Treina Comigo escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 10
Batalha Entre as Campas (parte 2)


Notas iniciais do capítulo

Enfim, após mil-e-um adiamentos (p/motivos de horários de trabalho, falta de tempo, falta de internet, perturbações domésticas e p/aí vai), o presente capítulo está PRONTO! Além de ser o mais extenso, talvez seja o MELHOR ou o PIOR capítulo que já escrevi até agora; que os leitores julguem, e opinem a respeito (e não desistam no meio do caminho xD). O que vão ler é fruto de um bocado de trabalho duro, sangue, suor e lágrimas no teclado.
Desde já, muito obrigado!



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O Shamash celeste ouviu as orações de Gilgamesh e grandes ventos levantaram-se contra Chumbaba: Vento Grande, Vento do Norte, Vento Tufão, Vento da Areia, Vento da Tempestade, Vento Gelado, Vento Temporal, Vento de Fogo! Oito ventos ergueram-se contra ele. Chumbaba tem os olhos batidos por eles novamente. Caminhar para a frente lhe é negado, recuar também lhe é negado, e então Chumbaba desistiu.

Da Epopeia de Gilgamesh, Suméria, quinta Tábua, IV, 12 - 20.

– Meu vórtex de fogo desintegra objetos inanimados ou criaturas vivas, enviando-os pela quinta dimensão, e os reintegra no ponto de chegada - explicou Shersorkh, parecendo sentir prazer diante dos rostos perplexos e horrorizados dos amigos de Moka. - O que, no caso específico da amiga de vocês, significa as mãos e os cabelos ofídicos da Ishigami, que a transformará numa estátua de pedra, por toda a eternidade.

Um uivo lamuriante assinalou a aparição de um lobo-cinzento de grande porte - Canis lupus communis - na área do tétrico cemitério profanado.

– Mulheres, cheguei! Desculpem a demora - soou uma voz masculina que falava com sotaque kansaiben. Todos se viraram para a direção de onde vinha aquela voz - e lá estava ele!

– Gin-senpai! - exclamaram em coro Tsukune e suas amigas.

Ginei Morioka se achava encarapitado no túmulo mais próximo. Estava vestido de calça cáqui e nu da cintura para cima, em sua forma meio-youkai de "Glabro" - um tanto mais alto, forte, musculoso e peludo, com dentes caninos proeminentes e unhas muito compridas nas mãos e nos pés - , ostentando, tal como era de se esperar, a bandana escarlate na cabeça e, no peito largo, hirsuto e robusto, o colar prateado que era o emblema totêmico de sua tribo de lobisomens. E - por essa ninguém esperava - trazia nos braços a vampira Moka, sã e salva, não obstante estarem com as roupas e os cabelos um pouco chamuscados.

Tinha usado sua forma Glabro, 75% humana e 25% lupina, para resgatar Moka à velocidade da luz - gastando uma fábula de youriki para fazê-lo em plena luz do dia, sem a presença da Lua no céu. (Ao contrário de seus "primos" do Clã da Terra, os Filhos de Gaia, que podem se transformar quando querem, a raça de Gin, os Filhos de Luna, só assumem a forma youkai suprema de Crinos, metade lobo, metade homem, nas noites de plenilúnio.) A fina aura de energia que rodeia o corpo do licantropo em supervelocidade os protegeu da tremenda fricção, mas não do plasma envolvente do vórtex de Shersorkh.

Apesar disso, a expressão no rosto da bela e orgulhosa kyuuketsuki de olhos de rubi e cabeleira de prata não era propriamente de felicidade ou de gratidão. (Quiçá preferisse ser salva do vórtex de plasma por Tsukune, de-chu!)

E o grande lobo-cinzento de olhos dourados acocorado ao pé do cenotáfio outra coisa não era senão o familiar de Gin, isto é, a corporificação material do excedente de 50% de sua youki que criara vida própria e tomara forma lupina. Gin o chamava simplesmente de "irmão cinza".

– Agora é um lobisomem pulguento...! - exasperou-se o mantícora Shersorkh, que perdera sua presa para o esperto lycan. Isto o enfureceu fazendo quadruplicar sua força e poder. As garras medonhas nervosamente rasgaram fundo o solo de calcário marrom e pedregoso.

– Pulguento não! - protestou Ginei indignado. - Quem ensinou às meninas que estão te dando a maior canseira tudo que elas sabem em matéria de combate corporal fui euzinho aqui, o presidente do Clube de Jornalismo da Academia Youkai. Sacou, malandro?

– Morioka Ginei, leve-me para baixo imediatamente! - ordenou a garota-nosferatu, num tom autoritário e gélido que faria até o mais corajoso dos lycans tremer na base.

Obediente, Gin pulou rapidamente para o chão, pousando sobre os pés hominídeos e, ato contínuo, Moka saltou dos braços do metamorfo e pousou de pé com a agilidade de um gato. Elegante e orgulhosa como sempre, ela mal se dignou a olhar para ele quando as outras garotas e Tsukune acorreram, esbaforidos, em sua direção.

– Não tem de quê, Moka-chan - resmungou Gin, revertido à forma completamente humana, num tom que não escondia um pequenino sarcasmo sobre a aparente ingratidão da hematófaga cuja linda epiderme acabara de ser literalmente salva do fogo por ele, que, mais uma vez, se arriscara pelos amigos sem se intimidar com as consequências. Ele, o famigerado mulherengo e voyeur da escola que se divertia passando a mão boba nos seios e bundas das moças ao menor descuido delas (logicamente que ele não tentaria isso com a "Moka Interior"; seria morte certa, chu!)

– Moka-san...! - exclamou Tsukune, suor porejando na testa e na palma da mão de tanto nervosismo. Estava feliz de vê-la a salvo, se bem que por outro lado, não conseguisse evitar sentir lá no fundo uma ponta de ciúme por ver o veterano carregando nos braços a sua Akashiya Moka-san. (Veio-lhe involuntariamente à memória uma cena nebulosa de si próprio, nu da cintura para cima, olhos avermelhados de ghoul, trazendo em seus braços a vampira Moka de cabelos cor de prata, resgatada por ele da fúria assassina do youko Kuyou, o temido líder da Comissão de Segurança Pública da Youkai Gakuen, após a batalha feroz contra a Polícia Estudantil, um ano e meio atrás. Como adivinhar que aquilo se passara em uma realidade alternativa um tanto diferente da sua, à qual só tinha acesso através dos sonhos que eram o elo mental inconsciente que o conectavam ao seu "análogo" especular nessa outra realidade? Chu!) - Você tá bem?

– Está tudo bem comigo, Tsukune - respondeu a vampira, empregando um tom bem suave para tranquilizá-lo, mas sem perder o ar altivo e superior que lhe era inerente (assim como aos vampiros em geral). - Parece que esse lupino pervertido - disse, indicando Gin com um movimento da cabeça - está aprendendo com você a cometer loucuras para ajudar os amigos e companheiros. Bakayaro! - Ela deixou um sorriso fugaz e sensual aflorar-lhe nos lábios coralinos. (Ser taxado de idiota ou bakayaro era o máximo de gratidão que Gin, um lobisomem, poderia esperar da parte da orgulhosa vampira; mesmo sem levar em conta o milenar ódio racial que separava entre si vampiros e lobisomens, o fato de ser um pervertido assumido fazia com que fosse detestado pela Ura-Moka, que não perdia a oportunidade para rebaixá-lo, ao contrário da outra personalidade, a "Moka Exterior", ou Omote, que apesar dos pesares o tinha na conta de "um bom amigo". Chu!)

Ginei apenas torceu a boca, mas não falou. Ele haveria de provar o seu valor para ela.

Domo arigato, Gin-senpai - Tsukune agradeceu ao veterano (uma vez que o orgulho superbo de Ura-Moka não lhe permitiria tal atitude). - Eu pensei que a velocidade de um lobisomem só aumentasse em função da luminosidade da Lua, e não durante o dia.

Ele ainda podia lembrar-se de Ginei, na forma de Crinos, tentando tomar Moka à força, valendo-se da supervelocidade sob o clarão sinistro de uma Lua cheia cor de sangue (Tsukune e Moka tinham acabado de entrar para o Clube de Jornalismo), mas sendo derrotado clamorosamente pela vampira livre do selo mágico quando a visão do globo lunar foi toldada por uma nuvem que escureceu o céu noturno da escola.

– Pois trate de rever seus conceitos, garoto - retrucou Ginei, com um certo ar de superioridade que pareceu incomodar Moka. - E você não é o único que tem treinado feito um louco, dia e noite. Mikogami-sama quer todo mundo em ponto de bala, pra ir à guerra contra a Fairy Tale... Ooops!

Agindo mecanicamente, Ginei agarrou Tsukune e com um impulso vulcânico de seu corpo inteiro - em sua forma Glabro - saltou para cima de um enorme olmo que projetava-se fantasmagórico sobre um sepulcro secular encimado por uma cruz céltica, arrastando atrás de si o colega humano, pois vira o mantícora furioso cobrir a distância entre eles com a velocidade de uma bala ao ser disparada por um fuzil de assalto FAL e não pensou duas vezes. Sua habilidade de percepção de movimento, assim como seu tempo de reação, agilidade e coordenação corporal, mesmo sem mudar para Crinos, superavam largamente os de um mero mortal. A mandíbula tripla de aço do monstro colossalmente forte que podia triturar ossos com apenas uma mordida abocanhou apenas o ar por uma mera fração de segundo. Ginei concluiu afinal que a velocidade e os reflexos sobre-humanos de Shersorkh durante o ataque de fúria eram quase iguais aos seus, se bem que o lobisomem fosse talvez bem mais rápido como Crinos, e não gostou dessa conclusão.

Também Moka reagiu com a rapidez de um raio, tendo detectado de antemão a aura assassina em torno do mantícora ao "ler" sua youki, sua energia sinistra. O segundo durante o qual Mizore, Kurumu, Yukari, Ruby e Kokoa foram dominadas pelo susto causado pelo ataque-relâmpago da fera árcade bastou para a graciosa vampira de madeixas prateadas que se esquivou das garras e mandíbulas letais de Shersorkh com um giro de corpo para o lado, e, agarrando a besta mágica de 650 quilos pelas patas traseiras ainda em pleno ar, rodou com ele uma, duas vezes antes de arremessá-lo com toda força de encontro ao campanário de uma igreja arruinada, coberta de hera, a vários metros de distância de onde se achava. A construção ancestral desabou com um forte estrondo, reduzindo-se a um monturo de escombros poeirentos que soterrou o mantícora. Tudo isto decorreu num átimo de segundo.

(Podendo canalizar sua youki diretamente em sua musculatura, convertendo-a em "puro poder", Moka Akashiya não teria a menor dificuldade em levantar um mamute-imperial de cinco metros de altura e dezesseis toneladas com as mãos nuas; e sua velocidade e reflexos imensamente rápidos só perdiam para os de Ginei Morioka na forma Crinos, sob a luz do luar, de-chuu!)

– Esmagado debaixo de toneladas de pedras...! - exclamou Mizore em voz baixa. Kokoa, Yukari e Kurumu aplaudiram alegremente.

– Nada de cantar vitória antes do tempo! - disse Moka, com a voz fria, baixa e sombria de sempre, em face dos gritos de júbilo que se fizeram ouvir da parte de suas companheiras. - Mantícoras não são orcs para serem derrotadas tão facilmente. Shersorkh ainda pode se levantar e vir com tudo para cima de nós. - E acrescentou, com mais ênfase: - Na realidade é o que ele fará!

Foi quando Ginei, segurando Tsukune pela gola, pulou da árvore para o chão.

Arigato, Gin-senpai... Desta vez por mim - agradeceu o atônito Tsukune, fazendo três respirações rítmicas, inspirando, expirando e pausando em tempos iguais, bem devagar. - Moka-san - disse ele, dirigindo-se à vampira de beleza etérea e postura aristocrática que estava de costas para eles, indiferente e altiva, como se nada tivesse acontecido - se você e o Gin-senpai combinarem seus poderes de kyuuketsuki e ookami-otoko com os nossos, então nós derrotaremos o Shersorkh.

– Por mim, tudo bem - replicou Gin, de volta à forma completamente humana e sorrindo ironicamente. - Isto é, se a Moka-chan não fizer caso de lutar lado a lado com este "lobo pervo". - Examinou ligeiramente o próprio corpo, seminu, musculado e esguio, parecendo satisfeito com o que estava vendo.

Ela olhou para eles sobre os ombros. Seus orbes oblíquos de coloração rubro-incandescente e pupilas afiladas não se detiveram em Tsukune, mas mediram Ginei de cima a baixo. - Excepcionalmente, concordo com você, Tsukune - disse ela, sem perder o ar de superioridade. - Pela agilidade dele, podemos aproveitar esse "saco de pulgas" na luta. E o Lobo Cinza, é claro... - Mirou de relance o familiar-lobo que permanecia impassível, sentado ao pé do velho túmulo encimado pela cruz celta. - Mizore, Kurumu, Yukari - disse, virando-se para as três garotas ayashis - quero que vocês tirem o Tsukune daqui. Levem-no sem demora de volta para a academia.

– É pra já - replicaram de pronto Yukari e Kurumu, gentilmente puxando Tsukune pelo braço bom. Mizore, sem emitir um som, fez menção de acompanhá-los.

– Peraí, Moka-san... Meninas... - Tsukune protestou enquanto era puxado por elas. - Vocês viram que eu também posso lutar, não viram?

– Tsukune, se eu fosse você me preocuparia antes em me colocar a salvo, depois em curar meu ombro fraturado, e afinal em me preparar pra sessão de treinos livres hoje à noite - retrucou friamente a kyuuketsuki de cabelos branco-prata, sem se virar para encará-lo. - Só porque você nocauteou um bakemono de categoria inferior não significa que esteja no meu nível... nem remotamente perto disso. - Ela deu uma risada escarninha e brindou-o com um olhar irônico e um tanto malicioso, o que fez o rapaz respirar mais pesadamente. - Conheça o seu lugar, Aono Tsukune!

Em seguida acrescentou, empregando a "voz vampírica" que obrigava qualquer um a obedecê-la (em particular se tivesse seu sangue sugado por ela): - VÁ EMBORA. JÁ!

Tsukune acedeu. Era-lhe impossível resistir ao comando dela, cujo alterego suave bebia regularmente seu sangue. Afastou-se a passos rápidos, escoltado por Kurumu, Yukari e Mizore.

– E eu? - indagou Ruby.

– Ruby, quero você aqui com a gente - respondeu Moka. - Sua magia é poderosa, vai nos dar cobertura.

"No fim ela sempre comanda tudo", meditou Tsukune com seus botões. Mesmo sem usar a Voz vampírica, a capacidade de liderança da Moka Interior era inegável; tratava-se de um aspecto natural da personalidade dela. Uma guerreira nata e uma líder formidável. Consolou-se pensando que Moka o estava protegendo ao tirá-lo da linha de fogo, porque, bem lá no fundo, no mais recôndito de seu coração, ela gostava dele, mas seu orgulho de casta e de raça nunca deixaria tais "fraquezas de sentimento" virem à tona.

– Eu não vou ficar de fora dessa! - exclamou a geniosa Kokoa. Ato contínuo, ela apanhou o pequeno e rotundo morcego transmorfo que era seu familiar, e ordenou-lhe de modo peremptório: - Kou-chan! Se transforme em rapieira!

Em dois segundos, o quiróptero de corpo castanho-ocre mais ou menos arredondado (que na realidade não passava da "forma provisória" de uma besta alada de grande porte que pesava cem quilos) transmutou-se, adelgando-se na forma de uma espada comprida e estreita de 1,5m de comprimento por 2,5cm de largura, idêntica a uma rapieira alemã do século XVII. O "copo" do punho da espada na realidade era a cabeça de Kou-chan.

– Pois bem - concordou Moka. "Duas vampiras de linhagem nobre com certeza bastam para dar conta de uma mantícora", concluiu mentalmente. "Que dirá então se unirmos forças com dois lupinos e uma animaga que comanda os elementos da natureza...!"

De repente os cinco (e Kou-chan) sentiram uma imensa quantidade de youki procedente do monte de escombros de pedra que havia sido a torre do campanário que desabara soterrando o mantícora. Todos assumiram suas posições de combate.

A onda de choque gerada na explosão de youki pulverizou as pedras numa fração de segundos. A aura de energia maligna jorrando qual gigantesco e brilhante gêiser etérico era tão ou mais violenta e grandiosa que a de um supervampiro como a Moka Akashiya!

Moka avaliou a situação com uma precisão extraordinária e reagiu imediatamente.

– Ruby, me dê cobertura. Os demais, junto comigo - orientou ela, sem perder o sangue-frio. Defrontava-se com um inimigo de nível praticamente igual ao seu, um monstro da classe S que, como os vampiros, tinha sede de sangue e amava a luta. No entanto, ao contrário da mantícora, cuja fúria sangrenta ativada tolhia-lhe as capacidades de raciocínio em batalha, Moka podia controlar sua fúria e analisar friamente o antagonista.

No mesmo instante um urro aterrorizante sacudiu o ar, podendo ser ouvido a mais de oito quilômetros de distância. Era o imperioso "chamado da selva", uma convocação geral para a batalha a seguir, do rei da selva e dos animais.

Mais adiante, a cerca de cem metros, Tsukune, Yukari, Kurumu e Mizore o ouviram e ficaram imobilizados devido ao terror que deles se apoderara, pois sabiam perfeitamente quem havia produzido aquele som de gelar o sangue nas veias.

Khurshid Shersorkh!

Era a própria imagem primordial do devorador de homens, de uma terrível e medonha fera mitológica egressa das profundezas do Tártaro - o corpo de pantera coberto de padronagens e marcas púrpuras que terminava em cauda de escorpião empinada com o ferrão em posição de ataque brilhava com uma luminosidade ultraterrena e sinistra, a carranca semi-humana e semianimal exibia a boca escancarada com sua tripla fila de dentes num sorriso horrendo crivado de maldade sádica, o único olho intacto lampejando em fúria infernal. As largas asas membranosas de pterossauro, de um cinza-plúmbeo-escuro, abriam-se sobre o dorso do bakemono árcade. As garras enormes e retráteis nas patas brutais, de uma dureza sobrenatural, rasgavam sulcos profundos no solo pedregoso.

– Todos a ele! - bradou Moka, liderando a investida contra a besta-fera extraplanar.

– Será o fim de vocês! - rugiu o mantícora com voz de trovão ensurdecedora, que de tão portentosa e aterrorizante paralisava e podia até matar um ser humano, ou um youkai de categoria inferior.

Ruby, com as asas negras estendidas e o Grimoïre aberto levitando em cima da palma da mão direita, ergueu a mão esquerda e dela saiu um redemoinho de corvos negros que engolfou Shersorkh, que se ergueu sobre as pernas traseiras, rugindo furioso e golpeando com as rascantes garras dianteiras em velocidade cinco vezes superior à do som as miríades de aves mágicas que caíam mortas enquanto uma nova leva se atirava sobre ele. E então, aproveitando-se da brecha, Kokoa, Moka, Ginei e seu familiar-lobo partiram para um único ataque coordenado e simultâneo.

"Ele não terá como se defender de nós quatro ao mesmo tempo", analisou Moka, mais autoconfiante do que nunca. Uma forte aura vermelha rodeava suas mãos e seus pés, triplicando o poder devastador de seus socos e chutes.

Kokoa, com o cabelo ruivo-alaranjado solto voando às suas costas, estocou a espada-rapieira (Kou-chan) contra a garganta de Shersorkh, mas a lâmina cinza-prata reta, longa e fina ricocheteou na pele invulnerável do mantícora como se batesse no escudo de adamantino de Héracles; "Irmão Cinza" mordeu-lhe a nuca, cravando seus caninos brancos na ferida feita anteriormente pela lança de Kokoa, provando do sangue do monstro, que urrou num misto de dor e raiva; Ginei, que devia boa parte de sua força ao elo mental compartilhado com seu familiar-lobo, saltou desferindo uma sequência de socos e golpes de garras contra Shersorkh na velocidade da luz; e Moka, posicionando-se abaixo do monstro quimérico apoiada sobre suas mãos, atacou-o com um poderosíssimo chute duplo no rosto bestial - uma combinação de round kick, seguido por um spin back kick, usando o impulso do giro para aumentar a força do chute - que arremessou o mantícora o mais longe possível.

– Conheça o seu lugar! - Moka exclamou, enquanto Shersorkh era arrojado pelo ar por vinte metros, quebrando vários troncos de árvores desfolhadas e até finalmente cair em cima de uma lápide de mármore negro encimada por cruz latina, que ficou em pedaços.

(Entretanto, nem Shersorkh nem Moka e seus companheiros suspeitavam de que seus movimentos estavam sendo "monitorados" por alguém que se achava projetado, por intermédio do corpo astral, fora do corpo físico, a cerca de 15 - 20 metros de altura. Chu!)

– É isso aí, Moka-san - disse Ginei, ofegante e suando. De repente, ocorreu-lhe que pela primeira vez ele, Ruby, Moka e Kokoa trabalhavam em equipe para derrotar um inimigo comum. - Valeu, galera. Vamos fazer esse otário se arrepender de ter se metido com o Clube de Jornalismo. - Ele deu às moças o seu melhor sorriso.

Ruby retribuiu com um olhar promissor e um sorriso sensual. (A afinidade entre a bruxa sadomasoquista e o paparazzi pervertido sempre deu o que falar, chuu!)

"Não fique se achando o 'dono do harém', Gin-chan", ecoou no cérebro do lycan a mensagem telepática do companheiro lobo. "A Ruby-san é a única que não odeia você."

"Fica na tua, ô lobinho enxerido", Ginei replicou telepaticamente. "Pelo menos, eu quero ter um harém, ao contrário desses protagonistas babacas de animês harém por aí."

Uma gargalhada tonitruante reboou pelo cemitério. Um som desumano ao extremo, saído de uma COISA incapaz de rir, mas que o fazia unicamente pelo prazer de aterrorizar.

– Shersorkh...! - Moka falou entredentes.

– Ele já tá de pé?! - Kokoa exclamou. - O chutaço da onee-sama não surtiu efeito?!

Aquilo já era previsível, Moka ponderou consigo mesma. Pelos seus cálculos, tomando por base o fluxo de energia vital que sentira ao tocar no mantícora (ao agarrá-lo e arremessar contra o campanário, depois ao chutá-lo), a vampira sabia que seu chute duplo girando não seria suficiente para derrotá-lo. Embora aquele golpe pudesse perfeitamente deixar um ogro todo quebrado e ensanguentado, prostrado meses na cama.

A gargalhada altissonante do animaloide místico que se pôs em pé nas quatro patas lembrava um grave de trompete com muito mais volume sonoro. - Mas é só isso? E ainda acham que podem enfrentar peito a peito o rei das feras? O Senhor dos senhores da selva?

Enquanto falava, caminhava lenta e majestosamente em direção a Moka e seus camaradas. Como se fosse um leão africano, e eles, babuínos-verdes do Great Rift Valley.

– Até agora não vi nada além de uma besta quadrúpede de língua grande, que outra coisa não faz além de apanhar da gente feito um sparring - replicou Moka, exibindo os finos caninos alongados num sorriso feroz enquanto a brisa brincava com seus longos cabelos lisos cor de prata estelar. No seu rosto lia-se o firme propósito de lançar-se sobre o inimigo e cobri-lo de porrada até matá-lo, apesar de saber que não sairia ilesa de tal embate. - Vou colocar você no seu lugar, rei de nada!

O olhar caolho do bakemono arcadiano queimava sobre a linda vampira. - Então - rosnou ele ameaçadoramente, se aproximando cada vez mais - eu lhes apresento uma pequena fração do meu exército. Ouçam, olhem e vejam!

"Irmão Cinza" soltou um rosnado ameaçador, arreganhando os colmilhos brancos. Sendo um lupino sobrenatural, possuía audição 50.000 vezes superior à de um ser humano e olfato 100.000 vezes mais sensível.

Foi nesse instante que o ar do malcheiroso cemitério encheu-se do forte zumbido e rufar de mais de um milhão de pares de asas, em vários tamanhos e feitios; igualmente, o chão começou a vibrar cada vez mais como se mais de um milhão de pés de tamanhos e formatos variados - mais outro tanto de corpos ápodes rastejantes - marchassem numa só direção.

– É, irmão, eu também ouvi - Ginei disse para o familiar. Quando ampliava seus sentidos por um curto lapso de tempo, ainda que na forma hominídea, os mesmos tornavam-se tão apurados quanto a de um lobo verdadeiro, podendo sua audição captar a queda das folhas das árvores no outono.

– Olhem pro céu! - gritou Kokoa.

O céu vaporoso e crepuscular foi obscurecido por imensas revoadas de morcegos, de abutres, de corvos, rouxinóis, pardais e tentilhões e falcões; de borboletas brancas, libélulas e mariposas, de joaninhas, cigarras, abelhas e vespas mandarinas, moscas e moscardos. Parecia uma cena tirada de um filme de Alfred Hitchcock.

– E aquilo...! - Ginei apontou para a irresistível torrente de pequenos animais de pelagem cinza-parda, quatro ocelos e oito patas articuladas, lembrando um cruzamento de roedores e artrópodes, que derramou-se das colinas nuas escarpadas ao redor. Logo atrás, veio uma onda enorme, multiforme, composta de miriápodes, aranhas de todas as espécies e escorpiões negros, parecendo inundar o cemitério. Eram seguidos por um vasto enxame de escaravelhos carnívoros, necrófagos, arrastando-se para fora de furnas e criptas seculares; e dezenas de milhares de asquerosos ratos e baratas, além das onipresentes formigas-argentinas deslocando-se em fervilhantes tapetes vivos de tons marrons formados por milhões de indivíduos. Atrás deles, coleando-se rapidamente no meio do descampado marrom com árvores mortas e gramíneas rasteiras e arbustivas, toda sorte de ofídios, desde Aodaisho azuis e verdes, gigantescas e inofensivas, até as peçonhentas víboras e mamushi. Depois veio uma matilha de belíssimos exemplares de Canis lupus hodophilax, ou lobos-de-honshu, perseguidos no arquipélago nipônico até a extinção em 1905. Pequenos monstros espinhudos, com chifres imensos e corpos rotundos, pesadões, a cuja espécie pertencia o pet do Diretor Mikogami. Centenas de cães de grande porte - e gatos, grandes e pequenos, tricolores, rajados, pretos, brancos, cinzentos, fulvos e pardos, que viviam no cemitério.

Sapos, rãs e pererecas que desciam pelas vertentes numa onda imensa, verde e parda, como que reeditando uma das dez pragas bíblicas enviadas por Deus contra o Egito.

E, planando de árvore em árvore, bandos vorazes de esquilos-voadores raivosos, cuja mordedura leva um homem à loucura numa questão de segundos!

Apareceram de todos os cantos, apertando o cerco em torno dos quatro ayashis e seus animais-familiares.

– Aquele urro tão grande que ouvimos há pouco... Agora compreendo! - Ruby exclamou, num murmúrio. - Shersorkh convocou todos os animais existentes num raio de oito quilômetros neste semiplano dimensional, dentro e fora da escola: no cemitério, na floresta, no Lago Negro e até na praia... Ele é de fato o Senhor das Feras!

– OK, meninas - disse Ginei em tom jocoso e com um sorrisinho cínico nos lábios - vocês se encarregam dos trinta ou quarenta mil à esquerda, e eu e o Irmão Cinza...

– Ora, ora, o que esse amontoado de de animais fracos pode fazer contra nós? - Kokoa replicou com desdém. Nazo Komori, na forma de morceguinho, repousava na sua cabeça.

– Ataquem os bípedes e o morcego e o lobo-cinzento que estão junto com eles! - Shersorkh bradou retumbante à horda heterogênea de animais sob suas ordens (o contato era tanto psíquico quanto sonoro). - Ataquem-nos sem dar trégua!

E então de súbito, os enxames de insetos voadores, de pássaros, de morcegos, de esquilos-voadores raivosos, os bandos de ratos, e todos os sapos e rãs, e cobras, aranhas e escorpiões trombaram violentamente contra uma espessa barreira circular de arbustos e espinhos venenosos cortantes, de formato hemisférico, que do chão se ergueu magicamente envolvendo a gangue da Youkai Gakuen. Animais voadores ou rasteiros, todos caíram mortos ao tentarem penetrar "na marra" na barreira mágica; num único minuto, os enxames de insetos se desfizeram, os bandos de morcegos e de pássaros furiosos se abriram, recuaram alguns metros, guinchando e chiando e farfalhando, trilando, piando e gritando num caos infernal. No interior da barreira, Ginei, Moka e Kokoa voltaram-se intrigados para Ruby, que, de Grimoïre aberto na mão, acabara de recitar um rápido ritual mágico.

– Caramba, por Luna! O que você fez, Ruby? - indagou Ginei maravilhado.

– Combinei o poder de duas magias, Proteção de Gaia e Espinhos Negros, fazendo sair da terra todos esses galhos de árvores e arbustos em ritmo super-hiperacelerado, para formar esta cúpula de proteção à nossa volta, alterando-os magicamente para criarem espinhos urticantes - respondeu a bruxa. - Quando atacada, a muralha de espinhos reage instantaneamente em sentido contrário, mas com intensidade dobrada. Minha velha mestra Oyakata-sama, a Senhora das Árvores - sua voz harmoniosa assumiu um tom de reverência - possuía tamanha conexão com as plantas, após cento e tantos anos em contato com Gaia, que podia comungar com a consciência coletiva do reino vegetal, controlar mentalmenteos campos morfogenéticos para remoldar as plantas, fazê-las crescer, reanimar madeira morta; ela sabia como sair do corpo físico e, usando de projeção astral consciente, viajar pelas dimensões extrafísicas e imergir no plano elemental "verde", ezella ou laeg, que conecta toda vida vegetal deste planeta, e até mesmo fundir-se nas árvores ao redor e tomar para si o poder de todas elas. - As suas pupilas coruscaram. - Eu aprendi com a melhor dos melhores.

"Humpf! Tal mestra, tal discípula", refletiu Moka, que inda conservava vívida a recordação de seu embate épico contra a ensandecida Oyakata da Colina das Bruxas e seu temível exército de feras vegetais. Congratulou-se consigo mesma pela decisão de manter a bruxa-corvo ao seu lado nessa refrega. - Fez muito bem, Ruby - disse em aprovação. - Mesmo eu não gostaria de estar no meio desse pandemônio. - E indicou com um gesto de cabeça a confusão enlouquecedora criada pelos bandos de animais furiosos, que, fora da barreira, zumbiam, guinchavam, gritavam,uivavam e rugiam o mais alto que podiam, dando a entender cabalmente que o confronto com os bípedes estava longe de ser decidido.

Embora fossem inócuas para os youkais, as nuvens de insetos e de pássaros - afora outro tanto de aracnídeos, répteis e anuros, e mamíferos de sangue quente, mais um bom número de animais mágicos - ainda assim conseguiriam desorganizá-los, cerceando-lhes a capacidade de se reagrupar.

– Eles não desistem... Eita, bicharada teimosa! - resmungou Ginei, acompanhando a algazarra das hordas de animais que atacavam em vão a muralha de espinhos de Ruby, para se precipitarem, mortos ou feridos, na grama, demosntrando uma desconsideração quase suicida e antinatural pela própria vida. - Não veem que não têm nada a ganhar aqui?

– Shersorkh está controlando os animais por contato empático - retrucou Moka. - Morrer já não lhes dá medo mais... Foi-se o mais elementar instinto de autopreservação. - Uma expressão quase que de pesar perpassou rapidamente pelo rosto da vampira. - Eles vão continuar se jogando loucamente contra as paredes de espinhos até não sobrar nenhum vivo. Ou até a barreira ser destruída.

– Barreiras de espinhos podem ser destruídas, mas não por enxames de insetos e pássaros ou morcegos - contrapôs Ruby. - Só fogo mágico, armas mágicas...

–Falação, falação, falação! - estrilou Kokoa, com o familiar-morcego farfalhando e trissando à sua volta. - Ora, vamos, onee-sama, somos vampiras! Fomos feitas pra lutar, pra mutilar... Eu é que não vou me encolher debaixo dum espinheiro gigante por causa desses bichos ridículos!

– Kokoa... - Moka ia responder quando o seu sentido de detecção de youki deu o alarme. Yabai! Erupção de energia youki a oito horas! - Pessoal...!

Nesse mesmo instante a pequena esfera de plasma solar (a substância mais corrosiva do Universo) cuspida pelo mantícora alvejou em cheio a parede de espinhos da cúpula de proteção, volatilizando-a numa nuvem de fogo ofuscante. De imediato, Moka e seus amigos jogaram-se ao chão, protegidos pelo corpo de Kou-chan monstruosamente ampliado em um escudo esférico, enquanto a onda de choque escaldante gerada na explosão varreu a área incinerando dezenas de milhares de animais rasteiros e voadores no caminho.

– Valeu, morceguinho, fico te devendo uma - resmungou Ginei, empurrando para o lado uma madeixa rebelde dos cabelos pretos; o suor que porejava da testa escorria-lhe pelo rosto e pingava no queixo. (O lobisomem guardava certo rancor do pet de Kokoa desde que fora seduzido, juntamente com a maior parte do contingente feminino da Academia Youkai, por Kou-chan travestido magicamente de bishounen sob o pseudônimo de Kotaro Ijuuin!)

Nesse momento, uma vasta de densa nuvem asfixiante de insetos voadores, morcegos e aves de várias cores e tamanhos caiu torrencialmente sobre Kokoa, Moka, Ginei, Ruby e "Irmão Cinza"; e, simultaneamente, uma enxurrada de insetos, aracnídeos e miriápodes, cobras e ratos, todos sincronizados como se obedecessem a um único controle remoto, precipitou-se contra eles, tentando mordê-los, picá-los, subir-lhes pelas pernas...

Humpf! Irritante...! - resmungou Moka, agarrando duas pítons-birmanesas de pouco mais de três metros e meio de comprimento, uma em cada mão, e estrangulando-as sem dó, ao mesmo tempo em que pisava com vontade e esmagava ratos, aranhas, escorpiões, lacraias e outros pequenos animais rasteiros que tentavam atacá-la por baixo. Embora não pudesse evitar as múltiplas picadas dos enxames de vespas e moscardos que zumbiam furiosamente à sua volta, envolvendo-a numa nuvem negra compacta; as minúsculas feras voadoras visavam especialmente o seu belo rosto, ferroando em vão sua epiderme resistente como aço.

– Senti o drama! - Ginei gritou com o corpo coberto de centenas de escaravelhos.

Arrrghhh! - A voz gasguita de Kokoa emitiu um som onomatopaico para exprimir a sua indignação e raiva. A irmã caçula de Moka estava toda coberta de fezes de pássaros, serpentes venenosas, aranhas e escorpiões, além de um sem-número de abelhas, joaninhas e mosquitos, que, minúsculos, picando e zunindo, enrolavam-se nos seus cabelos, entravam-lhe pelas narinas e pela boca. - KOU-CHAN!!! - ela gritou o mais alto que pôde.

Kou-chan, revertido à sua verdadeira forma de monstro alado carnívoro na presença de sua dona pela primeira vez, engolia centenas de insetos escancarando a enorme boca crivada de dentes pontudos e afiados em várias fileiras concêntricas, como as dos horrendos vermes-da-areia-de-Saturno. Mas o próprio morcego transmorfo escapou por um triz de virar comida dum bando de animais voadores semelhantes a gigantescos gatos tigrados com dois pares de longas asas emplumadas de grifo nas costas. Filhos-dos-ventos!

Ruby voejou acima do grupo e imobilizou os filhos-dos-ventos usando as miríades de tiras tentaculares que saíam de suas seis asas negras. Dezenas de corvos e gralhas negras revoavam em torno dela. Logo em seguida, disparou uma saraivada de penas embebidas em miasma de suas asas que abateram numerosos esquilos-voadores raivosos que infestavam os ares, guinchando feito demônios em miniatura. Como bruxa, de uma raça que toma para si o poder da Natureza e se transformar total e parcialmente em formas animais, odiava a ideia de exterminar o que não merecia ser exterminado. Olhou com desgosto para os pequenos corpos amontoados sobre o solo pardacento. "Shersorkh é quem merece ser morto", pensou, tomada de uma raiva fria. Mantícoras e bruxos são inimigos jurados desde que o mundo é mundo.

Então entoou um feitiço, em latim, aprendido com Yukari (que aprendera com a prima que estuda na escola de magia e bruxaria no Brasil) para repelir as nuvens de insetos para bem longe: - Insecta Exumai!

Presto! Todos os enxames se desfizeram em alguns segundos; e a assombrosa maré escura de formigas refluiu, os tapetes vivos de besouros-carniceiros retrocederam. Satisfeita com os resultados, a karasu onna pronunciou um novo feitiço magizoológico, também em latim, desta feita para escorraçar todos os aracnídeos do perímetro do cemitério: - Arachnida Exumai!

Novamente um sucesso total. Os contingentes de aranhas, escorpiões e congêneres fugiram em massa, até que, dentro da necrópole decrépita, já não se mexia sequer um ácaro. Ruby sorriu. Sob seu comando, os corvos e as gralhas-pretas precipitaram-se aos bandos em cima da passarada e dos esquadrões de morcegos colossais mobilizados por Shersorkh, dando cobertura à gangue da Youkai Gakuen.

– Gralhas e corvos estão do nosso lado - disse ela, recolhendo as asas para pousar. - Minha tribo tem um pacto de sangue com o espírito-grupo da família dos corvídeos.

– Ruby, meu anjo negro! - Sorrindo como um lobo, Ginei saltava de uma campa para outra, desferindo rápida e infalivelmente golpes com suas garras que estripavam dúzias de atacantes dos bandos de pombos selvagens, de estorninhos, de pardais e até de abutres e urubus que, aos milhares, investiam com fúria inaudita procurando feri-lo ou arrancar-lhe os globos oculares, esvoaçando, piando, grasnando e batendo as asas furiosamente num pandemônio. Junto com "Irmão Cinza", cujos mortíferos ataques-relâmpago só apareciam como borrões de movimento vibratório, os dois lupinos causaram pesadas perdas para a "força aérea" emplumada daquele louco exército animal.

– É tudo bucha de canhão! - vociferou Kokoa. Furiosa, a vampira ruiva arrancou a cabeça de uma víbora venenosíssima a dentada e espremeu o sangue da cobra até a última gota na sua boca. Fez o mesmo com uma peçonhenta mamushi que rasgou com as mãos nuas; e ainda não satisfeita com isso, agarrou um milhafre que ensandecido tentava furar-lhe os olhos a bicadas e cravou os dentes no pescoço da ave de rapina; o quente líquido vital vermelho-vivo e viscoso do milhafre esguichou em seu rosto, e ela lambeu-o todinho. Melhor que sangue de serpente...

Cheio de fúria, um abutre-preto de cerca de três metros de envergadura deu um rasante tentando atingir Moka com seu bico, mas a vampira cortou-lhe as más intenções. Apanhou o rapinante necrófago em pleno voo e partiu-lhe o pescoço que nem um graveto, depois atirou o corpo mole, sem vida, na direção dum grande grupo de ratos de todas as formas e tamanhos, que avidamente começou a devorá-lo.

– Ridículo - resmungou ela, com o máximo de desprezo.

O chão por entre as campas se achava coalhado de cadáveres de pássaros mortos, que jaziam rasgados, desmembrados, eviscerados. Os cães, gatos e ratos das legiões de animais terrestres mobilizados por Shersorkh encontravam ali uma lauta refeição, assim esquecendo-se momentaneamente da gangue da Escola Youkai. Grasnando de alegria feroz, as gralhas e os corvos amigos de Ruby mergulhavam do céu para predar os ratos e outros pequenos roedores que eram os "soldados rasos" da monstruosa horda de animais - apenas para serem, por seu turno, abocanhados pelos cachorros e gatos famintos.

– Saibam o seu lugar na cadeia alimentar, ratinhos e passarinhos! - zombou Ginei, o que fez Ruby endereçar-lhe um olhar de reprovação. - Gomenasai, Ruby. Foi mal... - desculpou-se ele meio sem graça. - Lobos são predadores de topo, você sabe...

Virou-se e chutou com toda força um sapo-boi tóxico de trinta centímetros que dera um pulo enorme na tentativa de mordê-lo no antebraço nu. - Saparia maldita! - rosnou com raiva. A poucos metros de si, Irmão Cinza dilacerava nas mandíbulas uma naja de quase dois metros. A infestação de anfíbios anuros e serpentes que haviam se transformado em implacáveis fustigadores dos youkais parecia cobrir todo o cemitério.

As aves negras de Ruby precipitavam-se de bico e garras em cima dos sapos e ofídios venenosos, retalhando cruelmente nacos sangrentos de sua carne.

Então, de súbito, um miado longo e alto que lembrava uma serenata ecoou por todo o cemitério. No mesmo instante, a miríade de gatos no local pertencentes ao "exército" de Shersorkh se aquietou, todos eles atentos com olhos bem abertos, orelhas erguidas e as caudas totalmente eretas. Logo em seguida, como se fossem imperiosamente convocados, os ágeis e graciosos felinos, grandes e pequenos, dispersaram-se e chisparam dali, sumindo por entre as lápides cinzentas, arbustos esquálidos e árvores mortas retorcidas.

– Parece que a tropa felina desertou em massa - Kokoa comentou com ironia.

– Esse miado... Foi o chamado dos gatos que ouvimos - explicou Ginei.

– Está dizendo que alguém ou alguma coisa os chamou de volta? - inquiriu Moka.

– Alguém - confirmou Ginei. - Até faço ideia de quem tenha sido.

– Gatos são seres independentes e insubmissos por índole - observou Ruby. - Nem Shersorkh pode mudar isso, por mais hipnose animal ou linguística animal que empregue.

– Tanto melhor. Menos um estorvo pra nós - Moka retrucou secamente. - Esta ofensiva dos animais é só para nos distrair enquanto o Shersorkh vai ao encalço dos nossos amigos.

A vampira calou-se. Um pensamento martelava sua mente: no encalço do Tsukune... Para matá-lo!

Tapa mental. Mantenha-se focada, sua idiota. Você é uma guerreira.

Foi quando um tigre branco de mais de três metros de comprimento e trezentos quilos - um predador nato capaz de matar um búfalo com uma patada - , com um belo par de olhos amarelos que queimavam enraivecidos como brasas acesas, saltou silenciosamente em cima dela. Muito lento. Moka desferiu-lhe um chute giratório certeiro que o arremessou bem para o alto e longe. Uma ciclópica fera artiodáctila que lembrava um cruzamento de javali com rinoceronte-indiano, ostentando um corno queratinoso de metro e meio, investiu selvagemente contra ela, dando grunhidos estridentes, mas um spin back kick de Moka o atingiu como um raio e o arrojou a vários metros de distância.

– Eu costumava lutar com tigres, serpentes e outros animais selvagens quando tinha nove, dez anos de idade - ela disse com um sorriso debochado. - E ganhava sempre.

– Lá vêm os reforços! - Ginei disse tranquilamente, tomando sua posição de luta. O homem-lobo reconheceu os grandes molossos asiáticos: cinquenta ferozes cães robustos, imponentes e poderosos, afins do imenso mastim tibetano, cujos ancestrais acompanharam as tropas de Alexandre, o Grande, e entre eles dava o tom um punhado de warak, cruéis canídeos sobrenaturais com quase a altura de um homem que possuíam na pelagem uma alga verde que lhes servia de camuflagem mimética. Mais para o fundo, os lobos-de-honshu espreitavam gulosamente a ocasião oportuna para entrar em ação.

"Ataquem os bípedes!", era o comando que lhes fora dado.

– Venham, totozinhos, venham conhecer o "Cachorro Louco" da Academia Youkai! - Ginei rosnou desafiador. Utilizando a sua velocidade, força e agilidade, o lobisomem em sua forma glabro ultrapassou brincando - praticamente voando baixo - as alucinadas matilhas de canídeos que avançavam babando, uivando e ladrando selvagemente em sua direção, olhos injetados de sangue. Deixou atrás de si um verdadeiro pandemônio rubro, uma trilha sangrenta de morte: mais de uma dúzia de canzarrões mortos, com as vísceras de fora, ou feridos agonizantes, ganindo lamentosamente.

– Tsc, tsc, tsc - fez o licantropo. - Quanta lerdeza... Tô começando a ficar entediado. - Seu torso nu brilhava de suor e estava todo respingado de sangue, e suas mãos quase humanas, de uhnas longas e afiadas, estavam tintas de rubro com o sangue dos cães.

Sem parar, mergulhou por baixo de um dos warak atacantes e o agarrou com ambas as mãos pelas pernas traseiras, e ao reerguer-se de um salto girou a odiosa criatura coberta de limo e mato como se fosse uma arma viva num rodopio golpeando violentamente os demais warak que o cercavam e derrubando todos eles com ferimentos fatais. Em seguida, atirou o mononoke contra uma árvore e ouviu o estalar dos ossos sendo quebrados.

Era como se o gentil e amigável presidente do Clube de Jornalismo, de hábito tão cínico e galanteador, de uma hora para outra tivesse se transformado numa letal máquina assassina que não conhecia o que era piedade. Um lobisomem em frenesi! Orgulhem-se deste filhote, veneráveis Espíritos Ancestrais lupinos.

"Gin-chan, está gastando youki demais, na forma hominídea ou glabro", telepatizou o Irmão Cinza, que num minuto tinha trucidado mais de trinta molossos com as mandíbulas ensanguentadas. "Correndo em supervelocidade, ativando as garras... Logo, logo vai ter problemas."

"Correrei o risco", Ginei retrucou telepaticamente. Há dois anos que não se soltava. "Irmão Cinza, quero que cuide dos lobos. Mate o macho alfa, depois lidere a alcateia de volta para a floresta, entendeu?"

"Deixa comigo, Gin-chan", foi a silenciosa resposta mental do familiar de olhos cor de ouro. Depois disso ele desapareceu, deixando para trás um flash de supervelocidade na forma de um borrão cinza-escuro.

Moka jamais havia visto Ginei desse jeito e por um momento imaginou quão bom lutador ele poderia ser. Vampiros e lobisomens são, em essência, predadores.

Khurshid Shersorkh se achava encarapitado na cabeça de um voonith, monstruoso anfíbio semelhante a um gigantesco sapo-arlequim de olhos vermelhos e pupilas fendidas pesando trinta toneladas, mas dotado de duas fileiras de assustadores dentes pontiagudos de meio metro. As passadas do titânico animal de patas palmadas faziam a terra tremer.

– Lá vai a nossa presa - disse Moka em tom sombrio. - Vamos interceptá-lo! Kokoa, vou precisar de você para juntas derrubarmos o voonith do Shersorkh. Aquele monstro pesa igual a um apatossauro do período Jurássico, então só a minha força não será suficiente.

– Sim, onee-sama - respondeu prontamente a vampira mais nova. Combater ombro a ombro com a idolatrada irmã mais velha era tudo o que sempre havia sonhado.

Que ironia... Duas vampiras, um lobisomem e uma bruxa cooperando juntos para proteger youkais de raças diferentes... e um humano! Era esse o seu objetivo, Tsukune?

– Vamos, Kokoa! - disse Moka em tom enérgico. Ela e a irmã saíram em disparada, pulando por cima de velhas lápides, sepulturas, cenotáfios e fachadas ruinosas de mausoléus, mas a diferença de nível entre ambas as vampiras nessas condições era fortemente aparente. Moka tinha uma boa dianteira. Saltava até vinte e cinco metros para frente com um impulso, ao passo que os saltos dados por Kokoa não iam além dos dez metros de distância. E Kou-chan, de volta à "forma provisória" de morceguinho, voava célere atrás de sua dona.

– Vampiras... - resmungou Ginei. Deu de ombros, e, virando-se para Ruby, disse: - É melhor nos apressarmos, querida, senão perderemos a festa.

– Mas é claro, Ginei-san - replicou Ruby em tom gentil. Abriu suas asas e levantou voo, seguindo a direção tomada pelas irmãs hematófagas. Ginei suspirou e saiu correndo tão depressa atrás das mulheres que um ser humano mal conseguiria segui-lo com o olhar.

Alcançaram o voonith que Shersorkh montava em três tempos. Por sorte, o batráquio ciclópico locomovia-se lentamente, por reptação, tal qual uma salamandra, derrubando e esmagando troncos de árvores mortas e secas no caminho, e não aos pulos como a maioria dos anfíbios da ordem Anura. Por que razão recorrer a um bicho pesadão e lento, quando poderia simplesmente voar por seus próprios meios no encalço dos fugitivos?

Assim que viu os cinco youkais perseguidores, Shersorkh ordenou à sua gigantesca montaria: - Pise-os!

– Shersorkh! Hora de morrer! - gritou Moka, num rictus de fúria destrutiva. Sobre ela e Kokoa pairava uma terrífica aura escarlate, tão densa que fazia as pedras levitarem. Com uma sincronização perfeita, as duas irmãs partiram com tudo para cima do imenso e grotesco voonith, e cada uma o atingiu ao mesmo tempo com um chute giratório em 180 graus, idan bandal tchagui; o duplo impacto foi tão potente e avassalador que arremessou o monstro para o ar. Superforça vampírica!

– Ponham-se nos seus lugares! - bradaram juntas as filhas de Issa Shuzen. O voonith colidiu estrondosamente com o solo, que estremeceu, abrindo grandes rachaduras e levantando uma nuvem de poeira opaca por todo o local, enquanto Shersorkh, distendendo suas longas asas, recuperou o equilíbrio de seu corpo no ar e conseguiu pousar sem danos.

– Vocês...! - grunhiu o mantícora. Na mesma hora, uma bomba de fogo saiu da boca de Shersorkh e procurou atingir as duas vampiras. Mas errou o alvo. Foi só graças à famosa velocidade sobre-humana que Moka e Kokoa não se transformaram em cinzas. Elas deram um grande salto no ar e, com uma pirueta, aterrissaram no solo pedregoso, lado a lado, com graciosidade felina, a poucos metros do antagonista quimérico.

– Mantícora - disse Moka, sarcástica e com ares de superioridade - você me quer viva e não morta, certo? É por isso que está "se segurando", né? Acontece que a recíproca não é verdadeira.

E antes que o adversário pudesse reagir, a jovem kyuuketsuki de cabelos brancos que detinha o poder de converter a própria aura demoníaca em força bruta avançou a toda velocidade para um embate corpo-a-corpo, tendo concentrado uma quantidade absurda de youki nos punhos e pés, visando especificamente o rosto quase-humano do mononoke com uma sequência de socos poderosos e chutes devastadores. Não o deixe tomar a ofensiva. Seu instinto de guerra lhe dizia que Shersorkh, como todos os demônios da mesma espécie, era mais terrível no ataque do que na defesa. Atrás dela vinha a irmã caçulinha ruiva que brandia ameaçadoramente seu pet Kou-chan na forma de um martelo de guerra absurdamente gigante, que teria feito corar de vergonha o Mjölnir de Thor.

Moka era uma mestra de artes marciais. Seu pai havia cuidado disso. Se não for uma assassina, será uma filha inútil. Apesar da pouca idade, dezessete anos, ela dominava como ninguém os melhores estilos de kickboxing, karatê kyokushin, muay thai e taekwondo, combinados com sua superforça, rapidez, reflexos, coordenação e seu corpo quase imortal, sendo virtualmente inigualável e insuperável em qualquer estilo de combate corpo-a-corpo.

Sawadee ka! - Com esta saudação tailandesa em tom de ironia, Moka desferiu um perfeito chute em gancho, furyo tchagui, no focinho de traços horrendamente antropoides do mantícora que mataria monstros mais fracos e nocautearia os de nível superior, e Shersorkh baqueou por terra. Tudo isso numa fração de segundos. Mas se levantou, bufando, apenas para receber uma violenta marretada no meio da testa, desfechada por Kokoa. Moka, associando alta concentração de youki e velocidade supersônica, acertou em cheio a cabeça chifruda com uma sequência de potentes jabs e um chute circular devastador que arremessou pelos ares o perigosíssimo animaloide. Em exatamente sete segundos!

Foi quando um gigantesco crustáceo similar a um caranguejo - remanescente das legiões de animais irracionais que o mantícora encantara - apareceu para atacar Kokoa com as pinças monstruosas. A pequena vampira ruiva não pensou duas vezes e baixou a "marreta viva" de cem quilos (Kou-chan) com toda força no crustáceo gigante, que teve a carapaça vermelha espinhenta esmigalhada; a hemolinfa verde-azulada fria e viscosa que vazava da torva criatura morta regou abundantemente o solo do cemitério assombrado. (Kokoa-sama não perdoa, mata! Chu!)

Lutando costas a costas, Ginei e Ruby defendiam-se na base de garras e presas e penas cortantes contra um bando de vinte grandes macacos de cara vermelha, dois pares de orelhas e cauda preênsil que, sem o menor aviso, saíram da camuflagem de invisibilidade e atacavam-nos gritando e guinchando, tomados por um frenesi demoníaco.

– Devemos dar uma mãozinha pras irmãs vamps? - perguntou ele.

– Deixe as meninas se divertirem um pouco - respondeu ela.

– Mas como?! Muito me espanta que sobreviva aos meus golpes! - Concentrando toda sua energia youki nas pernas, Moka saltou desferindo um único golpe, uma voadora de extremo poder destrutivo na nuca de Shersorkh à velocidade do som (sua aura de poder vermelha, de tão densa, tinha a forma de uma revoada de morcegos ao seu redor). O monstro cuspiu um bocado de sangue (pela primeira vez!) e tonteou, foi lançado ao chão, porém não morreu, embora a potência do timyo dolyo equivalesse à do ap toryo tchagui que Moka usara para quebrar as costelas e perfurar os órgãos internos de sua meia-irmã mais velha, Karua, no Templo de Gelo, na terra natal das "abomináveis mulheres das neves".

– Eu sou diferente de tudo o que você já enfrentou antes, menina sanguessuga! - Bramindo de furor cego qual leão atroz, Shersorkh reagiu lançando-se sobre Moka com as garras rascantes das patas pesadas e o aguilhão peçonhento da longa cauda segmentada. Uma baba vermelha escorria da boca; e o olho direito coruscando alucinado em contraste com o esquerdo, vazado, dava à carantonha um aspecto assustador. Apesar de contundente, o timyo tchagui dado por Moka apenas o irritara mais. - Mantícoras são monstros movidos a raiva e ódio. Minha força aumenta exponencialmente com a minha raiva. Agrida-me! Enfureça-me - e eu fico mais forte, mais rápido!

– E mais estúpido também! - Moka esquivou-se com facilidade do ataque das prodigiosas garras que possuíam a dureza sobrenatural do metal adamantino do Olimpo; errando feio o alvo, a patada do mantícora na sua fúria desenfreada destruiu por completo uma estátua de bronze representando Pégaso empinado nas patas traseiras sobre um globo e uma coluna de granito. Por um segundo Moka visualizou o rabo de escorpião dar um bote em sua direção, desviou-se do golpe e sentiu aquele ferrão odioso passar por centímetros da sua cabeça, cortando o ar ao lado do seu ouvido. Agredindo à direita e à esquerda, como a fera desembestada que é. Embora fosse uma das vampiras mais fortes de seu clã, ela sabia que enfrentava uma verdadeira máquina de matar. E também sabia que bastaria o mantícora meter-lhe o ferrão ou acertar-lhe uma patada e fincar-lhe as presas para que toda a sua força vampiresca fosse tão eficaz quanto a de uma criança humana abocanhada por um pit bull.

Shersorkh vislumbrou Kokoa à frente, erguendo o martelo gigante (Kou-chan), e, com uma patada vigorosa e certeira, arrancou-lhe a "arma viva" das mãos. Kokoa, atingida de raspão, foi bater em uma laje tumular enorme e vetusta, mas levantou-se, espanando o pó e a sujeira do uniforme sailor fuku e pronta para outra.

– O que acontece quando uma força que não pode ser parada encontra um obstáculo que não pode ser removido? - Shersorkh perguntou com sarcasmo. - Encontrou alguém à sua altura, Moka Akashiya!

"Ele tem razão", refletiu Moka enquanto bloqueava com os punhos os golpes cada vez mais furiosos, rápidos e pesados de Shersorkh e contra-atacava distribuindo uma impressionante sequência de duros golpes no rosto da fera bestial. "A força dele já é quase igual à minha. Força, resistência física e mágica, tudo bate comigo. Posso ser derrotada, se não o matar antes que atinja um nível de força superior ao meu."

– Eu vou te ferrar, vampirinha! Ao pé da letra! - Shersorkh urrou fortíssimo, arremetendo veloz contra ela para atravessá-la com seu aguilhão e inocular-lhe o veneno. Repentinamente, porém, um borrão cinza se interpôs entre a grande fera vermelha e a garota de cabelos brancos. Então um ganido agudo de dor cortou o ar.

No mesmo instante Ginei Morioka cambaleou levemente.

– Lobo Cinza...! - Moka contemplou, perplexa, o corpo peludo do familiar lupino de Ginei que jazia inerte na terra escura, diante de seus pés, varado pelo aguilhão venenoso de Shersorkh. Não pode ser... Um lupino se sacrificando por uma vampira?!

– Por Atar, que animal patético! - praguejou o irado Shersorkh, que voltou à carga com maior ímpeto. - Consegui penetrar na sua guarda, Moka Akashiya! - ululou a fera. Durante um único instante Kokoa, Ruby e Ginei viram horrorizados o nefando aguilhão enterrar-se rápido e certeiro no esguio pescoço de marfim da kyuuketsuki.

Você é que é patético! - A voz de Moka soou fria e cortante como uma lâmina de aço-carbono forjada por Kunio Oda ou Yoshindo Yoshihara. Virando-se rapidamente, Shersorkh viu a verdadeira Moka enfiar-lhe um chute frontal direto no peito e queixo que o desnorteou. - Foi a minha imagem que você atacou, uma ilusão cognitiva usando hipnossugestão temporária através de contato visual para ocultar meus movimentos - disse a vampira com seu ar presunçoso de sempre, ela que já tinha usado essa técnica de rolling antes, ao enfrentar a meia-irmã Karua no Templo de Gelo.

– Truquezinhos de salão não vão salvá-la de virar estátua! - dardejou o mantícora, rangendo os dentes de ódio. Tendo sua força e ferocidade quadruplicadas por sua fúria, a criatura fulva saltou em cima de Moka para um ataque direto com velocidade supersônica, usando o ferrão caudal em conjunto com as garras das patas e as várias fileiras de dentes.

Desta vez Moka foi incapaz de se opor à combinação de velocidade de ataque e explosão de fúria sem sofrer danos. Apesar de sua percepção preternatural acompanhar os movimentos do inimigo perfeitamente, seu corpo não logrou o mesmo feito. Desviou-se do rabo escorpionídeo assim que o viu atacar, mas foi alvejada por uma das garras ferais que rasgou-lhe a perna esquerda; o impacto da patada jogou-a a vários metros de distância de sua posição anterior.

– Acho que a Ishigami não reclamará se eu te entregar a ela um pouco machucada - disse Shersorkh, dando à jovem vampira um sorriso cruel e irônico.

Assim que pôde, Moka colocou-se de pé e encarou seu antagonista, enquanto ele se aproximava cada vez mais dela. O sangue morno que escorria dos cortes na perna feitos pelas garras do demônio já estava coagulando e as feridas cicatrizariam em questão de segundos, graças ao incrível fator de cura e regeneração celular espontâneo característico de sua raça.

"Estou começando a ficar sem opções", ela ponderou enquanto analisava a situação. "Ataques físicos não surtem efeito algum nele... Não posso debilitá-lo drenando sua energia vital através do toque das mãos, isso só funciona com humanos!"

Ruby esvoaçou qual ave de rapina imensa e sobrenatural, e despejou uma chuva de penas cortantes como facas em cima do mantícora, e quando este se deteve por um instante, Kokoa descarregou todo o peso de sua marreta descomunal (Kou-chan) sobre o dorso da besta com uma porrada impactante que esmigalharia a coluna vertebral de um ser normal.

Com um sorriso sardônico, quase cruel, a kyuuketsuki ruiva bradou:

– Lembra de mim, Gatão do Mal? Eu voltei!

Ainda cambaleante depois dessa supermartelada nas costas, Shersorkh mal e mal se recompusera da experiência quando Ginei, num ato de ousadia e determinação, saltou sobre o bakemono arcadiano e abraçou-o pela garganta. - Fuja, Moka! - gritou o metamorfo, apertando o pescoço de bronze do mantícora com toda a força lupina que tinha.

– Punhadinho de vermes ridículos! - trovejou Shersorkh, lutando para desvencilhar-se do amplexo cada vez mais apertado e sufocante. - Arriscam suas vidas pra defender uma vampira arrogante e egocêntrica, que os despreza como se fossem lixo!

– Somos amigos dela, e isso é tudo que importa - retrucou Ginei, atracado com o monstro quadrúpede e procurando asfixiá-lo com seus braços enormes e cabeludos. Até parecia o herói-deus Hércules estrangulando o Leão de Nemeia, representando a vitória do Eu interior sobre o egocentrismo que é a fera que mora dentro de nós. E continuou a fazer pressão para subjugá-lo. "Lycaon, Pai de todos os lobos, Presas de Prata, dai-me forças!", rezou mentalmente com devoção, ele que sempre fizera pouco caso das tradições lycans.

Evidentemente, a ideia de fugir do inimigo era tão francamente herética que não passaria pela cabeça de Moka. Uma supervampira de linhagem real e nobre jamais recua, ainda que nas garras de uma desvantagem devastadora. Tal era a maneira de pensar muito comum à sua altiva raça, quase um defeito genético. Vendo que Shersorkh pusera-se de pé nas patas traseiras e debatia-se com raiva por livrar-se do irresistível abraço constritor do lobisomem, Moka aproveitou para aplicar-lhe o temido tuit tchagui - girando o corpo e, de costas, dando um coice arrasador no abdômen e plexo celíaco da execrável criatura que, esmorecida, tombou violentamente, com Gin e tudo. Sufocando... Sufocando...

– Vai ficar um bom tempo sem respirar - observou ela, em tom sombrio. - Mais uns dois ou três minutos sem ar nos pulmões, e o invulnerável e terrível devorador de homens não passará de uma carcaça morta de mais de meia tonelada.

Entrementes, um exame superficial no corpo do lobo-cinzento vitimado pelo veneno de mantícora constatou que o familiar de Ginei não estava morto. Estava paralisado.

– A toxina liberada atingiu o sistema nervoso central, anestesiou-o e assim paralisou temporariamente todas as suas funções - explicou Ruby, que acabara de pousar.

– É, ele recebeu a ferroada que era destinada a você, onee-sama - observou Kokoa.

O rosto de Moka assumiu uma expressão pensativa.

– Ginei - principiou devagar e acentuando as palavras. - Eu estava enganada a seu respeito. Obrigada por tudo.

O rapaz fitou-a admirado. Quando deu por si, estava sorrindo. "Antes tarde do que nunca", pensou. Ofegante, enxugou o rosto molhado de suor com as costas de uma das mãos, e só então reparou que as minúsculas gotas de suor eram vermelhas. Sangue. "Merda, já começou!"

– Ginei-san...! - Ruby exclamou baixinho; suas belas feições exibiam o que parecia uma preocupação genuína. - Está se esforçando demais, gastando youki na forma humana, sem o poder vitalizante dos raios lunares... Já está no seu limite e já não consegue fazer muito mais. Não é a mesma coisa que "envenenar" um motor de carro injetando nitro nele, ou botando um turbocompressor.

– Tudo bem, Ruby. Eu vou ficar bem - disse ele para tranquilizá-la, embora soubesse que ela tinha razão. - Eu só gastei uma quantidade extra de youki pra correr e lutar, nada mais. Agora que o mantícora já tá morto...

– Ledo engano! Eu estou bem vivo! - O mononoke soltou um rugido terrificante que fez o jovem quarteto do Clube de Jornalismo sentir os pelos da nuca se arrepiarem. - Vocês, vampiros e licantropos, gostam de pensar que são os mais fortes, mas não podem se comparar comigo. Minha raça foi criada por Mitra, o Sol Invictus, para exterminar os Daevas e as criaturas da noite como vocês. Então se prepare, Moka Akashiya, porque nada me impedirá de levá-la cativa, fazê-la conhecer o seu lugar. Quanto ao resto desses inúteis... Depois de devorá-los vou palitar meus molares com os ossos deles.

Kokoa rilhou os dentes ao ouvir aquilo. Como é que esse bicho nojento se atrevia a falar assim dos vampiros? Como é que sua onee-sama podia suportar tamanho insulto?

Moka resolveu mudar de tática. Simples questão de lógica: se "A" não funciona, experimente "B". Sendo impossível derrotar o mantícora num combate corpo-a-corpo com ataques puramente físicos, ela levaria a peleja para um novo nível, físico-etérico - usando sua própria aura youki, poderosíssima, para cortar a aura youki do oponente e assim feri-lo à distância. Era uma habilidade rara entre os vampiros, até mesmo no seio do clã Shuzen - Karua e Kokoa, suas meias-irmãs, não a possuíam - , mas Moka pertencia a uma "linhagem especial", tendo herdado tal habilidade de sua mãe, Akasha. Até então, contudo, jamais se vira obrigada a usá-la - apesar de saber como isso era feito - , tampouco tinha certeza de que surtiria o efeito esperado. Era tudo ou nada. Nem pense em fraquejar. Não lhe é permitido hesitar. Não quando estava em jogo sua própria existência e a de seus amigos e camaradas.

Shersorkh prosseguiu com a voz carregada de sarcasmo: - Quero agradecer a vocês, molecotes, por me proporcionarem a briguinha mais legal desde que cacei uns semideuses filhos de Atena, de Héracles e de Bóreas pelas ruas e telhados de Los Angeles três meses atrás. Nada mal, para inferiores...

Kokoa não aguentou mais. - Preciso defender a honra da raça vampira - exclamou.

Apanhou o familiar-morcego e ordenou-lhe: - Kou-chan! Transforme-se em duom!

Nazo Komori obedeceu - e dali a alguns segundos Kokoa segurava uma lança imensa, duas vezes maior que um homem, ostentando uma ponta normal e duas lâminas invertidas em diagonal na metade superior da haste.

– Ei! Devagar aí, ô caloura! - Ginei gritou para ela, mas Kokoa ignorou-o.

Ela saltou no ar (não ligando a mínima por mostrar a calcinha branca com a estampa de um pequeno morcego na parte traseira para um embasbacado Gin) e venceu a distância que a separava de Shersorkh, pousando suave e graciosamente à frente dele, empunhando o duom. Disse: - Já te furei uma vez e vou furar de novo.

– Saia daí, Kokoa–chan! - gritou Ruby.

– Pode vir - rugiu a criatura antropófaga de Nova Arcádia, abrindo suas mandíbulas e mostrando as três fileiras de grandes dentes compridos e dentados. - Crave sua lança no fundo da minha garganta, atravessando meu cérebro e você me matará.

– Não faça o jogo dele, Kokoa! - disse Moka, lacônica.

– Então morra! - berrou a vampira ruiva de cabeça quente, que pulou ao encontro de Shersorkh, os olhos selvagens faiscando como turmalinas e o rosto vermelho com a ânsia de sangue. Todo seu youki se concentrou no braço estendido que brandia o duom (Kou-chan) à altura da goela do mantícora. A lâmina da lança atingiu em cheio uma antiga lápide em cruz céltica de granito negro, situada entre as árvores desfolhadas, que Kokoa atacou numa fúria absolutamente cega. - MORRA, MORRA!!!

Sua visão encheu-se de fagulhas avermelhadas.

Uma gargalhada maldita que soava como um misto de trombeta com flauta de Pã, percorrendo a escala musical do grave para o agudo e vice-versa, penetrou nos ouvidos da jovem vampira, às suas costas. Sabia que era Shersorkh. Sentia a aura de energia maligna. "Meu Alucard! Esse cara ficou tão ou mais super-rápido que o Gin-senpai!", ela pensou, sentindo um calafrio na espinha. Virou-se repentinamente a tempo de ver a monstruosa pata cheia de garras enormes e curvadas caindo sobre si, mas não de evitar a brutal patada que rasgou parte do seu uniforme escolar, dilacerando sua pele clara e macia no peito, barriga e braços. Kokoa tombou em uma poça de sangue que escorria dos horríveis ferimentos torácicos e abdominais abertos para a terra árida recoberta de rasteiras plantas silvestres.

– Kokoa...! - Ruby e Ginei exclamaram ao mesmo tempo.

– Isso é por me perfurar a nuca - grunhiu o mantícora.

Kokoa, sua incompetente... Quando vai aprender a ser menos impulsiva, mais calma e concentrada, analisar com frieza ao invés de se lançar de cabeça contra o antagonista? Moka, procurando tirar partido da distração criada por sua estabanada irmã, concentrou-se. Seu youki adensou-se externamente, formando uma aura densa de cor vermelha em suas mãos que ora tornavam semelhantes a grandes lâminas afiadas de energia sinistra, capazes de penetrar fundo no youki enorme de seu adversário e cortá-lo, ferir-lhe o corpo físico por feri-lo no etérico (desde que esse adversário também possuía uma aura de energia demoníaca).

Se a ofensiva de Moka fosse vista por um clarividente, seria assustadora (ela havia empregado seu youki enorme para destruir os clones de gelo de Mizore - que não passavam de corporificação em estado sólido do youki da garota-demônio da neve - quando ambas se confrontaram pela primeira vez). Uma forte aura vermelho-carmim partiu superveloz das mãos da vampira e varou o youki gigantesco de Shersorkh qual titânica espada espectral impossível de se deter, cortando e perfurando aqui e ali e acolá na aura de poder energético do mantícora, fazendo-o sangrar o precioso fluido nervoso que comanda a energia vital. Foi um prazer inenarrável para Moka ver os rasgos sanguinolentos se abrirem de dentro para fora na pele impenetrável de seu odiado inimigo e ouvi-lo uivar e soltar urros estridentes de dor e raiva, urrando blasfêmias em persa antigo.

– Sinta na própria carne o verdadeiro poder de um vampiro! - ela bradou, focando seu poder nos pontos vitais da aura mágica do adversário.

– Kami-sama, a Moka é quem tá fazendo aquilo com o Shersorkh? - Ginei não cabia em si de espanto, vendo o mantícora ser cortado e perfurado aparentemente do nada.

– Com certeza - cochichou Ruby com a voz trêmula, de tão nervosa que estava. - Os vampiros são mestres na arte de manipular o youki, a aura demoníaca dos youkais. Ura-Moka converteu sua energia em "katana gigante" com a qual ferir o youki de Shersorkh... e o corpo físico dele, por tabela. Mas "extrair sangue à distância" é coisa que só um Ancião com mais de trezentos anos consegue fazer, nunca pensei que a Moka fosse capaz disso.

– Ruby, Ginei, ajudem a minha irmã! - ordenou Moka, mantendo-se focada em cortar os pontos vitais da aura de poder do mantícora com uma rajada de youki superveloz. Em seguida, falou sarcasticamente ao contendor que arfava e sangrava de mil cortes: - E aí, Shersorkh, ainda quer me mostrar o meu lugar? - Seu sorriso era um esgar feroz. - Esse bordão é meu! Quer saber como consegui retalhar sua pele sem tocar nela? É simples: usei sua própria aura demoníaca contra você, marquei os pontos de corte da energia vital no seu youki e liberei uma rajada de energia que rompeu a aura e te deixou totalmente vulnerável. Sua energia vital vai continuar escoando até você morrer. Quero vê-lo sangrar até morrer como um porco superdimensionado que é.

– E eu - rosnou o mantícora, fervendo de ódio - quero vê-la transformada em pedra, sofrendo eternamente entre a vida e a morte!

Com súbita velocidade estonteante e a força quadruplicada o bakemono árcade lançou-se colérico sobre a vampira feito um míssil vivo - e naquele momento Moka só conseguiu ver uma figura avantajada de aparência quase felina vibrando as asas colossais. E enxergou por uma fração de segundo o corpo bestial do monstro alado que ora assomava acima dela como uma sombra escarlate, com as longas patas peludas estendidas, mostrando as garras terríveis, os dentes enormes projetando-se como adagas reluzentes para fora do rosto de traços humanos distorcidos para os de pantera, com mais duas fileiras de presas serrilhadas por dentro da bocarra escancarada, e um brilho de maldade chispando em seu único olho intacto. Por esta eu não esperava. Pega de surpresa pela rapidez e ferocidade do oponente, Moka não conseguiu evadir-se a tempo, sendo pesadamente atingida pelo corpo todo lanhado de talhos cruentos do mantícora e atirada no chão, e, antes que pudesse reagir, Shersorkh agarrou-a e imobilizou-a com uma mordida de mais de uma tonelada no pescoço - o bastante para triturar a carapaça mais resistente e quebrar ossos de um ser vivente comum - , que a fez trincar os dentes reprimindo um grito de dor lancinante. Nos seus ouvidos ecoou um agudo de clarinete em alta intensidade que era o uivo de triunfo da besta quando esta, terminando o ataque, deu um bote com a longa e perigosa cauda que mantinha ereta e arqueada sobre o dorso. Veloz como uma bala, o télson da extremidade da cauda furou a calcinha de Moka e atingiu a vagina da vítima com perversa precisão, inoculando-lhe "pré-veneno" - um líquido amarelo-esverdeado, doloroso e paralisante. Moka rangeu os dentes e pressionou os lábios com força, tentando não gritar em agonia pela dor aguda quando seu corpo se contorceu num espasmo chocante, os olhos rubros esbugalhados, a vagina queimando como lava de vulcão. Um instante infinito de dor que ultrapassou tudo que a kyuuketsuki já havia sentido. Seu corpo foi amortecendo à medida que o veneno de mantícora rapidamente se espalhava por todas as veias, artérias, músculos e órgãos. Não conseguia mexer um dedo sequer, nem sentir seus braços e suas pernas. Maldição! Não sou um ser vivente comum, mas nem mesmo eu consigo resistir a isso. Maldito, maldito, MALDITO!

– Não se preocupe, princesinha - Shersorkh falou mansamente. Aproximou ainda mais o focinho feral semi-humano (aquele hálito quente e úmido!), quase encostando as presas brancas no rosto de Moka, transformado em máscara rígida. - Como os escorpiões, posso controlar a quantidade e o tipo de veneno neurotóxico injetado em uma ferroada. Por exemplo, o que acabei de injetar em você não mata, só paralisa. É o que nós, mantícoras, usamos pra caçar humanos ou youkais mais fracos e comê-los vivos, ao invés de matá-los com uma toxina mais letal. No seu caso, precisei inocular uma dose bem maior, já que os vampiros são muito mais fortes do que os youkais normais.

Moka derrotada?! Ginei e Ruby - que acabavam de socorrer a malfadada Kokoa - não podiam acreditar no que haviam testemunhado.

– Lutou como uma filha de Ares, Moka Akashiya - prosseguiu o mantícora; os feios ferimentos na pele e nas asas causados pelos ataques extrafísicos da vampira que repercutiram em seu corpo físico já iam se curando, porquanto a fera conjurara a luz do Sol, fonte de seu poder etérico, a fim de regenerar seu youki; a terra sob as suas patas brilhava magicamente com luz solar. - Admito que chegou bem perto de acabar comigo, mas cometeu um erro fatal: subestimou o tamanho e a potência da minha biomatriz energética, meu campo de força vital. Se tivesse continuado a cortar minha aura demoníaca sem parar com aquela sua imensa rajada de youki, aí sim, eu estaria perdido. - Shersorkh elevou o tom de voz, de modo que o licantropo e a bruxa o escutassem. - Tolos, todos vocês são tolos! Enquanto se distraíam enfrentando os animais que encantei e mandei contra vocês, meus seguidores foram no encalço dos seus outros amigos para matá-los. Exceto, é claro, aquele humanozinho que é o pomme de sang da Moka Akashiya, o tal do Tsukune. Esse eu faço questão de devorar vivo. Meus seguidores têm ordens pra entregá-lo a mim, juntamente com a cruz do rosário que irá selá-la. Já devem estar voltando com o butim.

– Seguidores? - repetiu Ruby, a aflição estampada em seu rosto lindo.

– Ghouls - disse o mantícora, mostrando seus assustadores dentes afiados como sabres e mais duros que diamante. - Isso mesmo. Não como o humano de estimação desta vampira - ele colocou a pata nos seios da garota que jazia inerte no solo - , mas autênticos ghouls, ou seja, a raça de djinni demoníacos canibais e necrófagos vindos diretamente do Deserto da Arábia. Para eles, eu sou um deus - o seu Deus Mantícora, cujas ordens são inquestionáveis. Autorizei-os a comer a carne da bruxinha, da súcubo e da mulher das neves como bônus, caso capturassem o Tsukune vivo. No final das contas, não adiantou nada tentar salvaguardar o seu humano de estimação, mandando-o pra longe enquanto você ficou pra me enfrentar... Até porque o meu alvo primário sempre foi você, Moka Akashiya. E agora, você é minha, o seu Tsukune será meu, e suas amigas e rivais já viraram comida de ghoul... Uh-huh huh huh huh!

Ruby e Ginei se entreolharam, chocados. Yukari... Kurumu... Mizore... Mortas?! Devoradas por ghouls?! E Tsukune... Oh, não! Era horrível... inconcebível...

– Ginei-san - Ruby cochichou no ouvido dele. - Conheço uma magia que pode dar cabo desse bicho maldito. Mas requer um certo preparo espiritual.

– Então manda ver, Ruby - Ginei cochichou de volta. - Eu me encarrego de distrair o bandido pra você se concentrar no feitiço.

Com o maior cuidado, colocou em decúbito dorsal no chão a jovem estudante de cabelos ruivos que carregava nos braços. Kokoa estava seminua, pois a patada violenta de Shersorkh esfrangalhara o tecido do seifuku e o sutiã, mas o pior eram os cinco rasgões profundos ensanguentados trilhando-lhe a palidez da pele, do peito à barriga, além de escoriações e cortes nos braços e pernas (o usual fator de cura vampírico recuperaria seu organismo em menos de uma hora).

Onee-sama... Minha irmã... - ela gemeu fracamente. Kou-chan revoou em volta, emitindo trissos, e afinal pousou perto dos pés de Kokoa.

– Ainda conspirando quando estão prestes a morrer, seus otários? - disse Shersorkh com voz retumbante. As feridas já estavam quase fechadas e cicatrizadas.

Ginei Morioka, veterano do terceiro ano e presidente do Clube de Jornalismo da Academia Youkai, respirou fundo e encarou o inimigo bestial, que sorria friamente, com as asas eriçadas e a cauda levantada. - Ô bicho feio, é o seguinte - disse ele irreverente, cruzando os braços sobre o peito másculo. - A Moka não vai a lugar nenhum com você. Se eu fosse você, bateria essas asas de couro oleosas e voaria pra bem longe daqui... sozinho!

"Talvez ela tenha razão e eu seja um tremendo idiota...", pensou. "Mas fazer o quê, né?" Estranhamente, ele pensou em seu pai: dizia-se que fora um Lobisomem Prateado tão poderoso que podia focalizar o brilho tênue da Lua Cheia e focá-lo em um único feixe de luz coerente, disparando uma espécie de "raio laser lunar" capaz de derrubar árvores ou arrancar tijolos e telhas de uma casa. "Não sou meu pai, nem temos lua no céu."

– E quem vai me impedir de levar a vampira comigo? - zombou Shersorkh. - Você e sua parceira penosa? Lobo e corva, que par patético vocês formam! São apenas carne para minha mesa!

(Entrementes, projetado no espaço astral, mais alguém assistia a tudo, aguardando apenas... o quê?)

"Ruby, agora é contigo", Ginei clamou mentalmente, como se a bruxa pudesse ler seus pensamentos. Doze feras gigantescas semelhantes a javalis, mas providas de cornos ameaçadores sobre os focinhos largos, aproximavam-se correndo da esquerda a cento e vinte por hora, seguidas por pequenas bestas espinhosas e simiocórnios de aspecto gorilesco com garras, cauda e três pares de chifres frontais, enquanto um grande bando de morcegos da subordem Megachiroptera, "raposas-voadoras", com cerca de dois metros de envergadura, acercou-se da dupla de jovens que, junto com o morceguinho, protegia a garota de cabelos cor de fogo jazendo seminua no solo, lanhos abertos na carne rasgada, e o lobo-cinzento entorpecido por peçonha paralisante.

– Mais animais, chuu! - guinchou Kou-chan.

Atrás de Ginei estava Ruby, de pé, lindamente altiva, as seis asas de penas negras afiadas bem abertas, em contraste com o par de pequenas asas alvíssimas nas têmporas. Levitando na mão direita o Grimoïre aberto, a jovem bruxa entoava uma cantilena ritual estranha e monótona em sindarin, ou "élfico-cinzento", a língua viva de uma raça cuja magia arcana já era antiquíssima incontáveis milênios antes que o primeiro hominídeo do subgênero Homo habilis, na África, começasse a produzir ferramentas rudimentares feitas de ossos, madeira e pedra lascada.

"Ruby... Essa é uma aura que eu nunca vi antes", pensou Ginei ao ver as cores do campo áurico de sua modelo fotográfica favorita e musa inspiradora naquele instante clarividente. Uma fria luz verde-prateada flutuava acima dela. As órbitas oculares de Ruby pareciam sóis vermelhos em miniatura, refulgindo com luz inumana.

Ela estava concentrada por completo. Este ritual de encantamento a ser realizado exigia um nível de atenção e controle imensamente acima dos meros padrões humanos.

A karasu onna convocava os espíritos da Mãe Natureza e as Forças elementais para combater por ela.

– Essa energia espiritual... - murmurou Ginei, sentindo a presença sobrenatural. - Grande Gaia!

Pares de olhos espectrais, aos milhares, no espaço etérico, identificaram seus alvos.

Foi nesse instante que algo bizarro, surreal, psicodélico e aterrador aconteceu.

Um enorme tornado F3 de 40m de altura por 10m de diâmetro, com ventos girando entre 252km/h e 330km/h, formou-se repentinamente do nada no céu cinza-esverdeado, sugando seletivamente todos os animais, grandes ou pequenos, aéreos ou terrestres, num raio de pelo menos dez metros - tendo o elemental do ar por epicentro - , aprisionando e imobilizando tudo em seu interior. Simultaneamente, barreiras mágicas feitas de terra e rochas, ou de troncos, galhos e raízes de árvores vivas e mortas, ergueram-se do chão terroso em alguns segundos, confinando dentro delas todos os restantes animais não-voadores que escaparam de serem sugados pelo tornado elemental de onde bem poucos lograriam evadir-se.

Ruby, Kokoa, Ginei e o "Irmão Cinza" foram protegidos pelo "escudo" Kou-chan.

Então, de repente, os galhos e as raízes dos carvalhos e abetos nas imediações do mantícora, junto com as moitas de espinheiros e samambaias, relva, terra e rochas atacaram Shersorkh com ferocidade jamais vista. Heras venenosas enroscaram-se nas quatro patas do mantícora, subindo pelo corpanzil antropozoomórfico, apertando-lhe a garganta com furor, para asfixiá-lo. A cauda segmentada vermelho-brilhante se agitou a esmo, simili modo ao metassoma do escorpião quando acuado e correndo risco de vida pela alta temperatura em um círculo de fogo, mas foi logo contida por cipós que nela enrolaram como serpentes constritoras. Quatro titânicos elementais de rocha materializados, com "mãos" semelhantes a clavas de pedra maiores que cabeças humanas, pernas-coluna e uma cabeça disforme, começaram a agredir o mantícora com tamanho ímpeto assassino que teria reduzido um tigre-dentes-de-sabre do Plioceno a uma posta de carne ensanguentada em segundos.

Para defender-se, Shersorkh foi obrigado a deixar de lado sua presa, ou seja, Moka.

– Ruby, eu vou lá pegar a Moka e levar pra enfermaria da escola! - gritou Ginei. - Você cuida da Kokoa-chan e do Irmão Cinza, OK?

E dizendo isso, sem esperar resposta, correu na direção ao mantícora e sua vítima, confiando na agilidade que tinha em forma de glabro para resgatar Moka.

– Tenha cuidado, Ginei-san! - gritou Ruby, mantendo sua concentração de forças e incitando os elementais da terra e do ar à ofensiva contra Shersorkh. - Se continuar a gastar sua reserva de youki se esforçando demais, vai acabar ficando sem energia vital e pode até morrer!

No fundo, seus sentimentos pelo rapaz-lobo iam além da relação fotógrafo-modelo. Embora dissesse para si mesma que Ginei não passava de "um animal grande e bobo" que ela manejava como queria. Gostaria que fosse assim...

– Meu Deus, Ruby, que caos é esse? - Ginei pegou Moka no colo, sorrateiramente, e relanceou o olhar em torno de si. Humanoides gigantes compostos por rocha aparentemente viva ou por massas de vegetação apodrecida e árvores semoventes - elementais da terra! - partindo com tudo para cima do mantícora, que revidava cuspindo línguas de fogo ou dando patadas e dentadas suficientemente fortes para quebrar rochas. Centenas de pequenos seixos explodiam que nem granadas no rosto semi-humano da besta. Pelo visto, as habilidades mágicas de Ruby extravasavam largamente os poderes xamanísticos de uma simples onmyouji, tais como ouvir espíritos, falar com animais, invocar shikigamis e assim por diante. "Nada mal para uma bruxa", refletiu ele. (Sendo bruxa, isto é, meio-youkai, ela não necessitava armazenar youki, podendo canalizar energia através da ligação com a natureza, de-chu!)

Lançou uma última olhadela para a animaga. "Se cuida, viu Ruby?", foi seu último pensamento antes de deixar a área movendo-se a uma velocidade quase supersônica.

– Pelos chifres dourados de Mitra! - praguejou Shersorkh em desespero, ao ver-se acossado de todos os lados por troncos, galhos e raízes, vento, terra e rochas que pareciam ter adquirido vida própria, sem mais nem menos. - O ecossistema daqui enlouqueceu!

Árvores mortas retorcidas e nodosas, como obscenos zumbis do reino vegetal reanimados por força mágica, com "braços" grandes e lenhosos, saíram dos seus lugares, movendo-se de modo grotesco, atacando por todos os lados e acuando o mantícora com as pontas dos galhos e das raízes que tinham se tornado muito mais resistentes e afiadas que lanças de ferro prestes a furar-lhe a cavidade ocular. Shersorkh em frenesi despedaçou-as com as mandíbulas horrendas que podiam triturar e moer ferro, porém viu-se enredado nos tentáculos da espessura de um braço humano de uma voraz orquídea carnívora gigante. Ao mesmo tempo, fortíssimas rajadas de ventos cruzados, atípicos, impediam-no de levantar voo. Até o solo fendeu-se, abrindo a sua boca abismal para engoli-lo, como que tentando reeditar o episódio bíblico de Córach, Datan e Abiram tragados pela terra. Somente o bater frenético das asas coriáceas o salvou de ser arrastado para as profundezas do subsolo.

Centenas de pequenas mãos em formato de garras, de pedra ou terra, lançaram-se ao ataque procurando destruir ou inutilizar as asas de Shersorkh.

– Moka... Eu vou te levar de volta pra Academia Youkai em segurança, nem que eu tenha que me matar fazendo isso! - disse Ginei, ofegando feito um cão e exsudando sangue por todos os seus poros enquanto corria à velocidade do som. Sabia que, a despeito da paralisia muscular induzida pela toxina, a garota que levava nos braços permanecia consciente do que estava acontecendo.

– Nããão!!! Maldita cria de lobos! - O mantícora soltou um urro de fazer gelar o sangue de um cadáver ao constatar que Moka havia sido arrebatada pelo furtivo lycan bem debaixo do seu nariz. De novo. Na sua fúria desordenada estraçalhou a megaorquídea como se fosse feita de papel, desviou-se para longe de sete grandes fendas que se abriram no solo. Porém, da terra sob suas patas irrompeu uma formidável trepadeira espinhenta que logo começou a enroscar-se por todo o seu corpo, crescendo em segundos até engolfá-lo numa grande massa de caules flexíveis eivados de espinhos, por obra de magia, magia elemental. Como um polvo vegetal, a superplanta envolveu de todos os lados Shersorkh que se debatia e rugia em seu abraço mortal. Resistir é inútil. Esta trepadeira infernal se contrai cada vez mais ao ser forçada.

Oito minitornados negros formaram-se com diâmetro de seis metros e altura de vinte metros, estrategicamente posicionados e imóveis à volta do mantícora "aprisionado" pelas plantas mágicas, mas prontos para sugarem qualquer coisa num raio de cinco metros em seu derredor. Eram elementais dos ventos materializados temporariamente. Suas letais lâminas de vento, cortantes como cimitarras e capazes de fatiar madeira, metais, rochas que nem salame!

Ruby esvoaçou pelos ares, acompanhada de Kou-chan, tendo Kokoa e o "Irmão Cinza" firmemente envoltos nas tiras serpentinas irradiantes de suas asas fortes e largas. Seu riso era sardônico. - Gostou do meu feitiço, khâje Khurshid Shersorkh? Eu o chamo de Daer Gwedh, o "Grande Laço". Com ele, posso manipular os seres vegetais, os elementais e os espíritos da natureza como quiser, podendo empregá-los para me defender ou para atacar um inimigo. Toda e qualquer manifestação dos elementos da natureza existente num raio de 50-60 metros ao meu redor agora é completamente controlada por mim. São estes os meus soldados, Shersorkh. Não te deixarão sair daqui com vida, custe o que custar. Essa "plantinha" que te pegou de jeito, por exemplo, mata por asfixia qualquer ser vivo, sobrenatural ou não. Se ainda assim conseguir sair com vida, esses minitornados te sugarão e você será retalhado pelas várias lâminas de vento. Minha mestra Oyakata-sama estudou em segredo as Magias Élficas proibidas nas Runas Élficas, em sindarin antigo ou médio, que são mais antigas e terríveis que a sabedoria das Bruxas Ancestrais. Eu aprendi com ela, com a melhor dos melhores. Você foi derrotado pelo poder da Natureza!

Seu rosto bonito assumiu uma expressão sombria.

– Nazo Komori, vá procurar o Tsukune! - Ruby tirou do Grimoïre um pergaminho ofuda, e com ele invocou cem corvos negros, que apareceram revoando em tono dela. - Meus corvos vão com você. Quero que encontrem o Tsukune e o ajudem a se libertar dos ghouls do Shersorkh. E se as meninas ainda estiverem vivas, ajudem-nas! Vão já!

Quando Kou-chan e os familiares-corvos partiram aos guinchos, Ruby lançou um último olhar carregado de ódio para o inimigo aparentemente derrotado. Falou com a voz turva:

– Eles, os elementais da terra e do ar, vão tirar a sua vida. Espero que você sofra dor, muita dor, porque você causou dor e sofrimento inimagináveis aos meus amigos queridos. - Ruby calou-se. Como fantasmas, surgiram-lhe na imaginação, em um átimo, os rostos serenos e sorridentes: Mizore-chan... Kurumu-chan... Yukari-chan, minha irmãzinha bruxa...! Sentia um nó na garganta, uma vontade de chorar. Maldito Shersorkh! Maldita seja essa raça diabólica que são as mantícoras! Durante um único instante ela foi sentindo o ódio crescendo dentro de si. Mas recordou-se dos ensinamentos da Deusa - Temos um lado luminoso e um sombrio; o lado escuro se nutre dos nossos sentimentos negativos, tais como ciúme, inveja, mentira, raiva e ódio. E o ódio é o "combustível" de quem é adepto à magia negra. E controlou-se.

Foi quando se deu o imprevisto. O corpo quimérico de Shersorkh "engolido" pelas gavinhas cheias de espinhos da trepadeira transformou-se numa tocha solar viva que queimou a superplanta, ardendo em causticantes chamas azuis, absorvendo todos os antagonistas sobrenaturais feitos de troncos, galhos, folhas e raízes, terra e rochas ao seu redor em uma grande bola incandescente de gases ionizados em rápida expansão.

– Deusa Hécate! - murmurou Ruby. Perplexa, voou mais alto, transportando Kokoa e "Irmão Cinza" 15-20 metros acima das campas. - Puro fogo azul!

Conhecia o fenômeno e sabia que era uma das armas mais destrutivas e mais cruéis dos youkais elementaristas do Fogo. Aparentemente um fenômeno intermediário entre a energia química e a energia nuclear, ou uma combinação singular de plasma e energia, era tanto um poder místico quanto físico, resultante do youki de fogo criado e manipulado com maestria por Shersorkh (cujo corpo é um poço de energia atômica!). Em uma distância de dez metros do corpo do mantícora tudo queimava, e o ar ardia. Até a última partícula de matéria seria completamente consumida pelas chamas. Barreiras mágicas, gelo ou água de nada adiantavam, e com esse "fogo" inextinguível sob o absoluto controle de Shersorkh a estrutura atômica se desagregava, convertendo-se em energia pura.

Em dois minutos, tornou-se impossível enxergar os corpos do mantícora e de seus oponentes elementais de pedra ou madeira no interior da esfera de fogo azul. Em cinco minutos, o calor solar concentrado era suficiente para vaporizar completamente qualquer forma material composta de carne e ossos, celulose, metal ou rocha sólida.

– O maldito mantícora está gastando carradas de youki de reserva, incendiando o ar - Ruby vociferou entre dentes. "Tomara que se esgote rapidinho e fique fraco!", acrescentou mentalmente, batendo as grandes asas negras e subindo cada vez mais alto.

A esfera flamejante ardente rebrilhava tão intensamente que já não se podia mirá-la sem ficar cego. Um pequeno sol branco-azulado irradiando à temperatura de 10.000 K!

Dali a pouco Ruby ouviu o rugido trovejante do mantícora.

– Bruxa idiota! Eu sou imune a magias baseadas em terra, ar ou fogo!

Entrementes, Kokoa também deu sinal de vida.

– Ruby... - ela gemeu, enfaixada e suspensa no ar pelas tiras de sombras que saíam de uma das seis asas da bruxa-youkai-corvo. - Acaba com a raça desse desgraçado... Mata ele por mim e pela minha irmã!

– Ele será morto pela fúria da Mãe Natureza - Ruby declarou com convicção. Suas grandes asas ruflaram para dentro, reduzindo a velocidade, e ela aumentou ainda mais a sua concentração induzindo os elementais e os espíritos da natureza a prosseguirem na ofensiva contra Shersorkh. - Mas você precisa de cuidados médicos urgentes, mocinha. E repouso. Essas lacerações na parte frontal do tórax e no abdômen estão em carne viva...

– Qual o quê! Besteira! - Kokoa exclamou. - Eu sou uma vampira! Regenero tudo em questão de meia hora...

– Em condições ideais! - retorquiu a bruxa, mantendo a posição naquela altitude por intermédio de curtos movimentos das asas. - Sua capacidade de regeneração tecidual é alta, sim, mas não é por isso que você vai se descuidar, até porque, das seis raças conhecidas de vampiros, a sua é a mais próxima da vida mortal. E não nos esqueçamos do lobinho aqui - ela indicou com um movimento de cabeça o familiar-lobo de Gin que pendia, imóvel, atado de outro feixe de tiras saído de uma asa oposta. - Vamos voltar já pra Academia Youkai.

"Deusa, Mãe-Terra...! Que o Tsukunesan seja salvo...! E que a Yukari–chan, a Kurumu-chan e a Mizore-chan estejam vivas e bem", mentalizou Ruby. Imediatamente ruflou dois dos três pares de asas (com um deles arrastava consigo o Irmão Cinza e Kokoa) e disparou para frente, surfando nas correntes de ar ascendentes que seus amigos silfos produziam para ela (ao vibrarem as magnificentes "asas" irisadas de tons cintilantes cujas energias sutis fluíam por suas auras) e que lhe conferiam uma maior velocidade de voo.

Mas então alguns espíritos naturais do ar semelhantes a gigantescos quirópteros que pareciam feitos de sombras trevosas - silfos da tempestade - intensificaram as condições elétricas e magnéticas características de uma tormenta através daquela área do cemitério, adensando enormes cumulonimbus pojados de energia, e bombardeando o mantícora com todo o seu arsenal terrífico de raios, trovões, ventos fortes e tempestuosos, chuva torrencial e minitornados. Rugindo de ira vã, Shersorkh arremeteu-se contra os ferozes antagonistas. Miríades de olhos etéricos dos espíritos da natureza miravam-no encolerizados.

– Eu não vou ser detido! Eu, Terror dos Homens, o campeão asúrico do deus-Sol! - Tomado de um acesso de fúria e com o corpo apenas arranhado pelas fatídicas lâminas de vento (por sua resistência nata), Shersorkh lançava de sua boca várias labaredas de fogo azulado que aumentavam à medida que iam "coletando" o calor do ar em direção aos minitornados elementais que lhe barravam o caminho, provocando explosões pavorosas pelo encontro dos elementos fogo e vento (afinal, o oxigênio do ar é o comburente para produzir fogo). Embora o ataque empregando o fogo azul fosse absurdamente desgastante, tendo quase que esgotado seu youki. Os ventos sopravam ainda mais furiosos, tentando embarreirá-lo, derrubando as grandes árvores mortas e secas, tangendo densas nuvens de poeira que lhe toldavam a visão, ao mesmo tempo que a terra tremia e o solo se abria em profundas gretas para tragá-lo. Uma violenta chuva torrencial precipitou-se das gigantescas nuvens cumulonimbus que estrondeavam e relampejavam acima de sua cabeça. Apocalypse! Pandemonium! Um gosto de Armageddon!

– Agora querem me afogar? - vociferou o mantícora, que não era imune a ataques de água, ou magias baseadas em água. Sua raça possuía como habitats terrenos áridos e semi-áridos, savanas, estepes, montanhas e as regiões florestais da Nova Arcádia. - Eu vou vencer! Não serei impedido por uma horda de espíritos "apoiadores" daquele bandinho de amigos dos humanos! - ele cuspiu entre dentes, como se proferisse um insulto racial.

De repente, uma faísca dourada cruzou o ar a uma velocidade incrível. Shersorkh soltou um berro de dor excruciante e caiu com uma flecha de ouro de 50 centímetros de comprimento espetada no flanco direito. Dali a um segundo outra flecha atingiu-lhe o flanco esquerdo. Viu chegar veloz como um raio a terceira flecha que atravessou seu pescoço brônzeo, sem, contudo, ter perfurado nenhuma artéria - como se tivesse errado deliberadamente para não acertar nenhuma área vital. Espumando pela boca de tanto ódio, o mantícora esquadrinhou ao redor, porém não logrou ver quem tinha atirado as três flechas de ouro em meio àquele caos de forças elementais desencadeadas.

Flechas de ouro?! Mas como é possível? O conhecimento acerca da vulnerabilidade ao ouro - o metal-símbolo alquímico do Sol, receptor da energia mágica do Sol Espiritual - era o segredo mais bem guardado de sua raça. Com exceção dos filhos de Apolo, quase ninguém conhecia o fato de que armas de ouro eram tão dolorosas e mortais para mantícoras quanto as armas de prata para os lobisomens e algumas raças de vampiros. E se um daqueles malditos meio-sangues... Não! Sem chance, não neste semiplano criado pelos "três Lordes Sombrios" para ser um "porto seguro" de todas as criaturas paranaturais.

Isso não vai ficar assim!!! - Com um urro bestial doloroso e apavorante, a fera maligna se ergueu sobre as pernas traseiras, ferido no seu orgulho tanto quanto na sua carne - ferimentos causados por armas de ouro não regeneravam ou se regeneravam lentamente - , e usando suas patas dianteiras como punhos golpeou o chão, que se rachou. - Meus devotos estão trazendo o Tsukune Aono pra mim, vou usá-lo pra chantagear os amigos da Moka... - resmungou ele, caindo por terra, sentindo suas forças se esvaírem a cada instante; apesar de se fortalecer com a raiva, não dispunha de força inesgotável como um supervampiro capaz de infundir permanentemente a musculatura do corpo físico com a energia canalizada da própria aura de youki que se constitui numa fabulosa reserva de energia vital; e as pesadas nuvens cumulonimbus encobriam a verdadeira fonte de seu poder, o Sol. - Vampira Moka, você vai voltar pras minhas garras... - ele começou a gargalhar ensandecido. - E então vou devorar o seu mascote humano na sua frente, bem devagar, e me deliciar com a sua agonia, tanto quanto com o sabor da carne dele... Vou trucidar e devorar todos os seus amigos, com você assistindo, selada, imobilizada, impotente... Depois vou me divertir abusando do seu corpo paralisado, até não querer mais...! Juro pelos chifres de Mitra, você vai ser minha!

O furor dos elementos grassava ao seu redor. Embora não pudessem feri-lo, as enormes lâminas de vento que iam contra ele tolhiam-lhe os movimentos, impedindo-o de voar, assim como a chuva diluviana caindo sem cessar, com uma barulheira infernal, castigando aquele trecho do cemitério onde ele se achava, enquanto no solo inculto outra fenda negra se escancarava em sua direção como o abismo do Tártaro, prestes a engoli-lo no ato final. Repentinamente, porém...

– Esse youki... Essa pressão espiritual... - Shersorkh tartamudeou, estupefato.

– Vergonha, vergonha, VERGONHA! - soou uma voz que ele conhecia muito bem. - Khurshid Shersorkh, o mantícora todo-poderoso, rastejando em lama e pó que nem um leão velho e inválido. Triste fim de carreira...!

– VOCÊ?! Não! Não pode... - balbuciou Shersorkh. - O que é que você faz aqui?

– Acalme-se, bakemono - retrucou, sorrindo soturnamente, a criatura ominosa cujo aparecimento inopinado assustara o mantícora. - Você é meu, tal qual a Ishigami.

– NÃÃÃO!


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Notas finais do capítulo

Este capítulo saiu excessivamente grande, admito, muito maior do que eu pretendia - mas entendo que foi necessário. Em compensação, os próximos capítulos serão todos, sem exceção, consideravelmente menores, jamais chegando nem perto da extensão deste, eu prometo! Por outro lado, nas fics (em inglês) publicadas no FanFiction.net, você encontra capítulos tão longos ou até maiores, e quem já leu as Crônicas Vampirescas da Anne Rice, particularmente "Memnoch", sabe que ela gosta de fazer capítulos longos e cheios de detalhes (eu sei, eu sei, tem quem goste e quem não goste).
Para os que não conhecem artes marciais como kickboxing, muay thai e congêneres, segue abaixo uma pequena explicação do que significam algumas expressões (geralm. em siamês ou thai) empregadas neste capítulo pra designar os golpes da Moka:
A)"Idan bandal tchagui": chute giratório de 180 graus.
B)"Furyo tchagui": chute em gancho; o corpo gira e a sola do pé acerta em cheio o rosto do adversário.
C)"Timyo dolyo" ou "timyo tchagui": chute na cabeça no ar; é a famosa "voadora".
D)"Ap toryo tchagui": chute lateral, como o famoso "roundhouse kick" que é tanto a marca registrada do Chuck Norris quanto da nossa querida vampira de cabeleira cor de prata.
E)"Tuit tchagui": o lutador gira e, de costas, dá um coice no adversário.
A habilidade do mantícora Shersorkh de controlar animais foi inspirada no Adramelech de Mantícora, de Saint Seiya; o feitiço "panteísta" da Ruby foi inspirado no poder Nature Unity de Alberich de Megrez, tb de Saint Seiya; o Fogo Azul que Shersorkh usa, assim como sua dependência do Sol, foram baseados parcialmente na Nação do Fogo, de Avatar: The Last Airbender; o poder vampiro de cortar a aura de um ser sobrenatural foi só uma "palhinha" de Anita Blake: Vampire Hunter. Já a ideia de fazer as mantícoras vulneráveis a danos por armas de ouro, até onde sei, foi minha mesmo.
Mas o que terá acontecido com o Tsukune, a Kurumu, a Yukari e a Mizore?, os leitores devem estar se perguntando. Estão vivos ou mortos? Bom, pra descobrir a resposta, não deixem de ler o próximo capítulo (já em fase de elaboração). A todos que conseguiram chegar até aqui, meus mais sinceros agradecimentos.
P.S.: não costumo pedir reviews, contudo seria interessante que quem ler não deixe de dar sua opinião, criticar etc, pois só assim poderei evitar repetir eventuais falhas deste capítulo nos próximos. Mais uma vez, obrigado pela compreensão.