Treina Comigo escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 9
Batalha Entre as Campas (parte 1)


Notas iniciais do capítulo

Quem me conhece, conhece meu estilo, sabe que meu forte não são as lutas e a ação; porém, procurei dar o meu melhor na elaboração deste capítulo, e espero que os eventuais leitores gostem (e eventualm. comentem, critiquem, façam sugestões).



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Aquele que conhece o caminho serve de guardião ao amigo. Que Enkidu caminhe à sua frente, ele que viu o caminho, percorreu a estrada, conhece os acessos da mata, todas as tramas malvadas de Chumbaba! Já antes protegeu o companheiro; seus olhos são iluminados, ele também protegerá você!

Da Epopeia de Gilgamesh, Suméria, Terceira Parte, i, pg. 5 e 251 - 256.

– Hmpf... As "amigas"! Ishigami me alertou sobre vocês.

Desta feita Khurshid Shersorkh não cometeu o erro de subestimar seus adversários por considerá-los jovens e inexperientes. Tamanha displicência lhe valera primeiro uma perfuração na nuca, um de seus pontos fracos, e em seguida, uma lesão interna em um dos olhos (o esquerdo), outro ponto fraco de seu corpo revestido de epiderme invulnerável. (Este último impacto rompera o globo ocular, dilacerando a íris, a esclera, a córnea e o cristalino, destruindo a retina e os nervos óticos. Com as propriedades hiperregenerativas de seu organismo preternatural, levaria de 24 a 48 horas para completar a regeneração das células das partes lesionadas, chu!)

Poucos minutos depois que Kurumu, Mizore, Ruby e Yukari fizeram sua aparição, o mantícora foi alvejado simultaneamente por uma saraivada de kunais de gelo disparada pela mulher da neve e por um esquadrão de cartas de Tarot voadoras teleguiadas pela magia da menina bruxa que dava ao baralho de papel cartão duplex a dureza do aço cortante. A reação instintiva de Shersorkh foi cerrar a pálpebra direita e a boca, a fim de proteger os pontos mais vulneráveis de sua anatomia externa que, naturalmente, seriam visados por um inimigo que conhecesse a raça, inclusive suas fraquezas. O ataque concentrado de Mizore e Yukari, apesar do susto inicial, contudo, não logrou sequer arranhar a pele impenetrável aos danos físicos causados por armas brancas e de fogo, venenos, explosões e imune a quase todos os feitiços conhecidos.

– Miserável, desgraçado! - praguejou Kurumu, ofegante, aterrissando sem ruído na relva cinza-esverdeada cheia de urzes bravas, envolvendo seus braços em torno da cintura torneada de Mizore e pressionando fortemente seu busto volumoso contra as costas dela. (Nos últimos meses elas haviam se tornado mais íntimas, especialmente depois do beijo "lésbico" entre Kurumu e Mizore, na dimensão natal das mulheres das neves, encantando temporariamente a Mizore e dando o que falar. Chu!) - Sem nem um arranhão no couro...?!

– Putinhas! - vociferou Shersorkh, arreganhando a bocarra e mostrando as arrepiantes fileiras de dentes pontiagudos e serrilhados como facas militares Urutu Plus. - Vadiazinhas!

Escaneando todo o seu redor com o olho bom, o monstro quimérico viu-se repentinamente cercado pelas amigas das duas garotas vampiras e do garoto humano/ghoul. Kurumu estava na forma de súcubo completa, com longas asas membranosas de três metros de envergadura, olhos totalmente negros, orelhas pontiagudas, boca de lábios carnudos vermelho-flamejante, garras enormes e afiadas saindo dos dedos das mãos e cauda muito fina terminada em ponta de seta. Lado a lado com ela, Mizore tinha os cabelos azul-cristal, como que feitos de cristais de gelo, olhos rebrilhando em azul total, pele branca luminosa de uma palidez desumana, beirando a transparência, gélida ao toque, e "mãos" descomunais que pareciam grandes garras de cristais de gelo pontiagudos, de aspecto aterrador (além do indefectível "pirulito-sorvete" na boca). Ruby, com as seis grandes asas negras parecidas com as de um corvo distendidas e empunhando na mão direita um Grimoïre (capa de madeira forrada de couro marrom com a Triluna e o Pentagrama em alto-relevo), lembrava um anjo caído prestes a lançar maldições contra o antagonista. E Yukari, apesar de pequena e graciosa, trazia numa das mãos o baralho cigano aberto em leque, e, na outra, a temida varinha mágica ostentando o Selo de Salomão que transformava as cartas de Tarot em mortíferas lâminas voadoras tão duras como aço.

Súcubo, mulher das neves, animaga e bruxa. Khurshid Shersorkh avaliou as oponentes conforme o nível de ameaça. Dois demônios de classe B média e duas híbridas, Ma-jin, uma de classe A e a outra, classe B superior. Em si, nenhuma delas era páreo para uma mantícora; porém, como um grupo unido elas representavam uma força a ser levada em conta. Se elas combinassem seus poderes com os das duas vampiras e do ghoul, constituiriam um perigo considerável.

Em contrapartida, teriam eles consciência de que enfrentariam uma das criaturas mais terríveis que a Orbe de Urântia (Terra) jamais conhecera?

– Kurumu-chan... Pessoal... - Tsukune correu ao encontro das garotas, seguido de perto por Kokoa, Moka e Kou-chan (que voava). - Fico feliz de ver vocês, mas... Como foi que souberam que estávamos correndo perigo? - Estava usando uma tipoia improvisada no ombro direito, feita com a própria gravata, um lenço de seda de Moka e as fitas de cabelo de Kokoa (os cabelos soltos davam a ela um ar mais adulto).

– Agradeça à Yukari-chan - respondeu Ruby, indicando a coirmã bruxa com a cabeça. - Foi ela, sensitiva como é, quem pressentiu uma energia maligna que avançava na direção de vocês, e, com sua bola de cristal de quartzo, ela viu a aproximação do mantícora, e mostrou essa imagem pra gente. E aqui estamos, todas nós, prontas pra lutar junto com o Tsukune-san, a Moka-san e a Kokoa-chan. - Deu uma olhadela no pequeno morcego e, com um sorriso rápido, acrescentou: - Ah, e você também, Kou-chan.

Coitadinho do Tsukune-san! - Yukari exclamou, num misto de afiliação e doçura. - Todo rasgado, ferido e coberto de sangue! - Ela dardejou um olhar furioso para Shersorkh. - Esse diabo vermelho é amigo da Ishigami e estava tentando matar o Tsukune-san!

– Maldito...! Como se atreve a machucar o Tsukune desse jeito?! - A voz de Kurumu soava quase sufocada pela raiva contida. - Nós faremos você sofrer a mesma dor que você causou ao Tsukune!

– É isso aí - endossou Mizore, cujo tom lúgubre e irremediavelmente baixo não deixava entrever o vulcão de ira que borbulhava dentro dela. - Se prepare pro pior!

– Chega de papo! - rugiu a criatura antropófaga de Nova Arcádia, estufando o peito. Shersorkh curvou o corpanzil de leão, coberto de padronagens e marcas púrpuras, tensionou a musculatura poderosa preparando-se para pular, e ergueu a cauda vermelha escura provida de ferrão em posição de ataque. (Tendo esgotado a sua munição de espinhos letais, demandaria mais 24 horas para voltarem a crescer.) A envergadura total das asas de dragão de oito metros conferia-lhe uma aparência ainda mais aterrorizante.

Sorrindo jubiloso e feroz, ele encarou o círculo que se fechava ao seu redor de então pulou para o meio deles, pousando com um estrondo - um leão atroz entre gnolls. Tentando mirar Tsukune com o olho bom (o direito), Shersorkh abriu sua bocarra e expeliu uma grande bola de fogo na direção do rapaz que era o pivô daquele grupelho heterogêneo de estudantes.

– Se afaste, Tsukune! - gritou Mizore. Com sua habilidade elemental de criar e controlar o gelo e a neve, a yuki onna ergueu uma barreira de gelo mágico - Hyô no Kekkai - à sua frente que resistiu ao impacto do bólido ígneo.

– Hmmm... Que interessante - Khurshid Shersorkh comentou ligeiramente.

Batendo suas longas asas membranosas a dez metros de altura, Kurumu esvoaçou em torno do grupo de amigos, encarando o mantícora que sorria malevolamente com a cauda terminada em aguilhão levantada acima da cabeça chifruda, alguns metros à frente de Tsukune, Moka, Kokoa, Yukari, Ruby e Mizore.

– Sofra, maldito! - exclamou a súcubo, furiosa. (À sua volta reluzia uma aura astral de um vermelho intenso, muito escuro na fronte e em cada lado da nuca, cheia de raios e uma adição de cinza. Chu!)

No mesmo instante Shersorkh viu horrorizado o solo calcário pardacento e firme ser violentamente arrebentado por dezenas de monstruosas raízes semoventes, ondulando como cobras de coloração verde-esbranquiçada, cinza e amarela, que se enroscavam nas suas quatro patas e na cauda venenosa, prendendo-o e imobilizando-o por completo, como se correntes do Tártaro fossem. Depois surgiram plantas carnívoras de tamanho gigante, as terríveis e odiosas garigari e hanabake, ávidas por seu sangue quente e sua carne fresca.

Devorem-no! - bradou a voz da súcubo Kurumu Kurono. Era o próprio pesadelo.

– O que será que deu nele? - Tsukune observava o mantícora enrijecer o corpo, como que preso a grilhões invisíveis, as asas eriçadas, o olho bom esbugalhado de pavor.

– Só pode ser coisa da Kurumu-chan - respondeu Moka. - É o poder de uma súcubo de criar ilusões. Ela já usou esse poder duas vezes antes, lembra? Da primeira vez, no ano passado, contra aquele monstro-lesma, o tal do Nagare Kano, que tentou chantageá-la, e no começo deste ano, contra mim, quando o Horehore-kun, o "vaso de namorico" da Yukari-chan me enfeitiçou, e eu quis pegar você. - Riu. - Não é nem um pouco agradável.

Shersorkh reagiu e, usando suas habilidades mágicas para criar e manipular o fogo envolveu seu corpo em uma aura flamejante, uma labareda de fogo branco-azulado de tamanha intensidade que Tsukune e suas amigas levaram as mãos ao rosto tentando se proteger do calor e brilho intoleráveis. Para sua surpresa, no entanto, constatou que as raízes e as plantas assassinas não eram consumidas pelas chamas que lançava. Impossível...! Não passa de uma miragem!

– Merda, a mente dele está vencendo a ilusão! - praguejou Kurumu, pousando de asas abertas junto dos amigos. Ela achava o mantícora cada vez mais odioso, na medida em que ele a fazia lembrar-se do kitsune Kuyou: todo arrogante e prepotente, com poderes mágicos baseados no fogo, querendo matar o seu amado Tsukune e ainda por cima capaz de derrotar seu poder mental e hipnossugestivo.

– Suas aprendizes babacas de monstro! - rugiu Shersorkh, recuperando sua arrogância habitual. - Truques mentais não são páreo para o Supremo Rei das florestas de Tambar e de Finlaril, de Amien, Kendel e Siltam. Entreguem-me o humano chamado Tsukune Aono, e eu terei misericórdia de vocês. Não gosto de lutar com crianças.

– Quem você tá chamando de criança? - rosnou Kokoa, ferida em seu orgulho.

– Mas são estas "crianças", como você diz, que vão dar uma lição inesquecível no Supremo rei sei-lá-de-onde - disse Mizore, agachada e com as manoplas de cristal de gelo tocando o solo em seu derredor. De repente todo o chão embaixo das patas do mantícora se rompeu e fileiras após fileiras de estalagmites de gelo brotaram em profusão caótica, formando um bloco único que engoliu a fera em questão de segundos. Desta vez não era ilusão, pois todos testemunharam o evento. O corpo felinoide de Shersorkh acabou incrustado dentro de um iceberg em miniaturade cor azul clara, uma prisão de gelo gigante à prova de fuga.

Que nem um escaravelho lacrado em âmbar!

Mizore Shirayuki usara seu poder de yuki onna que consistia em resfriar a matéria a temperaturas abaixo de zero e congelar tanto a umidade do ar quanto a água contida em camadas do subsolo. O chão à sua volta, num raio de vários metros, era terreno regelado.

– Valeu, Mizore-chan! Você mostrou a ele! - Seus amigos a aplaudiram em coro. Em resposta, a linda mulher das neves sorriu timidamente, como era de seu feitio, sem tirar da boca pequena e sensual o pirulito gelado que lhe servia de "refrigerador móvel".

De repente, o ciclópico bloco de gelo começou a brilhar em vermelho, tal como uma rocha em brasa, evaporando numa velocidade assustadora. Em dois segundos assemelhava-se a um pequeno sol branco caído na terra, irradiando tanta luz e calor que quem o fitasse ficaria cego. Em sete segundos, o mantícora Khurshid Shersorkh avançava majestosamente como um tigre real através da densa nuvem de vapor que havia sido um mini-iceberg. Sua padronagem de pelo irradiava uma exótica luminosidade em tom vermelho-azulado.

Os jovens do Clube de Jornalismo ficaram estarrecidos com essa demonstração de poder do demônio greco-indo-iraniano. Mizore, de tão perplexa, deixara cair o pirulito de sua boca, uma falta imperdoável para uma mulher das neves adulta fora de seu mundo.

– Sem chance...! Não pode ser!? - ela balbuciou em voz baixa.

– Abominável garota das neves! - Shersorkh gargalhou. - Você pensou que alguma magia do tipo "concha de gelo" conseguiria prender um ser que tem o poder de emanar luz e calor como o próprio Sol? Posso ionizar toda e qualquer matéria, podendo com isso gerar temperaturas da ordem de 1.000.000 K, comparáveis às da coroa solar. - Percebendo que a autoconfiança das parceiras de Tsukune sofrera um forte abalo, o monstro desferiu mais uma estocada psicológica: - Por Mitra! Se eu liberasse meu verdadeiro poder destruiria todas as ilhas do Japão!

Sete gargantas juvenis engoliram em seco (sem contar o morceguinho, chu!).

– Turma, ele é um só e nós somos sete- disse Tsukune, esforçando-se por demonstrar confiança e otimismo perante suas amigas. - Perdão, Kou-chan, oito! Lembrem-se do que a Ura-san falou pra nós quando treinamos juntos, ontem, no "Paraíso". Somos capazes de qualquer coisa se unirmos nossas forças.

(Para um bom número de fãs, tanto youkais quanto humanos, tal frase tornar-se-ia o bordão mais conhecido de Tsukune Aono, de-chu!)

– Tsukune tem razão! - exclamou Moka, exortando as amigas à ação. - Juntas temos mais chance de vencer. - Apontou o dedo indicador para Shersorkh. - Nós todas contra ele!

– É isso aí! - endossou Kurumu. De seus dedos projetavam-se unhas longas e afiadas como espadas adamantinas, capazes de cortar troncos de árvores que nem manteiga. - Façamos uma formação em linha, como na vez em que demos aquela surra no Gin-senpai, lembram? Foi neste mesmo cemitério.

– Pelos chifres de ouro de Mitra! - trovejou Shersorkh furioso, jogando a cabeça para trás e sacudindo a cabeleira negra em forma de juba, como faria um verdadeiro leão. - Se eu quiser, posso acabar com vocês, moleques, com apenas um jato de plasma de alta intensidade...!

Pulando para frente, Mizore bateu com suas garras descomunais na terra e congelou o pedaço de chão sob as patas animalescas do mantícora num raio de vários metros, a fim de torná-lo extremamente escorregadio para derrubar o inimigo.

– Gosta de patinar, Shersorkh-san? - ela perguntou, irônica. Sendo quadrúpede, contudo, o mantícora resistiu com facilidade à manobra da yuki onna para fazê-lo tombar, pois possuía uma estabilidade muito maior em suas quatro patas do que um "mero" bípede. Shersorkh cuspiu outra bola de fogo, mas, pelejando por manter o equilíbrio no gelo liso e escorregadio e com o campo de visão periférico diminuído pela perda total da vista esquerda, errou o alvo. O grande globo de fogo fez explodir uma antiga lápide em cruz céltica de granito negro, situada entre as árvores desfolhadas. Mizore revidou com várias lanças de gelo disparadas na direção do monstro. Por reflexo, Shersorkh fechou a pálpebra direita. Isto lhe salvou o olho que restava. Foi quando uma nova e violenta rajada de lâminas de Tarot aladas o atingiu. Era Yukari em ação.

– Ainda hei de arrancar o seu outro olho! - disse ela, que tinha o semblante infantil transformado em uma máscara de puro ódio. O largo leque de cartas que portava entre o polegar e os dedos da mão esquerda, mostrando a parte de trás com o Hexagrama, fechou-se e inverteu-se, dessa vez exibindo o outro lado, com as imagens dos Arcanos maiores e menores, sobressaindo-se, entre elas, a da lâmina 16 - A Torre Fulminada, representando a queda, a catástrofe, a destruição divina. Era um "recado" ao adversário.

Por um breve espaço de tempo, prevaleceu uma espécie de equilíbrio entre ataque e defesa: Shersorkh cuspindo a esmo bolas de fogo que passavam ao largo do alvo e despedaçavam as lápides dos túmulos nas imediações, em virtude da necessidade de proteger seu único olho intacto do ataque combinado de lanças de gelo e cartas de Tarot mágicas, da parte de Mizore e Yukari, sem dar trégua sequer por uma fração de segundo, desencadeando explosões de energia mística que abalaram o silêncio sepulcral. Mas então o demônio quimérico correu em disparada, saltou sobre as jovens ayashis e levantou voo. O deslocamento de ar provocado pelo movimento das longas e horripilantes asas draconianas, equivalente a um vento forte grau 7 na Escala Beaufort, agitou os galhos das árvores, tangeu nuvens de poeira translúcida, fazendo com que Mizore e Yukari se desequilibrassem momentaneamente - além de carregar o chapéu de bruxa de Yukari e levantar as minissaias de cinco das seis garotas (exceto Ruby, que, como sempre, usava saia longa), deixando suas calcinhas à mostra perante um embasbacado Tsukune, que teve uma ligeira epistaxe.

– Desgraçado filho duma puta! - esbravejou Kokoa, com o rosto vermelho de raiva e de vergonha, puxando a minissaia para baixo. - Como é que ele consegue voar com todo aquele peso? Mais de meia tonelada, né?

– Do mesmo jeito que os dragões ocidentais, eu acho - resmungou Yukari, correndo atrás do chapéu cônico. - Com capacidade de flutuação criada pelos ossos ocos, leves, e pelo hidrogênio gasoso armazenado nas vesículas de voo como subproduto da digestão dos alimentos, mais as asas iguais às dos morcegos ou dos pterossauros, que se sustentam em quatro pontos e não só em dois, como as das aves. Por outro lado, usando hidrogênio, que é um gás combustível, pra se manter no ar, o bicho também pode produzir fogo, e lançar aquelas bolas de fogo pela boca, desde que disponha de um catalisador pra tanto. Dragões ocidentais conseguem isso mastigando pepitas de platina, ou platina em pó...

– Vejam lá! Ele está voltando! - exclamou Moka, estendendo a mão delicada e apontando o dedo indicador para o alto. - Vai nos atacar por cima!

– Corram! Se espalhem! - gritou Tsukune. Os jovens dispersaram-se em pânico.

Caindo como um meteoro em chamas, o globo incandescente cuspido por Shersorkh chocou-se com o solo raso e pedregoso salpicado por grandes manchas verdes dos juncos, ervas e arbustos baixos de charco. A explosão resultante sacudiu a terra e criou uma profunda cratera fumegante no lugar em que havia um arranjo bizarro de velhas lápides, urnas, estátuas de gárgulas e um Buda sorridente, altares quebrados e caveiras pintadas com tinta fosforescente, tudo coberto de musgo, de hera e outras plantas rasteiras.

– E eu que achava puxado o treino com a "Moka Interior"! - desabafou Tsukune, ofegante. Estava entocado no fundo de uma cova de um metro e meio de profundidade aberta no capim alto, por entre pedras tumulares rachadas. Colocou a cabeça para fora com cautela, e para seu alívio, viu Ruby e Kurumu empoleiradas no alto dos galhos retorcidos das árvores desfolhadas próximas, enquanto Yukari e Mizore, que tinham se escondido atrás de um amontoado de lápides abandonadas, apressaram-se em correr para junto do precioso amigo. Quanto a Moka e Kokoa, as duas haviam se abrigado debaixo do "guarda-chuva" gigante antimíssil que era o Kou–chan, monstruosamente esticado acima delas.

Quando Tsukune saiu do buraco no chão, as garotas foram se reunindo à sua volta. Foi nesse momento que o rugido leonino voltou a ecoar, desde as alturas, pelo descampado.

– Lá vem o velho monstro caolho de novo! - gritou Kokoa, apontando para o céu.

– Esperado de uma mantícora - disse Ruby, pensando nervosamente. - Mantícoras mergulham do céu e agarram a vítima com suas garras frontais, dando mordidas violentas no pescoço ou outro ponto vital. Ou ferem-na usando o ferrão da cauda, cujo veneno pode matar um oni em questão de horas.

– E oShersorkh quer matar o Tsukune! - gritou Kurumu em tom exaltado.

– Vamos formar um escudo humano em torno do Tsukune, rápido! - ordenou Moka em tom apressado. - Você também, Kokoa!

– Peraí, turma - protestou timidamente Tsukune. - Eu também posso lutar, não tô inválido não...

– Com o ombro quebrado? Nem pensar, Tsukune!

– E o Shersorkh tem o olho esquerdo vazado! Empatamos...

Ignorando seus protestos, as seis garotas formaram um círculo defensivo em seu derredor. Corpos, punhos, garras, asas, clava (Kou-chan) e varinha mágica. Tal como uma ave de rapina lançando-se sobre a presa, o mantícora precipitou-se do céu azul-acinzentado em voo rasante e atacou rugindo furiosamente. Ao que tudo indicava estava decidido a arrebatar Tsukune nos artelhos de aço das patas bestiais. (Carne humana! Sua boca salivava de prazer diante da perspectiva de degustar essa iguaria.)

Ruby tirou de seu Grimoïre numerosos ofudas, recitou o encantamento apropriado e atirou-os ao ar. Instantaneamente, os talismãs de papel se transformaram em miríades de corvos formando uma imensa nuvem negra que envolveu Shersorkh, bicando-o sem dó, piorando-lhe a visibilidade, impedindo-o de atacar Tsukune e suas amigas. Graças a esta magia, conhecida como Hyaku Kuro Karasu, os jovens do Clube de Jornalismo escaparam das garras letais do inimigo voador que, furioso, incinerou com uma imensa língua de fogo os pássaros negros que o acossavam de todos os lados, apenas para constatar que os mesmos não passavam de shikigamis, meras marionetes de papel animadas por espíritos de animais invocados por amuleto mágico - e uma bela arapuca, pois, ao tentar destruí-los, os corvos explodiram todos ao mesmo tempo ao seu redor com um relâmpago ensurdecedor, como se milhares de bombas-relógio de grande poder destrutivo detonassem sincronizadas na mesma fração de segundo.

Por um momento Shersorkh ficou desnorteado, só por um momento.

– Eu vou matar todos vocês! - rugiu ensandecido, descendo rasante contra Tsukune e suas companheiras que fugiam, para retalhá-los com as garras afiadíssimas e dilacerar sua carne com as três fileiras de dentes avantajados. - Vou me refestelar na carne e no sangue de vocês!

No mesmo instante Yukari apontou sua varinha na direção de Shersorkh, tentando mirar o olho bom, e gritou: - Ketsumakuen...! Conjunctivitus! - Sua voz estava estridente de desespero.

Imediatamente o olho direito de Shersorkh nublou-se, congestionado, alagado por uma torrente incontrolável de lágrimas. Estava cego!

– Maldição dos Infernos...! - ululou, sem, contudo, se desviar do alvo, atacando com as enormes garras nas patas dianteiras e o ferrão na cauda. As garras passaram longe, o rabo monstruoso de aracnídeo foi habilmente desviado pela clava espinhosa de Kokoa (Kou-chan). Kurumu e Mizore entreolharam-se. Embora sem entender bem o que acontecia, resolveram aproveitar a deixa e partiram com tudo para cima do monstro alado subitamente cego, momentaneamente desorientado. Dueto de Branco e Preto Número 9 ("sofrimento")! Shersorkh não pôde evitar o ataque desferido com precisão pela garota-demônio alada de longas garras afiadas, que abriria um fino, reto e profundo talho da bochecha ao pescoço, rasgando a carne de qualquer ser vivente cuja pele não possuísse resistência sobrenatural. No mesmo instante Mizore saltando para o ar golpeou-o com um soco congelante, acertando seu focinho em cheio, deixando-o entorpecido pelo frio, sem dar tempo de reagir. Tudo isto transcorreu no intervalo de uma batida do coração.

Shersorkh, ainda aturdido e confuso, balançou e vacilou no ar. Seu corpo esguio e flexível fulgurou como o Sol, irradiando tanta luz e calor que dissipou a magia congelante da manopla de gelo de Mizore, que deixava seus movimentos mais lentos.

Apesar de ter sido privada do sentido de visão aguçada, a terrível fera demoníaca suportou o ataque combinado da súcubo e da mulher das neves, que anteriormente fora bem sucedido contra um gigantesco Minotauro e um Doppelgänger personificando a Ura-Moka. Em seguida, o mantícora subiu bem alto, descreveu um arco descendente e, guiado pelo olfato superdesenvolvido que lhe permitia distinguir sua presa humana no solo, em meio a um bando fugitivo de fêmeas youkais, mergulhou atrás deles, ruflando as asas draconeas freneticamente. Foi quando uma voz feminina que vinha de mais alto se fez ouvir:

– Agora é comigo, Khâje Khurshid Shersorkh!

O monstro cego foi de súbito enredado em dezenas de tentáculos de sombras e escuridão que saíam das seis largas asas negras corvídeas de Ruby, que pairava no ar, logo acima dele. Uma aura astral reluzindo em violeta-azul-índigo fluía em torno dela.

– Por todos os demônios ululantes do Tártaro! - Shersorkh debateu-se, mas os tentáculos viscosos de vinte metros de puro negror, fruto da disciplina Tenebrosidade da bruxa, enroscavam-se em torno do corpo leonino, envolvendo-o como feixes de ataduras de uma múmia egípcia, espremendo-o em um amplexo fatal. Que nem amarras infernais, braços do Abismo!

– Nem a "Moka Interior" conseguiria escapar desses tentáculos de trevas - declarou Ruby com ar triunfal. - São feitos do próprio akasha, ou quintessência, que é o coração da escuridão cósmica e que a minha magia tornou palpável e tangível.

– Por Aka Manah, por Druj, por Aeshma e por Dahak! - Shersorkh praguejou urrando, praticamente imobilizado no céu como se fosse vítima de bondage, à medida que aquelas negras tiras espectrais das asas de Ruby lhe drenavam as forças. Uma certa quantidade de rubra energia ígnea, por vontade do monstro, concentrou-se em torno de sua cabeça, comprimindo-se até formar uma coroa de fúria. Isto apenas exacerbou-lhe a ira, dando-lhe uma overdose de força, mobilidade e agilidade, as marcas em sua pelagem começaram a luzir e ele entrou em frenesi rompendo os tentáculos negros de pura sombra. Em seguida, voou em disparada de volta para cima, batendo furiosamente as grandes asas coriáceas cor de chumbo e sumiu aceleradamente entre as nuvens. Isso resultou numa ventania que quebrou os galhos das árvores, arrancou vários arbustos, levantou uma grande nuvem de poeira e fez Tsukune, Moka, Yukari, Kokoa, Kurumu e Mizore se desequilibrarem e caírem um por cima do outro.

Ruby, extenuada, pousou perto deles e recolheu as asas. (Sua tribo, embora ligada à Bruxaria Tradicional, absorvera elementos xamânicos da magia oriental, mesclando-os às suas raízes europeias, ao passo que a família de Yukari, apesar de residir no Japão, preservara a pureza das Tradições Familiares da antiga Bruxaria Europeia, conquanto ambas sejam bruxas hereditárias de sangue puro. Chu!)

Yukari foi a primeira a se levantar e, puxando Tsukune e Moka pelas mãos, exclamou: - Anda, gente, vamos embora! Esse feitiço só afeta a visão por alguns minutos. O Shersorkh vai voltar, e mais furibundo que nunca.

– Então temos que aproveitar enquanto é tempo e fugir daqui - replicou Tsukune. Kurumu e Mizore retornaram às suas respectivas formas humanas. Em três tempos os jovens colegiais e Kou-chan na forma de morcego-spix escafederam-se pelo cemitério afora. Urgia alcançar a segurança da Academia Youkai e notificar o Diretor.

– Que feitiço foi aquele que você jogou no olho do Shersorkh, Yukari-chan? - perguntou Tsukune, ardendo de curiosidade, enquanto todos corriam por entre as árvores e os túmulos, tentando salvar suas vidas.

Conjunctivitus, "conjuntivite" em latim - respondeu a menina bruxa prodígio, sem diminuir o passo. - É uma maldição, quero dizer, um feitiço ofensivo que afeta os olhos e a visão da vítima, mas só temporariamente. E é um dos poucos feitiços que funcionam contra mantícoras. Outros, inclusive as três Maldições Imperdoáveis, são repelidos por sua pele, mas os olhos são um dos seus pontos fracos. E a garganta.

– E a nuca - interveio Kokoa, até então correndo calada ao lado de Moka. - Sei disso porque furei a nuca do bichão. Eu mesma!

– E eu pensava que a magia da Yukari-chan só servia pra fazer chover panelas e bacias nas cabeças dos outros, ou levitar cartas de Tarot metalizadas - comentou Kurumu em genuíno assombro, os enormes seios balouçantes subindo e descendo ritmicamente sob o suéter e a camisa do uniforme escolar enquanto ela corria. - De onde você tirou aquilo?

– Aprendi com uma prima-torta que mora no Brasil e estuda na Escola de Magia e Bruxaria de Yjurerê-Mirim, na Ilha de Santa Catarina. Durante todos os meses em que a Academia Youkai esteve em recesso, eu e ela trocamos correspondência, e quando ela foi nos visitar lá em casa, nas férias da escola de magia, nós duas ensinamos técnicas e feitiços uma para a outra. Desu!

Não houve quem não se admirasse com as revelações da pequena Yukari. Tsukune rememorou igualmente o que Moka lhe confidenciara, naquela manhã no refeitório, sobre o bullying sofrido no ginasial japonês, e o que ele próprio contara a ela sobre sua nova amiga, uma humana, brasileira, socorrida por ele durante o período de recesso escolar. Pior ainda, Kurumu e a "Moka Exterior" saindo na porrada com dois ciclopes e liquidando os gigantes! Pensou com seus botões: "Quão pouco, na verdade, a gente conhece uns dos outros, apesar da nossa tão alardeada amizade de mais de um ano e meio."

– Só pra gente se situar, Yukari-chan - começou a dizer Mizore numa voz baixa e macia - por quanto tempo o Shersorkh vai ficar cego?

– Uns quinze minutos, talvez vinte, no máximo. Gastei bastante youki nisso, desu.

– Eu só queria entender porque esse cara quer matar o Tsukune - disse Mizore num murmúrio. - Além do gosto por carne humana, como toda mantícora.

– É porque eu sou o único que pode tirar a cruz do rosário da Moka-san - respondeu Tsukune amargamente. - Ele acha que, se eu for morto, o superpoder da Moka vampira não despertará nunca mais.

– Será que ele não sabe sobre o Belmont? - indagou Kokoa, aludindo ao Chicote Lendário "Matador de Vampiros", que também tinha o poder de cancelar o selo sagrado do rosário de Moka.

– Certamente que não - Ruby garantiu com firmeza. - O Belmont é um item mágico supersecreto, e, se nem a Ishigami sabe dele, muito menos o Shersorkh, que só dispõe das informações dadas pela Ishigami.

"Oba!", pensou Kokoa toda contente. "Quer dizer que, mesmo que o Tsukune morra, a Moka onee-chan pode se transformar na Moka onee-sama numa boa, sem precisar tirar o rosário. Que alívio!"

(Prudentemente, preferiu guardar suas reflexões só para si, pois tinha consciência de que não seriam bem recebidas na presença do "Fã-Clube do Tsukune Aono". Chu!)

– Seja como for, tem algo de errado com esse mantícora, esse Shersorkh... - conjeturou a karasu onna, como se entabulasse um monólogo. - Ele não está usando todo o poder que tem, como se estivesse se segurando contra nós.

– Tá falando daquela baboseira que ele disse sobre destruir o Japão? - retrucou a cética Kurumu, cujo ritmo diminuía a cada passada. - Pura lorota, eu aposto.

– Não é não, Kurumu-san - interveio Yukari em defesa da bruxa mais velha. ("Nada é mais forte nesse mundo que o laço entre as bruxas", é o que dizem, chu!) - Mantícoras são bestas-feras mágicas que os antigos gregos e persas localizaram na Índia, mas que nós, os bruxos, sabemos serem nativas dos Bolsões Dimensionais de Arcádia. São tão poderosas quanto os outros monstros que são mestres do fogo, como youkos, fênixes e dragões ocidentais. Um bicho desses, irado, consegue destruir cidades inteiras e mover montanhas com facilidade, desu!

– Ei, devagar aí! Aonde pensam que vão? - inquiriu uma voz gutural e áspera que fez Tsukune e suas companheiras se voltarem, sobressaltados, na direção de um amontoado ruinoso de pedras de mármore, manchado de umidade e parcialmente escondido entre a vegetação rasteira, que devia ter sido um monumento funerário há mais de dois séculos. Um ser vagamente humanoide saiu de trás dele. Tinha cerca de dois metros de altura e um corpo gorilesco que pesava trezentos quilos, com braços anormalmente longos, verdadeiras pernas dianteiras, e mãos e pés de tamanho descomunal. Usava o uniforme de estudante da Academia Youkai, mas os pés e as mãos enormes, assim como a face grotesca, bestial, de focinho achatado com narinas amplas, orelhas pontudas, dentes caninos proeminentes e grandes olhos azuis e ardentes, estavam cobertos de pelagem abundante duma tonalidade azul-petróleo. Parecia o personagem Hank McCoy, o "Fera", dos quadrinhos americanos dos X-Men. - Não deixarei que voltem pra academia. Vocês já eram!

Kurumu e Mizore assumiram posição de ataque, garras longas e afiadas e manoplas de gelo pontiagudo à mostra, e Yukari levantou sua varinha mágica. Tsukune, porém, tomou a frente, e disse:

– Deixem ele comigo.

Seus olhos já não exibiam nada de humano; o resplendor avermelhado das íris e as pupilas em fendas verticais mostravam que estava na forma de semighoul, ou semicarniçal.

Com um rugido que poderia ser ouvido a duzentos metros de distância, o medonho youkai gorilesco se lançou na direção de Tsukune, que viu a enorme criatura de pelos azuis e aspecto quase-humano correndo sobre as pernas curtas e curvadas cobrir a distância que os separava numa velocidade assustadora, os braços compridos e disformes estendidos, terminando em mãos descomunais com garras negras prontas para despedaçá-lo. Esperando o momento certo, Tsukune realizou uma rotação completa no eixo da perna direita, ficando de costas para o antagonista, e deu um potente coice para trás que acertou o youkai no estômago. Tamanho foi o impacto do chute giratório, ushiro-geri, que arremessou o homem-fera por vários metros contra um grande tronco de um olmo, que partiu-se ao meio.

– Fraco - disse Tsukune em tom frio. Os olhos vermelhos de pupilas fendidas faziam-no parecer um demônio fugido de algum abismo infernal. - Conheça seu lugar.

– Parece que a Ura-san está fazendo escola - cochichou Yukari para Moka.

As garotas não cabiam em si de espanto. Já haviam testemunhado a superforça de Tsukune total ou parcialmente transformado em ghoul, mas era um tanto quanto chocante repetir o bordão que caracterizava a versão mais sombria e arrogante, cheia de si, da bela vampira Moka Akashiya - a temida "Moka Interior". (Nessa exibição de força e poder haveria o desejo inconsciente de provar que estava à altura da supervampira arrogante, não apenas como discípulo, mas, igualmente, como parceiro, e que já deixara de ser um reles rapazola humano fracote necessitando da proteção de um bando d emulheres youkais?)

O monstro azul peludo jazia inconsciente no chão. Apesar de não ter morrido, sofrera várias escoriações em seu corpo atarracado, além de ter quebrado as duas pernas, as clavículas direita e esquerda e cinco costelas do lado direito. Sangrava pelo nariz e ouvidos.

Os vívidos orbes castanhos de Tsukune espelhavam seu regresso à condição humana. Disse: - Não podemos levá-lo conosco. Assim que chegarmos na academia, vou pedir que mandem alguém da enfermaria pra socorrer este cara.

– Pessoal... - principiou Kokoa, que detectara uma formidável youki vinda do ar, direção leste-oeste, em alta velocidade.

– Afinal, por que é que esse manezão queria comprar briga com a gente? - Kurumu indagou-se em voz alta.

– Porque ele trabalha pra mim! - trovejou das alturas uma voz já conhecida.

– Shersorkh voltou e vai nos atacar de novo! - gritou Ruby. Os olhos dos jovens procuraram pelo inimigo, no céu sempre nublado. E lá estava ele - um prodigioso vulto alado que se aproximava vertiginosamente trazendo consigo a desgraça, a destruição e a morte.

Era óbvio que o efeito do feitiço Conjunctivitus de Yukari havia passado.

– Isto deverá retardá-lo - exclamou a karasu onna, que tirou de seu inseparável livro de conhecimentos mágicos um pergaminho com o octograma, símbolo místico de plenitude e regeneração, ligado ao I Ching, com o qual invocou centenas e centenas de corvos que se transformaram em perfurantes shurikens de ferro que passaram a atacar o mantícora em pleno ar. Shersorkh reagiu por instinto, golpeando furiosamente com as patas dianteiras de cinco artelhos providos de garras afiadíssimas, enquanto flutuava no ar batendo suas escamosas e coriáceas asas de dragão. Mas as longas e finas lâminas mágicas o atacavam na face repetidas vezes e se desviavam de suas patadas, sem dar trégua, o que o obrigava a fechar o olho único a fim de evitar que fosse lesionado e confiar em seus outros sentidos.

– Seus truquezinhos de mágica não vão livrá-los de mim! - a criatura quimérica urrou enquanto tentava evadir-se do assédio agressivo dos shurikens de Onmyoujutsu de Ruby, voando bem alto à velocidade do raio e lançando rajadas de fogo plasmático. Grande parte das lâminas aladas envolvidas com youki cravara-se no rosto, garganta, nuca e dorso do mantícora que nem arpões numa baleia, sem, entretanto, causar maiores danos à pele grossa que lhe proporcionava uma defesa contra armas mundanas e a maioria dos feitiços.

– Vejam só, aquele ouriço-cacheiro voador gigante! - exclamou Yukari alegremente. - Ou então, é uma équidna-de-focinho-curto voadora gigante, desu.

Os demais riram.

– Seus merdinhas, riam disto! - gritou Shersorkh com raiva. Ato contínuo, ele abriu sua boca e expeliu uma bola incandescente azul-branca que caiu como um meteoro em chamas no local em que naquele momento estiveram Tsukune e suas amigas.

No momento seguinte, só se via a poeira fina e quente que subia da cratera no chão.

– Sorte nossa que ele não consegue fazer pontaria com um único olho - resfolegou Kurumu, que correra como nunca. Seu peito arfava e seu coração batia apressado.

– Isso não o torna menos perigoso - retrucou Moka, sua respiração tão ofegante quanto a da súcubo. Junto delas estavam Kokoa, tendo Kou-chan pousado na sua cabeça, Yukari, Tsukune, Ruby e Mizore.

– Vai nos atacar outra vez! - exclamou Kokoa, que apontou, trêmula, para o demônio voador animaloide que descia rápido na direção dos estudantes, que podiam visualizar no interior daquela bocarra escancarada uma enorme esfera de plasma candente se formando.

– Não esquenta não, pessoal, que eu tô aqui - replicou Mizore, com sua tradicional impassibilidade e frieza. Estendeu a mão revestida de enormes cristais pontiagudos de gelo para cima e, mediante o congelamento da umidade do ar, criou uma cúpula de gelo sólido, acima e ao redor do grupo de amigos, e maciça o bastante para resistir à bola incandescente lançada por Shersorkh.

Explosão ígnea! O escudo de gelo vibrou sob o impacto da explosão de plasma.

– Tomara que esse iglu não exploda junto com a gente - resmungou Kurumu, agachada juntamente com as cinco amigas, seu "companheiro de destino" e Kou-chan no interior da cúpula. Lá fora, as bolas incandescentes das explosões de plasma relampejavam e estrondavam de encontro às grossas paredes de gelo.

–Gelo elemental não se quebra nem derrete com facilidade - retrucou Mizore, sem se alterar. Sua mão direita erguida, coberta de cristais de gelo grandes e pontiagudos, incrustados, de um azul transparente, emanava youki na forma de ondas de frio implacável para as paredes e o teto em forma de abóbada, para reforçá-los. Gastava energia espiritual rapidamente. Não demoraria muito para ficar esgotada.

– Acontece que é fogo elemental o que as mantícoras controlam - contrapôs Ruby. - Fogo e magma elementais como os que Shersorkh usa são de consistência etérica, geram altíssimas temperaturas queimando tudo o que estiver no caminho, inclusive o próprio fogo comum, até destruir o seu alvo. Se formos atingidos, sofreremos queimaduras de quinto e sexto grau que nunca cicatrizam, de tão venenosas que são!

Outro impacto! O escudo de gelo começou a derreter.

Percebendo que Mizore não aguentaria mais tempo, Moka voltou-se para Tsukune.

– Rápido, Tsukune! Tire o meu rosário! - disse ela. Seu olhar firme e sua expressão determinada mostravam que estava disposta a enfrentar o perigosíssimo animaloide gigante que possuía o poder do Fogo numa luta uma a um.

– Moka-san, nem mesmo você... - balbuciou o humano. Ele a encarou seriamente e por um momento apenas pareceu-lhe ver os rubros olhos hitoe da vampiresca Ura sobrepostos aos olhos futae esmeraldinos da doce Omote, a cor-de-rosa dos cabelos desta sobreposta pela prata estelar dos cabelos daquela, quando, inesperadamente, a linda jovem hematófaga entrelaçou sua mão esquerda na mão esquerda dele. Veio-lhe, num átimo, a vívida lembrança do dia anterior, ambos caminhando de mãos dadas pela área comercial, como se estivessem no primeiro encontro romântico e não numa sessão de treinamento para aprender a controlar o seu youki corporal. De repente uma voz ecoou em sua mente, uma voz de contralto que ele de pronto identificou como sendo a da Moka Interior. Ura-san!

"Tsukune, quem não acredita em mim não é digno de treinar comigo", disse a voz no interior de sua mente. Tsukune teve um leve sobressalto. A Ura-Moka estava se comunicando com ele por via telepática! Não que fosse inédito; a personalidade sombria e sedutora da gentil Moka já empregara telepatia antes, para falar-lhe, como na vez em que o gigantesco troll Chopper Rikiishi o desafiara e Moka, para salvá-lo (de novo), injetara-lhe nas veias o sangue vampírico que lhe dera temporariamente a superforça necessária para bater o truculento adversário. O Laço de Sangue! Tsukune estremeceu no seu íntimo com a ideia. Ele conseguia receber mensagens telepáticas da Moka Interior por causa do Laço de Sangue que ambos compartilhavam? Significaria que ele e Moka estavam ligados por uma relação mística de servo meio-humano e mestra vampira, como pensavam Kokoa e o mantícora Khurshid Shersorkh? (Se bem que a Ura-Moka já usara telepatia para "falar" com Kurumu, quando a súcubo lutou com o Doppelgänger que copiara a forma da vampira e mantinha Moka e Tsukune como reféns, de-chu!)

– Moka, isso não é hora pra paquerar o Tsukune! - protestou Kurumu, a aflição misturada ao ciúme. - Anda, Tsukune, tira logo o rosário dela!

Não foi preciso insistir. A mão de Tsukune removeu a cruz do rosário preso à gargantilha de Moka, que por obra de magia lacrava o superpoder da vampira, no exato instante em que uma grande rajada de energia plasmática disparada por Shersorkh alvejou em cheio o escudo esférico fazendo o gelo derreter e evaporar, resultando em uma nuvem de vapor que quase sufocou a todos.

Como já tantas vezes antes, uma explosão silenciosa e avassaladora de youki de cor vermelho-púrpura intensa, tendo Moka por epicentro e tamanha densidade a ponto de materializar-se em ondas concêntricas de morcegos espectrais revoando em torno dela, alastrou-se até um quilômetro e meio enquanto o poder adormecido da vampira despertava em toda a sua plenitude - e mais uma vez operava-se a assombrosa transfiguração da linda e meiga Moka de olhos verdes e cabelos róseos na sua assustadora e sensual alterego de cabelos prateados e olhos vermelhos de pupilas fendidas.

O inimigo e os amigos viram-na ao mesmo tempo quando a pesada aura demoníaca acompanhada de forte pressão espiritual decorrente da liberação de sua youki se abrandou.

Porte aristocrático, olhar altivo e penetrante, a belíssima vampira postava-se à frente de Tsukune, Kurumu, Mizore, Yukari, Kokoa e Ruby, mas de costas para os mesmos, tendo sua atenção e sentidos sobrenaturais focados no imenso demônio alado de corpo leonino e semblante quase-humano que acabara de pousar com um estrondo alguns metros adiante. O impacto de suas patas fez o solo tremer e simultaneamente abriu inúmeras rachaduras e ergueu uma tênue camada de poeira no local. Moka limitou-se a levantar uma sobrancelha, ligeiramente interessada. Tática de intimidação.

Em nome de Mitra e de Zeus! - A voz de trovão do mantícora parecia encher o mundo. Diante dele estava uma jovem mulher de corpo flexível e magnífico, pele de porcelana, seios cheios e erguidos, quadris curvilíneos e pernas esguias e longas, que o uniforme de colegial realçava ainda mais. A rica cabeleira sedosa cor de prata caía sobre suas costas, batendo abaixo da cintura. Os rubros olhos amendoados, cor de granada, fuzilavam-no. Ela era tão feroz e indomável como um tufão, fria e voluptuosa como uma deusa virgem da guerra. - Eis aí uma oponente que eu teria o maior prazer em matar. Mas a Ishigami quer você só pra ela. E eu prometi entregá-la!

– Tente, se for capaz - Moka retrucou, lacônica, posicionando-se para o ataque, olhos em brasa e a boca sexy e delicada de lábios vermelhos aberta num esgar que exibia os caninos alongados e pontudos, alvíssimos, como adagas minúsculas de marfim branco.

Instantes depois, uma espiral flamejante saída da boca de Shersorkh expandiu-se em um vórtex de fogo mágico que tragou a vampira, sem que ela tivesse tempo para reagir.

– MOKA-SAN!!! - berrou Tsukune, fora de si.


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Notas finais do capítulo

Moka derrotada??? Queimaduras de 5º ou 6º grau que nunca cicatrizam??? (Perdão, na realidade cicatrizarão, sim, quando a Ishigami a transformar numa estátua de pedra, por toda a eternidade!)
Yukari-chan empregando o feitiço "Conjunctivitus" contra Khurshid Shersorkh foi, indiretamente, um pequeno crossover com o universo de Harry Potter. Mas a "Escola de Magia e Bruxaria de Yjurerê-Mirim", em Santa Catarina, é criação minha; é que num desses foruns da vida surgiu uma polêmica acerca de uma referência da própria Rowling sobre uma estudante brasileira de uma eventual escola de magia no Brasil - além das já notórias, europeias, de Hogwarts, Beauxbatons e Durmstrang, e da norte-americana de Salem - , e eu imediatamente pensei na ilha de Santa Catarina, ou Florianópolis, a "Ilha da Magia" (chamada pelos indígenas de "Yjurerê-Mirim"), que nos séc.s XVII e XVIII converteu-se num reduto de praticantes da bruxaria europeia vindos infiltrados entre os colonos açorianos.
"Khâje" ou "Khwaja": título honorífico em persa e urdu, muito usado na Índia, Irã, Afeganistão, Paquistão. Sendo o mantícora um demônio indo-iraniano, Ishigami usou-o em relação a Shersorkh, por deferência, ao encontrá-lo no restaurante da área comercial (no Prólogo), mas Ruby, ao contrário, o fez mais por sarcasmo e ironia quando o prendeu com os feixes de trevas das suas asas.
No próximo capítulo ("Batalha entre as Campas, parte 2"), haverá ainda mais ação e emoções! Quem ler, não se arrependerá.



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