"Apenas a miséria é sem inveja"

~ Giovani Boccaccio

Capítulo 15 - Sofrimento

 O garoto diante de Monalisa ainda mantinha sua aparência de sete anos, mas seu tom de voz e forma de falar com certeza eram bem mais adultos. Mais um evento ativado durante sua visita a um orfanato. Que tipo de informação ela poderia obter dele?

- Então...você é meu próximo tutor? - pergunta a garota - Bem aqui no meio desse orfanato...

- Tudo bem, estamos em um espaço restrito. Ninguém vai interromper nossa conversa. Mas...antes de qualquer coisa...deixe eu tomar minha água - respondeu ele.

 Monalisa se vira para pegar seu copo, mas percebe que ele não estava mais ali. Ela não havia acabado de enchê-lo? 

- Não se preocupe. Eu já peguei - falou o menino, segurando o copo na mão direita e tomando tudo em um gole só.

- Como você?

- Como apareceu na minha mão de repente? Segredo - responde ele, cinicamente - Hehehe...mas, pense ao contrário: por que ele não poderia aparecer na minha mão de repente?

- Bom, porque...ah, esqueça. Não faz sentido discutir isso agora.

- Também acho. Você tem problemas muito mais graves para resolver.

 Ele termina de beber e deixa cair o copo propositalmente. Monalisa treme e faz até um movimento instintivo de tentar impedir, mas, estranhamente, o objeto começa a flutuar instantes antes de se esborrachar no chão.

- Opa. Não vamos querer que aconteça o mesmo que no seu sonho, não é?

- Aquilo...iria acontecer mesmo se eu quebrasse o copo?

- Talvez sim, talvez não - responde ele, pegando o copo, aproximando-se da garota e colocando o copo em cima da pia - Mas você com certeza perderia alguma coisa. Você já deve saber que quebrar ou deixar cair coisas no Labirinto nunca são um bom sinal.

 Ela se lembra das esferas de cristal que representavam diferentes caminhos. E, de fato, a esfera quebrada significou perder aquela opção. Então a ideia seria não deixar quebrar nada? Talvez fosse uma dica...

- Na verdade poderia ser outra coisa

- Como?

- Quebrar ou não um copo, beber ou não café, entrar por uma porta e não pela outra. O Labirinto é essencialmente feito de escolhas - continua o garoto (garoto pelo menos na aparência) - Você só precisa fazer as escolhas certas para chegar aonde quer.

- O problema é que eu nunca sei quais são as escolhas certas...como posso saber?

- É. Como você pode saber? - repete ele, mantendo um sorriso cínico - Ajudaria muito se você consultasse seu guia.

- Esse guia de novo? Como posso saber quem ele é?

- Pelos dados mais recentes...alguém já deve ter dito que é alguém próximo a você, não?

- Existem várias pessoas próximas a mim. E todas elas podem me influenciar de alguma forma e...

- É tudo que podemos dizer. São as regras. De qualquer forma, encontrar o guia te ajudaria muito...e eu recomendo fazer isso, porque as coisas não serão tão fáceis assim para sempre.

- Fácil?! Você acha que tudo até agora foi fácil? Estou passando um inferno aqui e você ainda diz que é fácil? Nunca recebo informações o suficiente, preciso adivinhar o que vocês querem e...

- Ora, cale-se

 O moleque coloca a mão direita no pescoço de Monalisa e olha profundamente nos verdes olhos dela, que tremiam assustados diante da ação brusca.

- Ei.. - ela tenta falar com alguma dificuldade - O que está...fazendo?

- Só te deixando um pouco mais esperta. Você acha mesmo que conseguiu chegar até aqui sozinha? Idiota. Sem as dicas que demos, você ainda estaria achando que ficou louca e nem saberia que o Labirinto existe!

- Como?

- Isso mesmo. Facilitamos bastante o seu caminho até aqui, mas essa moleza não vai durar para sempre

 Ele solta a mão do pescoço da loirinha, mas ela ainda estava ofegante e amedrontada. Acho que fosse ser morta por ele. E dessa vez não era um sonho.

- Está dizendo que...os insights que tive foram causados por vocês?

- Isso mesmo. Mas acho que já está na hora de fazer você sofrer um pouquinho. Pelo seu próprio bem, é melhor ficar esperta com o que encontra.

- Me fazer sofrer? - repete Mona - Mais ainda...do que estou sofrendo...

- Cale essa boca! Uma patricete criada a leite com pera como você nem deve saber o que é sofrer!

 Ela se arrepia ao ouvir aquilo. Era o que havia pensado há pouco: se o Labirinto é tudo que está ao seu redor, isso também incluia todas as pessoas miseráveis, famintas, doentes e sofredoras do planeta. Mas estariam naquelas condições apenas para cumprir as regras? Parecia injusto.

- Mas...que culpa eu tenho de vocês sofrerem?

- Que culpa? - ele segura o rosto de Monalisa com as duas mãos, olhando ainda mais profundamente nos olhos dela - Toda a culpa. O Labirinto existe para você, lembra?

- Mas... - ela tentava segurar as lágrimas, mas era difícil - Mas eu...não entendo.

- Imagino que não. Já parou para pensar porque você é uma garota de classe média nesse teatro todo? É justamente para estar no meio da miséria e da riqueza extremas.

- Como?

- Alguém já deve ter dito que toda obra de ficção foi criada para fazê-la pensar que nada daquilo poderia acontecer na realidade. Da mesma forma, a desigualdade social existe para fazê-la pensar que o verdadeiro sofrimento está na injustiça. 

- Então...mesmo o sofrimento de vocês é...

- Olhe para as crianças desse orfanato. Carentes, sem pais, dependentes de um governo falho...e olhe para tantas outras abandonadas nas ruas, vulneráveis a drogas, prostituição infantil, abusos. O sofrimento está em toda parte que você olhar. Elas não te dão pena?

- Claro que sim...elas estão sofrendo, não?

- Hehe..hauha..hahahahuhaa! - o garoto ria sinistramente. Monalisa começa a ficar ainda mais assustada.

- Do que está rindo?

- Porque você é a única piada em tudo isso! Todo o sofrimento que você vê não passa de teatro! Se não entendeu isso até agora quer dizer que ainda não entendeu nem os conceitos básicos do Labirinto! A única criatura digna de pena em tudo isso aqui é você!

 Ela fica cada vez mais chocada. Talvez devesse ter pensado nisso desde que aprendera sobre o que é o Labirinto. Mesmo as pessoas que pareciam estar sofrendo, na verdade, também não passavam de atores. Então...

- Imagino quantas vezes já viu pessoas recusarem esmolas e ter ficado com pena dos pedintes. Deve ter se sentido a superior, por não passar pelo mesmo que ele, não é? Imbecil. A miséria e todos os outros problemas são de fato sofrimento. Mas isso apenas se forem verdadeiros. No exato momento, o mais miserável de todos os homens pode rir na sua cara por te conhecer mais do que você mesma! Hahuahauhauhaha!

 A garota cai de joelhos e sente lágrimas escorrendo. Será que até mesmo a pobreza e o sofrimento eram melhores do que não saber quem se é? Do que não ser totalmente livre? Então o maior sofrimento era mesmo o dela? O que poderia fazer?

- Então...o que eu devo fazer? O que eu posso fazer para sair dessa condição? Fala! O que eu preciso fazer para sair desse Labirinto maldito?! Eu não aguento mais!

- Pare de falar bobagens. Você ainda não viu nada

- Como? - ela ainda tremia.

- Agradeça por eu ser apenas mais um tutor...talvez você não tenha mais tanta sorte daqui para frente.

- D-Do que está falando?

- A minha dica para você é esta: não serão apenas tutores que você poderá encontrar em seu caminho. Assim como existem criaturas dispostas a te ajudar, como eu, existirão criaturas mentirosas dispostas de tudo a manter você presa aqui para sempre

 Aquilo era novidade, embora ela já tivesse pensado em algo assim. Por qual razão ela só encontrou tutores auxiliares até agora? O que impedia o Labirinto de mentir para ela? Em quem podia confiar?

- Se...se isso é verdade...então...então que certezas eu posso ter? Se até mesmo os eventos que eu ativar podem ser armadilhas, então não me resta mais nada!

- Bom, a dica para isso você já sabe...encontre o guia.

- Quem é esse guia? Como eu posso achá-lo? Preciso de mais alguma informação!

- Você já tem todas as informações de que precisa, garota burra - diz o moleque, pegando mais um copo de água - E se não descobrir logo quem é...sinto muito por você.

 Monalisa engole seco. Nunca havia passado por um evento assim. Aquele moleque passava uma sensação de medo, mas ainda assim era um tutor. Claro que ela não esperava ser tratada bem por todos que encontrasse, no entanto, aquela conversa deixou-a bem chocada. Ou talvez aquele chacoalhão conseguisse mesmo deixá-la mais esperta. Agora sabia que o Labirinto podia mentir e também sabia que só teve sucesso na sua jornada até agora porque o próprio Labirinto facilitou as coisas. Então tudo ficaria ainda mais difícil dali para frente? Maldição. Só lhe restava encontrar o guia de que tanto falam. Pelo que entendeu, esse personagem seria sua única garantia de fazer as escolhas certas, mas quem poderia ser.

- O guia...pode mesmo me ajudar?

- Diria que a partir da agora só ele pode te ajudar. Mas eu repito...se não encontrá-lo, meus pêsames por você.

- Por que insiste tanto em dizer isso? Se tem mais alguma coisa para falar, então diga!

- Hunph! Você dá ordens como se estivesse na posição de fazer isso - retruca o moleque -  Mesmo você não merecendo vou te dar uma dica..

 A mocinha permanece em silêncio, enquanto o garoto não retira os olhos dela.

- Cuidado com o lobo, Chapeuzinho Vermelho - diz ele, com o mesmo sorriso cínico. Monalisa tenta entender a frase, mas parece que o tempo do evento já havia terminado.

- Mona! Mona! - chama Ariadne, chegando na cozinha de repente - Vim te ajudar a achar o remédio e...

- Não precisa. Ela já achou, né? - diz o garoto, que parece ter voltado a sua personalidade infantil de antes.

  - Ah, sim - diz ela, passando o curativo no joelho dele. Dessa vez, a conversa foi mais dura do que pensava e os resultados dela serviram para deixar a garota ainda mais preocupada. Cuidado com o lobo, Chapeuzinho Vermelho...sem dúvida, isso significa que desafiar o Labirinto, não significa não ter nada a perder. Existiriam seres auxiliares e mentirosos, talvez ela até já tenha conhecido algum mentiroso. Talvez todos tenham sido mentirosos. Não podia ter certeza de mais nada, talvez, apenas de que iria enlouquecer mais tarde ou mais cedo....