Pesadelo do Real escrita por Metal_Will


Capítulo 14
Capítulo 14 - Voluntária




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“Às vezes questões são mais importantes que respostas.” 

~ Nancy Willard


Capítulo 14 - Voluntária

  Dessa vez parecia uma cozinha, velha e pobre, apesar de organizada. Alguns armários de madeira na parte de cima, uma pia com sabão de côco e pratos recém-lavados, banquinhos de pernas tortas e uma mesa baixa. Um local razoavelmente escuro, onde apenas a pouca luminosidade proveniente do fim de tarde entrando pela janela permitia enxergar os objetos em volta sem precisar acender a luz. Que tipo de sonho poderia ser aquele?

   Monalisa olhou para sua roupa. Usava seu uniforme escolar e estava de pé, próxima à pia, sem muita ideia do motivo de estar ali. Nesse momento, ouve uma voz infantil. Talvez uma criança.

- Moça...moça...pega um copo de água pra mim?

    Ela se vira para ver quem estava falando, mas, assim que o faz, acaba esbarrando o cotovelo em um copo bem na beirada da pia, levando-o ao chão e, consequentemente, quebrando. Ela reclama alguma coisa ao ver os cacos no chão, mas, assim que volta os olhos para frente para tentar ver quem a chamou, solta um grito de horror. Assim como havia vários cacos no chão, o que estava diante dela, eram vários pedaços de uma pessoa. Talvez um menino que não tivesse sequer 10 anos. Estava totalmente fragmentado. No entanto, não apresentava marcas de sangue ou cortes, como se tivesse sido fatiado por alguma lâmina. Seus pedaços estavam divididos como se fossem centenas de peças de um brinquedo de montar. E, o mais estranho, é que Monalisa ainda podia escutar sua voz.

 - Por que você fez isso? Por quê? Eu só queria um copo de água...por quê?

    O sonho, ou talvez seja mais razoável dizer pesadelo, termina dessa maneira. Monalisa abre os olhos no meio da noite e senta-se na cama, ainda impressionada.

"Esses sonhos estão ficando cada vez piores", pensa a menina. Imediatamente, ela acende seu pequeno abajur ao lado da cama, pega seu diário de sonhos e anota mais um capítulo. Sem dúvidas, aquele sonho poderia significar alguma coisa, seja lá o que fosse. Ela já entendia mais ou menos quais sonhos possuiam significado para o Labirinto e quais não. Aquele com certeza possuía, mas qual seria seu significado exatamente ainda era um mistério.

 Após tomar as notas, ela se deita na cama olhando para o teto de seu quarto. Continuava em sua busca absurda por uma saída do Labirinto, a conspiração misteriosa que todos ao seu redor participavam, mas, até agora, não havia avançado em quase nada. A última pista que recebera foi sobre encontrar um elemento em especial capaz de ajudá-la a tomar as decisões corretas. Seria útil, afinal, sua jornada até à saída do Labirinto consistia basicamente de tomar decisões. Mas quem poderia ser esse elemento guia? E como poderia saber quais decisões tomar antes de encontrá-lo? E se tomasse as decisões erradas, ficando cada vez mais longe de achar esse guia e talvez da saída? Tantas perguntas...

 "No fundo, acho que no fim isso não adiantará de nada. Vou ficar presa nessa mentira para sempre", pensa Monalisa,  agora deitando-se de lado na cama. "Será que não é melhor seguir o conselho do Mestre dos Relógios e aceitar tudo de uma vez? Passar a vida inteira sabendo que sou enganada, mas sem nunca saber porque estou sendo enganada?"

 Claro que essa era a via mais fácil, mas logo em seguida ela se volta para o outro lado da cama e retoma sua coragem novamente.

 "Não, não posso desistir assim", ela continua pensando, "Agora preciso ir até o fim. Sabia que seria difícil desde que escolhi desafiar o Labirinto, mas se eu não for até o fim...aí sim é que vou me arrepender de verdade".

  Monalisa estava mais do que certa em acreditar que seus caminhos seriam difíceis. Mas, de uma forma ou de outra, precisava traçar um plano de ação. O que fazer agora? Primeiro, tentar quebrar a cabeça para interpretar seu sonho. Das últimas vezes, suas respostas foram relativamente rápidas, mas agora...não tinha a menor ideia do que aquele sonho poderia significar no cenário em que se encontrava. Uma cozinha? Não entrava em muitas cozinhas além da que tinha na sua casa. Um copo quebrado? Deveria quebrar algum copo na cozinha? Mas e a criança que apareceu? Não tinha contato com muitas.

 - Monalisa..vai se atrasar - alerta a mãe dela, enquanto a garota permanecia aérea em seus pensamentos durante o café da manhã. Seu pai já havia sáido mais cedo e a mãe estava apressada como sempre.

 - Oh, desculpa. Vou me apressar - ela começa a comer mais rápido.

 - Bem, eu já vou indo. Ultimamente o trânsito está uma loucura. Tranque tudo quando sair, certo?

 - Tudo bem - é o que Monalisa responde. Um café da manhã típico da família Fontes. Sem muitas palavras, sem afetos e sem nenhum beijo de despedida. Não que Monalisa se importasse mesmo com isso, afinal, até mesmo a pessoa que acreditava ser sua mãe não passava de uma mentira. Mesmo assim, ela suportava tudo isso muito bem. E essa é uma outra questão que ela sempre se fazia: como poderia estar levando isso com tanta naturalidade? Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso enlouqueceria com o próprio absurdo da situação. Sua única conclusão é que provavelmente já estava louca. Enloqueceu assim que aceitou entrar nessa busca. 

 "Somos todos loucos aqui", pensou a mocinha, lembrando das palavras do gato de Cheshire, um de seus "tutores". Aceitar a loucura talvez seja a única forma de encontrar sua liberdade. Precisava ir até o fim. E sair de casa para enfrentar um mundo inteiro por mais um dia era mais um passo a ser dado.

  Chegando na porta da escola, Monalisa encontra-se com sua colega de sala mais recente, Ariadne, uma garota ruiva e de expressão alegre. Por alguma razão, estava segurando uma sacola grande com alguma coisa dentro.

- Bom dia

- Bom dia - cumprimenta a loirinha, sem muito entusiasmo. Por algum motivo, Monalisa não ia muito com a cara dela. Mas ao mesmo tempo, sempre se pegava pensando naquela garota, devendo muito disso a um de seus primeiros sonhos causados pelo Labirinto que, até hoje, ela não conseguiu interpretar. Ariadne devia ser algum ponto importante a se considerar, mas não sabia qual. Tudo que sabia era que talvez, em algum momento, precisaria descobrir o significado dela. Mais tarde ou mais cedo....

- Raro chegarmos juntas, né? - sorri a ruivinha.

- Hoje me atrasei um pouco - responde Monalisa, obviamente, não compartilhando o mesmo entusiasmo.

- Ah, isso acontece

 As duas entram andando na escola, quando Ariadne já emenda um outro assunto. Ao contrário de Monalisa, ela se comunicava bastante.

- Você tem alguma atividade à tarde, Monalisa?

- Não faço nada de especial. Por quê?

- Bem...esse fim de semana estava separando uns brinquedos que não uso mais e decidi doá-los para um orfanato perto daqui - responde a garota, mostrando a sacola que segurava - Você não quer vir comigo? 

- Eu? 

- Sim. De vez em quando, eu costumava fazer uns trabalhos voluntários na minha cidade em creches e orfanatos. E é mais legal quando se vai mais gente. Mas eu ainda não conheço muita gente por aqui e quem eu convidei sempre dava uma desculpa.

 Dar uma desculpa era algo que Monalisa também estava pensando em fazer, mas, antes que pudesse recusar o convite, a garota percebe uma coisa interessante.

"Espere um instante. Ela disse orfanato...onde vivem crianças. Se tinha uma criança no meu sonho...talvez eu devesse mesmo aceitar esse convite. Quem sabe..."

 E foi o que ela fez. 

- Tá legal...eu vou com você. Quando vai ser?

- Sério? Puxa, que bom! Pretendo ir hoje à tarde...quer dizer, se você não tiver mais nada para fazer à tarde.

- Não, não. Hoje estou livre.

- Que bom. Podemos ir para lá depois do almoço. Você almoça comigo?

- S-Sim.

 Ariadne sorria cada vez mais. Depois da aula, as duas almoçam e conversam mais um pouco. Monalisa ainda achava ela misteriosa, mas a garota parecia extremamente aberta. Ela usava o tempo do almoço para falar sobre tudo que fazia na outra cidade, contar sobre a família, histórias engraçadas de uns primos. Em resumo, falava mais do que comia. Monalisa apenas acenava a cabeça para o que a colega falava, enquanto internamente pensava no que exatamente ela seria de verdade. Sempre que olhava para Ariadne com um pouco mais de atenção, lembrava de seu primeiro sonho com ela. Aquela menina cheia de vida...seria mesmo capaz de se jogar de um prédio(*)? Ou isso seria outra metáfora? Gostaria de pensar mais no assunto, mas Ariadne não deixava ela se concentrar muito em seus pensamentos, de tanto que falava. E isso foi até chegarem no orfanato que combinaram. 

  O local não ficava longe da escola. Era uma casinha simples, com um jardim pequeno e personagens infantis aleatórios pintados na parede por algum artista amador. Isso na fachada da frente, já que, assim que Ariadne chama pela dona e as duas entram no orfanato, pode-se ver uma pintura defeituosa na parte de trás e mesmo dentro da casa. Havia alguns canos à mostra, fios soltos e rachaduras. Sme dúvida, precisava de uma reforma, mas certamente a dona não devia receber muita verba do governo para manter aquele lugar. 

- Você é a menina que combinou a visita, né? Por favor, fiquem à vontade. Faz tempo que não recebemos visitas - fala a dona do orfanato, uma mulher de uns 30 e poucos anos, sorridente e gordinha.

- Eu trouxe alguns brinquedos antigos - diz Ariadne, após entrar. Enquanto isso, Monalisa observava o local.

- Obrigada - diz a dona - Ei, ei, calma, gente! Tem presentes para todo mundo! - ela bronqueia com as várias crianças curiosas com as sacolas que as meninas trouxeram.

- Sim, sim. Tem bastante - concorda Ariadne - Não precisam empurrar

 Monalisa não levava o menor jeito com crianças, como era de se esperar, mas tenta parecer o mais paciente possível. Já Ariadne era ótima para lidar com esse tipo de coisa, inventar brincadeiras, abraçar e beijar quem quer que fosse. Mesmo assim, Monalisa também fez algum sucesso.

- Você tem namorado? - pergunta um dos garotinhos.

- Hã? Não - responde ela.

- Você namora comigo? - pergunta outro, deixando a loirinha sem graça e, claro, sem a menor ideia do que fazer. Ariadne apenas ria. Mais para o fim da tarde, a criançada já se acalma mais e as meninas tem uma conversa mais calma com a dona do local.

- É sempre muito bom receber visitas...apesar de que vocês também são bem novinhas, né? Devem ter o quê? Doze, treze anos?

- Temos treze - responde Ariadne - Mas eu já fazia umas visitas assim na minha outra cidade.

- Ah, você é nova na cidade. Mas que bom....bom saber que existe gente tão nova preocupada com essas crianças carentes. Sabe, a gente depende do governo, mas eles atrasam o pagamento de várias coisas, fora o monte de impostos. É difícil manter esse lugar.

- Eu imagino - fala Ariadne - É muito complicado, né?

 Monalisa começa a refletir algo um pouco mais profundo. Ela sabia que tudo a sua volta era fachada, mas isso também não significaria que até mesmo as pessoas miseráveis e pobres só são assim pelas regras do Labirinto? Quer dizer que as pessoas só sofrem para cumprir as regras? Por que aceitar passar por esse tipo de papel? Esses pensamentos só deixam a loirinha ainda mais ansiosa para descobrir o motivo de tudo. Mas ela não demoraria muito para encontrar algo que destacasse ainda mais essas questões.

- Ai, ai - geme uma criança, chegando na sala onde as três conversavam. Era um menino que devia ter por volta de uns seis ou sete anos. Pele morena e cabelos crespos.

- Tavinho? O que foi? - pergunta a dona do orfanato.

- Eu...ralei meu joelho - responde o garotinho, apontando para o machucado.

- Tsc. Eu falo para vocês tomarem cuidado. Eu vou pegar um curativo na cozinha...

  Cozinha? Monalisa lembra de seu sonho imediatamente. Se há uma criança envolvida, talvez tenha algo a ver com a cozinha também. 

- Espera, dona Maria - fala a loirinha - Pode deixar que eu mesma pego o curativo. Onde ele está?

- Você faz isso? Tá no armário de cima, à esquerda.

- Tá legal. Vem. Eu dou um jeito nisso

- Tá - responde o garoto.

 Ao chegar na cozinha, ela arregala os olhos. Incrível. Era exatamente igual ao de seu sonho. Talvez fosse mesmo o local certo. 

- É naquela ali - aponta o garoto para o armário no canto superior esquerdo. Monalisa pega um banquinho (não era nenhuma gigante), sobe nele, abre a porta e tira uma caixa de remédios lá de dentro. Assim que desce, ouve o garoto perguntar:

- Moça...você pode pegar um copo de água também?

 Ela quase se vira, mas se lembra de seu sonho e olha devagar para a borda da pia. Sim, tinha um copo quase caindo, bem onde ela iria colocar o cotovelo. Exatamente igual ao seu sonho. Com cuidado, ela pega o copo e coloca mais no meio, enchendo-o com água e voltando-se para a criança que, por sua vez, emitia um sorriso mais sinistro.

- Fez bem em tomar cuidado dessa vez, heim? - diz o garoto, emitindo uma voz mais grave e medonha, sendo tudo, menos um menino de sete anos. Já Monalisa mantém sua expressão séria, afinal, já havia se acostumado com essas coisas.

- Como eu imaginava - diz ela - Começou outro evento...

(*) = ver capítulos 01 e 02.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo, mais um diálogo e mais algumas questões... Ah, sim, agora estou de férias da faculdade, então esse mês teremos capítulos de "Pesadelo do Real" postados com mais frequência. Fique esperto porque a história começa a andar nesses próximos capítulos. Até!