeiro.


Monalisa aperta com força o pano de sua calça. Como poderia ter esquecido? Foi traída por sua própria mãe, que imaginava ser sua guia. Agora ela sabia disso!


– Era isso que queria perguntar! - exclamou a garota - Minha mãe é mesmo um vírus? Ou melhor, o que são esses vírus? Agora eu tenho consciência deles, acho que já POSSO saber quem são.


– Oh, claro - ele não se altera - Sua mãe não mentiu quando disse o que são os vírus. É um nome genérico dado a elementos do Labirinto que tentam impedi-la de sair. Embora o termo "vírus" seja relativo.


– Como assim?


– Para alguém como você, que não sabe o que vai acontecer quando sair, isso que você chama de "vírus" na verdade pode ser benéfico...se o que está fora do Labirinto for pior do que o que está dentro...


– Mas querer que eu fique aceitando tudo...não pode ser coisa boa. Eu já disse que, se tenho consciência da existência desse Labirinto, eu quero sair. Custe o que custar!


– Que seja - continua o homem - Se quer mesmo sair, então terá que seguir os conselhos do guia.


– Minha guia é Ariadne, estou certo? Mas como eu poderia saber?


– Na verdade, você não é totalmente culpada. Tudo dependia das suas escolhas, mas reconheço que você não tinha muitas pistas.


– Quase nenhuma. Podia jurar que minha mãe era minha guia...


– Dissemos que sua guia é alguém próxima a você, mas isso não significa proximidade no sentido familiar. Ariadne foi a única que desejou sua amizade de forma sincera.


– Mas...e minhas outras amigas?


– Amigas? - ele ri um pouco - Nunca achou estranho que suas amigas fossem pessoas tão diferentes de você?


– Bem, é verdade que elas são mais extrovertidas e tudo, mas sempre se aproximavam de mim... - mas Monalisa se interrompe ao lembrar que suas amigas começaram a andar com ela apenas depois que se conheceram em um trabalho em grupo. Talvez elas nunca tivessem mais se falado se elas não tivessem ido bem naquele trabalho. A loirinha lembra que a partir daí, Luana sempre pedia sua lição de matemática. Nunca sentiu que elas gostassem sinceramente dela. No fundo, nunca teve uma amizade profunda com nenhuma delas e sequer havia tido uma conversa séria ou desabafado com qualquer uma das duas, seja Cibele ou Luana. Era verdade: suas amigas eram mais colegas de classe do que amigas de verdade. Ariadne, por outro lado, sempre pareceu sincera e o sentimento que Monalisa achava estranho na verdade era afeto. Ariadne foi a primeira pessoa que havia demonstrado um afeto sincero a ela.


– Uma coisa sua mãe não mentiu. Ao contrário dos outros eventos, os vírus normalmente vem atrás de você e não você atrás deles. Não foi assim com sua guia? Você não ativou nenhum evento para sua mãe ter falado que era sua guia, não é?


– Só havia conversado com um garoto no orfanato que visitei - responde ela - Achei que esse era o gatilho.


– Não, não era. Você precisaria de uma pista mais clara para concluir que sua mãe era a guia. Se isso não aconteceu, só podia ser uma armadilha. Ela só se manifestou aquela hora porque você já tinha consciência de que a guia era alguém próxima a você e de que nem todos os elementos do Labirinto seriam amigáveis. Ela se aproveitou da ocasião para se aproximar de você como guia e depois te envenenou contra Ariadne usando do pretexto de que ela poderia ser um vírus. Mas era exatamente o contrário.


– Minha própria mãe...quer me manter presa aqui. Mas por quê?


– Bem, é a função dela. Assim como a função de Ariadne é fazer você sair.


– Ariadne! - repete Monalisa - É verdade. Como posso despertá-la agora? No futuro, ela disse que nunca tinha conhecimento do seu papel antes de despertar.


– É verdade. Ariadne é totalmente aheia ao Labirinto.


– Mas por quê?


– Por que ela é sua guia. A única função dela é ajudá-la, não tem razão de existir antes de ser despertada.


– Por isso que...ela se mata quando todas as outras saídas se fecham


– Exato. Ariadne é um personagem delicado. É programada para mostrar a saída, qualquer quer seja. Se a morte for a última saída, ela mostrará essa saída.


– Mas...e se eu não tivesse falado com ela antes do código ser ativado? O que iria acontecer?


– Ela iria morrer antes do código Cinderela ser ativado. Provavelmente você veria nos jornais que ela havia se suicidado de alguma forma.


Esse "provavelmente" nem seria necessário na frase. Afinal, o Mestre dos Relógios conhecia todos os futuros possíveis.


– Muito sinistro - balbucia a menina.


– No entanto, Ariadne consegue ajudá-la mesmo inconsciente - explica o barbudo - Ela ainda não havia despertado quando a convidou para jantar e se você tivesse ido à casa dela naquela noite, não teria ativado o código. Seguir Ariadne sempre é válido, embora consciente de seu papel de guia, ela seja muito mais útil.


– Naquela noite... - Monalisa pensa alto - ...a chave estava toda naquela noite?


– Bem, como você estava tão ligada à sua mãe, foi fácil criar um cenário onde pudesse ser enganada. Os vírus conseguiram criar uma armadilha perfeita graças à sua ingenuidade.


– Maldição - pregueja a menina. O homem continuava a polir lentes, mantendo toda a calma - Mas agora vai ser diferente. Agora sei quem é meu verdadeiro inimigo! Não vou ser enganada de novo!


– Pode ser que sim...pode ser que não... - sussurra o Mestre - Tudo vai depender das suas escolhas.


– Meu maior objetivo agora é despertar Ariadne. Como posso fazer isso?


– Continue a fazer o que fazia antes, mas com mais cautela. Espere um instante...


O Mestre abre algumas gavetas no balcão logo atrás dele e mostra um caderno, exatamente igual ao caderno de sonhos que ela usava antes. Até mesmo a borboleta da capa era a mesma.


– Meu..caderno? - estranhou Monalisa - Mas de acordo com a linha do tempo eu ainda não o comprei.


– Eu sei. Mas comprei um e anotei os sonhos que você já teve. Isso evita o trabalho de ter que comprar outro na papelaria.


– Nossa. Obrigadona - agradece ela, folheando o caderno e vendo que todos os sonhos labirínticos que teve estavam marcados lá - Você é mesmo onisciente...


– Pelo menos no que diz respeito ao Labirinto sim - responde ele - Mas...sua cabeça já deve estar cheia de informações por hoje, não é?


– Bom, confesso que ainda não entendi muito bem tudo que aconteceu.


– Resumindo...algumas escolhas que você fez foram erradas, mas ter me encontrado antes garantiu que você pudesse ter a chance de recomeçar. Não desperdice essa chance. Se falhar de novo, não poderá voltar atrás de novo.


– Não se preocupe - Monalisa fala de forma confiante, enquanto guarda seu novo caderno na mochila - Não cometerei o mesmo erro de novo.




(*) = Dia presente, tempo presente


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo...veremos como Monalisa vai se virar nesse "não tão novo assim" cenário. Até lá!